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Domingo, Dezembro 22, 2024

Visão estratégica 2020-2030: Ó tempo volta para trás

Teresa Gago
Teresa Gago
Médica dentista; desempenhou diversos cargos autárquicos, incluindo o de vereação em Cascais entre 2013-2017. Dirigente Associativa do Movimento Não Apaguem a Memória e membro da Plataforma Cascais-movimento cívico. Militante do PS.

De quando em vez elaboram-se visões ou planos estratégicos para Portugal. António Costa Silva apresentou, recentemente, mais um. Foi com gosto e diversão que li um documento que, julgava eu, seria árido e, sobretudo, desprovido de humor.

“Ó tempo volta para trás, traz-me tudo o que eu perdi
tem pena e dá-me a vida, a vida que eu já vivi,
ó tempo volta para trás, mata as minhas esperanças vãs,
vê que até o próprio sol volta todas as manhãs.”

(António Mourão, 1965)

 

De quando em vez elaboram-se visões ou planos estratégicos para Portugal. António Costa Silva apresentou, recentemente, mais um. Foi com gosto e diversão que li um documento que, julgava eu, seria árido e, sobretudo, desprovido de humor.

Logo a introdução proporciona uma mescla de emoções que anima a continuação da leitura. Através de um estilo cosmopolita com recurso a estrangeirismos (day-after; hinterland e cluster) somos impelidos à compaixão pela historicidade dos dilemas estratégicos de Portugal e ao nervosismo causado pela pandemia da COVID. Em simultâneo, de forma grácil, o autor serena-nos asseverando que acederemos a um “volume de recursos financeiros significativos” (pg.4), entusiasmando-nos com a possibilidade de “ensaiar um novo ciclo geopolítico na história”(!) (por mar e terra!) através da reconversão industrial e da reindustrialização.

(Re)industrializar com a clarividência estratégica da táctica cotonete: Atlântico – Ibéria/Europa. Para quê optar? Dá para os dois lados.

O texto prossegue com erudição literata e cinéfila. Nele encontram-se citações de Krugman e Polanyi, alusões a Kubrick, referências a Roosevelt e a Obama, com aflorações de Hegel, Kant, Hobbes e até, pasme-se, Marx. Enlevada pela narrativa maravilhei-me com as imagens dos modelos de desenvolvimento económico-social dos sistemas de matrioskas invertidas e do donut, imaginei Portugal a aplicar a experiência Norueguesa e acedi ao apelo explícito, duplamente realizado, para “pensar fora das ortodoxias de direita e de esquerda e encontrar um equilíbrio virtuoso entre Estado e Mercado” (pg. 51). Li com agrado as críticas ao modelo neoliberal tradicional e não pude deixar de sorrir quando encontrei a expressão “eletrificação da economia” (pg.58) porque me ocorreu, de súbito, a conhecida frase de V.I. Ulyanov: “o comunismo é o poder soviético mais a electrificação de todo o país”.

De facto é uma economia electrizante que António Costa Silva propõe!

Infelizmente o texto termina de forma abrupta e, sem preparação ou conforto, caí na dura realidade. Já a tarde se esvanecia, o café estava frio e, apesar dos bons momentos de solitário gozo intelectual, pareceu-me que, afinal, a dita visão estratégica para 2020-2030 consubstancia apenas um exercício de provocação amiga ao Primeiro-ministro e Secretário-Geral do PS. Não há dúvida que Costa Silva tem um humor refinado.

Um sábio filósofo disse certa vez que não se podem forçar os factos a adaptarem-se a esquemas de compêndios e explicou que a realidade surpreende quem dela se exclui para aplicar meras formulações teóricas. Nisto, que é (quase) óbvio, parece encontrar-se muita da história desde o 25 de Abril e as profundas causas estruturais dos alegados dilemas estratégicos de Portugal: Francisco Sarsfield Cabral chamou-lhe “capitalismo sem capital”.

O dilema português fruto do paradoxo do “capitalismo sem capital” tem surgido diversas vezes ao longo da nossa história democrática. A opção política habitual tem sido a de fornecer capital ao capitalismo, ou seja, injetar dinheiro nos sectores privados da economia (banca e empresas) para engrandecer o sector de produção e o sector financeiro, para manter e valorizar os empregos e, em suma, para desenvolver o país através do apoio às suas forças produtivas, garantidas (pensava-se) através dos empresários. Volvidos quase 50 anos de abril, Portugal continua sem capital, os direitos laborais degradaram-se, a função pública minguou e, agora, muitos sectores estratégicos para a soberania nacional estão na posse de mãos estrangeiras. Pergunta-se: o que fazer?

A proposta de Costa Silva bordeja a candura quando parece pretender negar a realidade histórica ao (re)elaborar à luz da COVID-19 aquilo que tem sido (desde há muito) o projeto de suposta “salvação” da economia (nacional?):

  1. De acordo com a denominada economia de mercado o capital não tem pátria, pelo que é permitido fugir para paraísos fiscais enquanto se mantém uma política de baixos salários – o que tem acontecido em Portugal: “Portugal é o terceiro país com mais riqueza em paraísos fiscais”; “Cerca de 9 mil milhões saíram de Portugal para paraísos fiscais em 2018” e “Portugal perde quase 600 milhões de euros de receita de IRC para offshores” o que se conjuga com “Portugueses recebem salários mais baixos do que em 2010” e “Portugal ainda tem um dos salários mínimos mais baixos da UE”.
  2. Historicamente a opção pela via da (re)construção de um capital nacional, (alegadamente) sustentáculo de um putativo capitalismo dito português, por via da “devolução” das empresas ao sector privado não parece ter garantido, nem a manutenção, nem o desenvolvimento de importantes empresas nacionais. Recorda-se o caso da SOREFAME, progressivamente retalhada e sujeita a “inovadoras” soluções de gestão (no caso lean management) que levou à perda de mão-de-obra qualificada e especializada com evidentes prejuízos para o país. Pese embora o (conveniente) “esquecimento” destes casos, a actualidade tornou a demonstrar o fracasso “estratégico” do modelo privatístico de desenvolvimento nacional – PT; NOVO BANCO; CTT; EDP, etc – que além da “socialização de custos” (alguns ainda em curso) tem contribuído para a destruição e a alienação do capital empresarial português com acrescido prejuízo para a população: “Preços da luz dispararam 40% numa década”; os “preços das telecomunicações são mais elevados em Portugal que na restante União Europeia” e cartelização (incluindo) nas distribuidoras afetas à indústria alimentar.
  3. Necessariamente dentro do enquadramento institucional actual não parece fazer sentido apelar à imaginação quando Costa Silva afirma que “os traços do modelo a implementar, baseados na experiencia da Noruega”. A Noruega não está na União Europeia. Embora possamos compreender o encanto pela experiência norueguesa, sobretudo vindo de quem defende uma economia de mercado mista baseada em “blended-finance” (fundos de financiamento público – privados) não parece ser realista (nem pragmático como o próprio designa) estribar um plano sustentado na crença de uma mudança radical do comportamento dos “capitalistas” portugueses ou, tampouco, na dissolução do povo (como sugeriria Brecht), sobretudo quando a riqueza nacional, os direitos sócio-laborais e a força sindical na Noruega não são, de todo, comparáveis com a realidade portuguesa (entre outras diferenças importantes).

Um traço distintivo entre o atual plano de recuperação de Costa Silva e os anteriores em que se propunha a (re)industrialização do país é o reconhecimento, de facto, que “ as visões liberais extremistas que prevaleceram no passado conduziram o país à perda de grande parte da indústria (…) Há décadas atrás Portugal pescava a maior parte do peixe que consumia; hoje importa mais de 70%. Tinha uma indústria de construção naval e metalomecânica que era referência no mundo (…)” (pg.75), porém, surpreendentemente, Costa Silva não tira qualquer nova ilação sobre as causas estruturais e conjunturais que conduziram a este ponto de situação – pelo contrário (!) justifica a insuficiência de desenvolvimento com os mesmos pressupostos (baixa produtividade, falta de qualificação dos trabalhadores e dos gestores, insuficiente implementação e destreza do “digital”, falta de investimento e excessiva fiscalidade para as empresas) tão usados pelo neoliberalismo que alegadamente critica, enquanto afirma que deveremos “ partido das condições favoráveis do nosso mercado laboral” (pg.37).

Na verdade, a tónica “neo-pós-moderna” deste “neo-pós” plano de recuperação estratégica parece consistir na proposta nacional de um capitalismo à la séc. XVI (mercantil) com ferramentas tecnológicas do séc. XXI. É proposto que fomentemos um “doux commerce” com clusters e hubs, um pouco à semelhança das hansas feudais (os clusters) e dos interpostos comerciais (os hubs) das antigas cidades-estado com o objetivo de reconfiguração da participação nacional no sistema capitalista europeu e mundial, através da catálise de uma putativa indústria 5.0. – “… tecnologias digitais, inteligência artificial, impressão 3D, Big Data, as máquinas que aprendem, a robótica avançada (…) para desenhar e criar produtos com alto valor acrescentado e competitivos” (pg.74).

Em essência trata-se de um oxímoro pois consiste numa tentativa de reinício do modo de produção (reboot como o autor preferiria) através um capitalismo do tipo inaugural, dentro de um estado-nação, inserido na União Europeia – é um contrassenso histórico. Acresce que para além deste (re)início não é possível vislumbrar percurso alternativo ao da já conhecida evolução capitalista nacional (e mundial) – o da progressiva concentração e centralização de capital, com alienação empresarial nacional, uma vez que ao Estado se reserva o papel (já) costumeiro de mansa retirada: “quando a economia portuguesa for mais saudável e as empresas estiverem capitalizadas, é importante o Estado ter uma estratégia de retirada, porque o seu papel não deve ser o de substituir-se às empresas, mas pelo contrário criar condições para elas poderem operar, crescer e competir” (pg.53).

Ainda o plano de recuperação económica e social não está em curso e já a história se repetiu: “Startup portuguesa BinaryEdge, que esteve na origem da descoberta de falha que expôs a Microsoft, foi adquirida pela norte-americana Coalition”.

O que diria Hegel?

Esta visão de um micro-capitalismo “num só país” com vagas alusões a um “estado social” é manifestamente insuficiente para o desenvolvimento nacional. Esperar-se-ia que um plano de recuperação económica e social tivesse a capacidade de reconhecer a indispensabilidade dos trabalhadores e a importância estratégica de um sector público forte, para além da capacidade estatal para financiar o sector privado (este último em permanente histórica aflição).

Uma vez que o autor alude tantas vezes à Noruega seria expectável que propusesse a necessidade de uma lei laboral que garantisse a proteção salarial dos trabalhadores, um enquadramento que incentivasse a contratação coletiva em todas as áreas de atividade económica e que previsse o efetivo reforço de meios no sector público nos quais se incluem os funcionários públicos de diversas profissões. Sim, ao sector público – aquele que garantiu o funcionamento do país em plena pandemia COVID-19.  Mas não! Aos “desgraçados” dos trabalhadores promete-se requalificação, qualificação e formação para lhes exigir (novamente) que se readequem, desta vez, a estes tempos “neo-pós” do 5.0.

Apenas para contraste sobre o sector público apresenta-se o seguinte gráfico no qual se poderá constatar que a Noruega (modelo utilizado por Costa Silva) tem, à proporção, o dobro de funcionários públicos que Portugal – note-se: bem acima da média dos países da OCDE – e que os tem vindo a aumentar desde 2007

Figura retirada de: Government at a Glance 2019 (OCDE)

O humor de Costa Silva reside, a par com a criatividade que subjaz à tentativa de “nova síntese criativa entre as diferentes teorias económicas” (pg.53), no facto desta visão estratégica colidir com a proposta da agenda para a década apresentada pelo PS e sufragada pelo eleitorado.

A provocação bem-humorada testará a determinação do Partido Socialista em resistir ao deslumbramento vivenciado aquando das políticas cavaquistas com os fundos comunitários, que resultaram, sobretudo, na proliferação de autoestradas e num fabuloso novo parque automóvel nacional. Com efeito, o refinamento do humor constata-se na sugestão de o PS poder tornar-se, agora, “um leal gestor do capitalismo” quando, contemporaneamente, o que parece impor-se é que «não se trata agora de meter o na gaveta, mas de salvar a democracia».

Nota: À hora que escrevo ainda não se vislumbra acordo na Cimeira Europeia quanto aos possíveis apoios comunitários – os denominados “frugais” insistem em contrapartidas. A concretizar-se o que parece expectável grande parte do “Plano Estratégico” sairá gorado  porquanto este pretendia-se como um ‘justificativo’ para o facto de que Portugal iria ter “acesso ao maior pacote financeiro da União Europeia desde a sua adesão” (pg.33). Não parece …

Será que afinal, como em tempos alguém vaticinou, os Estados Unidos da Europa são mesmo impossíveis?


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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