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Sábado, Novembro 23, 2024

A Débil Mental de Ariana Harwicz inquieta com arroubo de loucura e morte

Novo romance da escritora argentina Ariana Harwicz explora limites da mulher contemporânea – exausta e à beira da loucura. Comparada a Virgínia Woolf devido ao fluxo de consciência delirante que marca a obra, a jovem autora salta com graça pelo tabuleiro do realismo mágico latino-americano sem dever nada aos mestres do boom.

As mulheres estão exaustas. Pelo menos as protagonistas de Ariana Harwicz, autora de “Morra, Amor”, que acaba de lançar seu segundo título no Brasil, “A débil mental”. O romance foi publicado no último dia 10 de agosto, ambos pela Editora Instante.

A prosa de Harwicz é delirante. O tempo todo o leitor precisa tatear no escuro, sem saber bem onde está, porém com a sensação de que urge sair de um lamaçal antes que o pior aconteça. A autora não alivia a tensão, mas também não é um romance policial dos latinos dos anos 1960. É uma narrativa contemporânea, marcada pela paisagem do campo, onde o marasmo e a normalidade podem esconder realidades sórdidas.

A protagonista de “Morra, amor”, o primeiro livro publicado no Brasil, está a um passo de ficar louca com uma vida estúpida no interior. A família perfeita, a criança pesada e barulhenta, o marido apático e idiota e uma sogra queixosa em luto sem fim pelo marido morto. A qualquer momento ela vai enlouquecer, e o leitor – por mais desesperado que fique – não pode fazer nada.

No segundo romance a protagonista enlouqueceu. Não nasce louca. Não tem uma doença e enlouquece. Não padece de uma febre de delírios e calafrios e termina por perder a alma e morrer como doida num manicômio sob a tortura do choque elétrico, ou vítima da lobotomia. A loucura é de outra ordem. Começa como cansaço, obsessão, e termina por ser loucura.

A protagonista sem nome esgarça os clichês ao extremo. A mulher despeitada que planeja matar o amante com uma machadinha porque ele fez um filho em outra. Na esposa, a oficial, a beata angelical que já nasceu com cara de mãe. Mas está louca? Louca de ciúme, de insegurança, de medo de ficar sem emprego para sempre com a mãe velha e enxerida para sustentar. É como se fosse enlouquecendo aos poucos, com doses diárias de violência e controle e luta por sobrevivência, e ao mesmo tempo, sendo enlouquecida.

Essas “mulheres loucas” são um personagem corrente do realismo mágico latino-americano. A prosa de Harwicz parece ter bebido um tanto na perversidade dos “Contos de Amor, de Loucura e de Morte” de Horacio Quiroga. O escritor uruguaio produziu grande parte de sua obra na Argentina no começo do século 20. Explorou a loucura de mulheres isoladas no campo, na paisagem vertiginosa dos pampas, a planície do sul que embaralha as vistas com o sol do meia-dia e deixa o cotidiano com uma cara de fantasia.

É como se agora as mulheres loucas tivessem finalmente ganhado a palavra. É a loucura contada por ela mesma nessa vertigem que faz com que nem tudo seja o que parece, com o risco de o imaginário ser pior. Uma grande vantagem de Harwicz é ter vindo da América Latina, esse continente de doidos, onde a realidade precisa parecer fantástica para ser crível. Pelo menos foi isso que Gabriel Garcia Márquez disse ao ganhar o Nobel, algo como “nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais”.

Com a permissão do absurdo que só o fantástico dá, o vínculo conflituoso entre mãe e filha, eixo da obra de Harwicz é tratado de forma intensa e cruel. A relação de cuidado e controle, medo e fracasso, amor e coerção que continua depois do rompimento do cordão umbilical é explorada por mais escritoras da mesma geração. É o caso da outra argentina, Samanta Schweblin, cujo romance de estreia, “Distância de Resgate” se desenrola na tranquilidade do interior com pitadas de realismo mágico.

Assim como Cortázar, que começou sua carreira na Argentina, mas escreveu sua obra prima – O Jogo da Amarelinha – na França, Harwicz e Schweblin são duas argentinas que vivem atualmente na Europa, nos arredores de Paris e em Berlim, respectivamente. Com suas mulheres à beira da loucura, saltam pelo tabuleiro da amarelinha e fazem do realismo mágico uma narrativa viva e potente, que se reinventa nessa nova geração de escritoras latinas.


por Mariana Serafini, Jornalista e especialista em América Latina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)   |   Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

 

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