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Sábado, Novembro 2, 2024

O feminismo precisa do capitalismo como um peixe precisa de uma bicicleta

“Women vs Capitalism”, de Vicky Pryce, é um livro que oferece exatamente esse tipo de emoção barata. Nós conseguimos ver o que os liberais realmente querem, como eles querem, e como ambos diferem de propostas e objetivos radicais ou socialistas. O título do livro mantém a promessa de um radicalismo que falta profundamente no próprio texto.

por Amelia Horgan | Tradução de Luciana Cristina Ruy

A inclusão de mais mulheres no topo de estruturas de poder não deve ser confundida com a liberação das mulheres. Nós precisamos de um feminismo de raiz, socialista, não uma versão reembalada da marca de livros amigáveis às corporações de Sheryl Sandberg, “Faça acontecer” (“Lean-in”, no nome em inglês).

Há uma maneira comum para liberais despolitizarem alguns temas e torna-los tecnocráticos, sugerindo aos radicais que “nós todos queremos as mesmas coisas, apenas defendemos diferentes meios de chegar lá”. Esse movimento transforma o objetivo (“lá”) em algo vago e mal definido: “igualdade”, “justiça”, “equidade”, e assim por diante. Os radicais são feitos para parecer que estão agitando – se nós queremos a mesma coisa, porque não apenas ir para os meios menos problemáticos? E as diferenças políticas são obscurecidas – particularmente aquelas que podem colocar em questão a afirmação dos liberais de realmente apoiar igualdade, justiça e equidade. Verdadeiros antagonismos políticos desaparecem em segundo plano, cobertos por correções tecnocráticas.

Isso é especialmente comum no equívoco de liberais feministas entre duas formas de sucesso: o de mulheres individuais, e o de feminismo como um movimento político. Encontrar um liberal que revela seus objetivos explicitamente é, então, perversamente emocionante.

“Women vs Capitalism”, de Vicky Pryce, é um livro que oferece exatamente esse tipo de emoção barata. Nós conseguimos ver o que os liberais realmente querem, como eles querem, e como ambos diferem de propostas e objetivos radicais ou socialistas. O título do livro mantém a promessa de um radicalismo que falta profundamente no próprio texto.

 

Falha de mercado

Em “Women vs Capitalism”, nós aprendemos que o problema com o capitalismo é que ele não faz uso bom e eficiente de todos os recursos possíveis, porque ele irracionalmente bloqueia a total participação das mulheres na força de trabalho. Isso é, claro, um quebra-cabeças que cola: porque o capitalismo preserva, em maior ou menor grau, relações tradicionais de gênero, apesar de sua tendência de varrer hierarquias de classificação, de profanar tudo que é sagrado, e derreter tudo que é sólido?

Para Pryce, esse dilema é melhor compreendido como uma falha de mercado, que requer intervenção no nível das empresas e pelos governos para fazer o melhor uso das mulheres. Não é claro porque essa falha de mercado deve acontecer – embora “vieses conscientes e inconscientes” tem algum papel a desempenhar, parece – mas nós aprendemos que isso pode ser resolvido através de políticas para conseguir mais mulheres em funções de chefia.

A promoção de mais mulheres para essas funções, Pryce explica, é boa para a economia, substituindo um desperdício irracional de potencial feminino com uma meritocracia mais eficiente. Também é bom para as mulheres que alcançam essas novas posições. Ela não se expande no último ponto em detalhes, mas nós podemos presumir que esse pode ser o caso porque Pryce considera participação na força de trabalho ser uma importante expressão de si mesmo, e leva igualdade a significar igual acesso a uma igual representação dentro das instituições da democracia liberal existentes.

Também é, Pryce alega, bom para as mulheres como um grupo. Tendo mais mulheres em grandes funções significa que elas vão tomar decisões que beneficiam mulheres. E isso vai resolver os “mercados de trabalho defeituosos” e melhorar a “desigualdade econômica global de gênero”.

 

Faça acontecer mais além

Não se pode negar que o tipo de feminismo “faça acontecer” de Sandbergian é impopular e ultrapassado. O livro promete fazer algo diferente, oferecer algo mais estrutural, mas nunca cumpre sua promessa. Ao invés disso, temos uma menção passageira das mulheres – pobres almas! – que não trabalham no Goldman Sachs, para quem a nova sala de lactação do banco pode oferecer muito pouco.

Pryce nos lembra que os conselhos não se envolvem muito no dia-a-dia das empresas, então nós realmente devíamos estar pedindo mais mulheres em funções de chefia, ao invés de mais membros do conselho femininos. Uma década depois da invenção do “Lean-in Girl Boss”, um interesse em feminismo correu num fio todo o caminho para a equipe de chefia.

Apesar das afirmações de que sua capa oferece uma crítica inconvencional e radical, a análise do livro é típica do manual do feminismo corporativo: ter mais mulheres em funções sêniores é bom porque mulheres tomam melhores decisões que beneficiam não apenas as mulheres na organização, mas mulheres como um todo – para não mencionar a economia. Vale a pena considerar esses argumentos em mais detalhes, para ver exatamente porque eles são não apenas falsos, mas decididamente antifeministas.

Em “Women vs Capitalism”, nós encontramos uma sugestão de que a Grécia foi maltratada porque não haviam mulheres no grupo de ministros das finanças europeus; talvez a presença de uma Merkel, ao invés de um Schäuble teria feito toda a diferença. Nós também somos informados que o FMI defende a igualdade de gênero. A última afirmação faz sentido se você considerar – como faz Pryce – os limites da ambição feminista algo como responsabilidade corporativa para mulheres trabalhadoras. Mais banalmente, ela sugere que “mais mulheres no governo e na política podem fazer uma diferença para políticas domésticas tais como provisão de cuidados de crianças.

 

Pensamento mágico

Argumentos desse tipo – se eles vêm em suas variantes fortes ou fracas – geralmente descansam em pensamento mágico. As mulheres, nessa história, sempre representam os interesses das mulheres quando elas ocupam funções de tomadoras de decisões. As mulheres compartilham interesses em vez de conflitos, e as mulheres são tão virtuosas que elas nadam acima da maré de outras relações de poder.

O que seriam esses interesses compartilhados? No caso de Pryce, melhor acesso a empregos melhores remunerados e melhores condições para questões específicas das mulheres nos locais de trabalho. É claro, a participação das mulheres em setores de emprego específicos foi injustamente restringida. As mulheres encaram assédio no local de trabalho, e há muito mais o que as empresas podem fazer para apoia-las. Ideias restritivas e de gênero sobre trabalho e práticas discriminatórias de contratação são sintomas de sexismo mais amplo e devem ser combatidas.

Mas nem todos podem ter o tipo de trabalho profissional-gerencial ao qual Pryce quer que as mulheres tenham acesso mais justo. O capitalismo obriga a grande massa das pessoas a trabalhar para viver, sob condições que eles não escolheram, e sobre as quais têm controle muito limitado. A adição de mais mulheres em cargos de chefia não pode derrubar essa realidade.

Mulheres de diferentes classes têm interesses divergentes, assim como sobrepostos. Ambas podem querer evitar assédio sexual no trabalho e ter acesso à decente licença maternidade, mas e se uma emprega a outra? Ou e se uma das uma das economicamente empoderadas bem sucedidas de Pryce trabalha em um setor que depende do acesso a um exército reserva de mão-de-obra feminina barata?

Pryce atribui poderes profundos e purificadores da virtude das mulheres em tais funções:

Se nós conseguíssemos resolver a igualdade de gênero, eu ficaria surpresa se nossa economia e cultura dos locais de trabalho não mudassem tão drasticamente no processo que nós terminaríamos lidando com outras manifestações de vieses conscientes e inconscientes.

Não há razão para pensar que adicionar mulheres em cargos de chefia abordaria o racismo ou outras formas de discriminação; a discriminação é um empregador de oportunidades iguais. Poderia ser o caso que ter mulheres em tais funções melhoraria as políticas de uma organização em apoiar suas funcionárias. É claro, para isso acontecer, aquelas mulheres em cargos de chefia teriam que fazer tais sugestões e vê-las usadas pela empresa. Mas mesmo nesse cenário ideal, o que isso faria para apoiar as mulheres em geral?

O “empoderamento econômico” individual sob o capitalismo não é um objetivo feminista. Ganhar melhor representação nos escalões gerenciais de um sistema baseado na extração de lucro através da dominação, violência e miséria não é uma vitória para as mulheres.

Mulheres no comando

Pryce sugere que o comando das mulheres não é testado: “Nós não tivemos a chance de experimentos controlados sobre o que aconteceria se as mulheres estivessem no comando… se mais mulheres fossem tomadoras de decisões.” Novos experimentos em comando das mulheres supostamente inaugurariam uma nova era de virtude paciente feminina contra o vício masculino do curto prazo.

Aparentemente, a evidência de comando feminino é escassa. De fato, é tão escassa que Pryce deve citar um artigo, pela filósofa Lorna Finlayson, que, na verdade, faz precisamente o argumento oposto. Houve experimentos em comando das mulheres. Como Finlayson escreve:

O período recente, no qual a representação das mulheres aumentou em muitos campos – incluindo no Parlamento – também foi dominado por políticas de austeridade e neoliberalismo. E, pelo menos na Grã-Bretanha, a proposição que líderes políticas mulheres vão cuidar de suas irmãs agora encara dois contraexemplos bastante espetaculares em Margaret Thatcher e Theresa May.

As coisas não são tão diferentes nos negócios também: muitas empresas comandadas por mulheres – e mesmo supostamente feministas – foram acusadas de tratar suas trabalhadoras pobremente. A marca de roupas Nasty Gal enfrentou vários muitos processos sob sua ex CEO e autora de Girlboss, Sophie Amoruso, incluindo um de terminar um contrato por causa de gravidez.

Na Thinx, uma empresa que vende roupa interior à prova de menstruação, a ex CEO, Miki Agrawal, foi acusada de assédio sexual, e a própria empresa de não prover licença parental adequada. Múltiplas funcionárias da Wing – um espaço de co-working millennial cor-de-rosa autoproclamado “utopia das mulheres” – reclamaram de práticas discriminatórias e exploradoras por suas donas “feministas”. Apesar do que Pryce diz, a presença de mulheres em funções de chefia pode nem ajudar suas companheiras trabalhadoras, muito menos mulheres em geral.

 

Inclusão

É uma coisa a dizer que a conta de Pryce não inclui as experiências das mulheres da classe trabalhadora. Até Rachel Reeves, a britânica trabalhista membro do parlamento que uma vez sugeriu que seu partido seria mais forte que os conservadores em responder à ameaça imaginária da dependência do bem-estar, escolheu isso. Em sua resenha sobre “Women vs Capitalism”, Reeves sugeriu que estava faltando “uma análise da experiência das mulheres na base do mercado de trabalho.” Reeves considerou isso uma “vergonha”, em um livro que ela caso contrário acharia “iluminador”.

Mas o que essa “inclusão” realmente significaria? Infelizmente para Reeves, não há capítulo a ser adicionado, nenhuma luz a ser derramada, sem melhorias na marcha em sintonia que em longo prazo pode promover o bem estar das mulheres em cada camada do mercado de trabalho. Para seriamente incluir as experiências das mulheres da classe trabalhadora significaria derrubar as problemáticas ideias no coração do argumento de Pryce. Iria contra a sugestão de que os interesses das mulheres estão unidos em alguma maneira direta, e que a total participação das mulheres na economia capitalista deve ser a medida do sucesso feminista – ou liberação.

Não é suficiente adicionar uma menção das mulheres da classe trabalhadora a análises como a de Pryce: a questão da liberação das mulheres não deve ser reduzida a inclusão de todas as mulheres em algo podre, parcial, explorador ou falso. “Women vs Capitalism” reduz o feminismo a participação igual em um status quo que ativamente prejudica as mulheres da classe trabalhadora.

 

Teoria do empurrão

Pryce não consegue cooptar ou direcionar a crítica ao feminismo corporativo, mas ela e sua editora lançam o livro como um que está assumindo o capitalismo – diretamente combatendo as maneiras nas quais o sistema prejudica as mulheres como um grupo. O livro não faz nada disso. Na luta entre o capitalismo e as mulheres, Pryce está contente em ficar ao lado do capitalismo – mesmo, ela diz, com uma variante de mercado livre.

Na verdade, o título do livro acaba por ser um nome impróprio: para Pryce, não há realmente uma luta entre as mulheres e o capitalismo afinal de contas. Uma falha particular dos mercados capitalistas decepciona as mulheres, mas não há problemas com o capitalismo por si. Ele apenas precisa do tipo certo de empurrão para colocar as coisas de volta no lugar.

O comunismo, nós somos avisados, significaria que “as mulheres tivessem que lutar todos os dias por comida e necessidades básicas” – uma situação obviamente muito diferente da do capitalismo, onde as mulheres famosamente não tem que lutar nem por comida, nem por necessidades.

O livro de Pryce quebra com a tradição do “Faça Acontecer” na medida em que nega um enfoque inteiramente individual, abordando, até certo ponto, as empresas como empregadoras, ao invés das mulheres individualmente. Mas ele continua aquela tradição – com quase uma década agora – de confundir o avanço das mulheres como um grupo com um pequeno número de mulheres alcançando um tipo particular de emprego.

Não é surpreendente que em uma sociedade dominada pelo trabalho, sob o capitalismo, é fácil confundir emancipação com participação econômica completa. Contudo, as feministas podem – e devem – pensar maior.


por Amelia Horgan, Vice-presidente do London Young Labour e atualmente estuda doutorado em filosofia   |   Texto em português do Brasil, com tradução de Luciana Cristina Ruy

Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil (Fonte: Jacobin) / Tornado


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