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Sábado, Dezembro 21, 2024

O rescaldo da covid-19: do grande confinamento à grande transformação

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

À primeira vista, será o mesmo medo do contágio que nos levou ao Grande Confinamento e que, perante o risco de sucumbirmos à cura, nos conduz agora a rejeitar a sua repetição? ou será já uma primeira reacção à ideia da Grande Transformação sugerida por Kristalina Georgieva e o seu FMI?

Entre as leituras de Bernard-Henry Lévy (Este vírus que nos enlouquece), de Ivan Krastev (O futuro por contar) e das notícias que diariamente nos assolam começa a emergir a necessidade de olhar e reflectir além da espuma dos dias e das notícias mais catastrofistas (como o fez, por exemplo, Daniel Deusdado neste artigo do DN) ou a entender a origem dos protestos contra regras impostas pela pandemia que invadem várias cidades europeias.

À primeira vista, será o mesmo medo do contágio que nos levou ao Grande Confinamento e que, perante o risco de sucumbirmos à cura, nos conduz agora a rejeitar a sua repetição? ou será já uma primeira reacção à ideia da Grande Transformação sugerida por Kristalina Georgieva e o seu FMI?

Apresentada em inícios de Junho perante a Câmara de Comércio Norte-americano, quando as principais economias já começavam a dar alguns sinais de normalização, a ideia assenta na conversão em direcção a uma indústria menos poluente (a economia verde) e na transformação digital, mas deixa por explicar os muitos custos que acarretará.

Cientes da velha práxis do FMI, e à semelhança dos programas de recuperação e modernização anteriormente preconizados, ninguém estranhará que as economias acabem numa situação de maior fragilidade e dependência por via das desregulamentações e das privatizações que irão ser novamente impostas, tanto mais que foi prontamente reconhecido que esta crise trará aumento dos déficits, mais dívida, maior desemprego e níveis mais altos de pobreza. Mesmo com o baixo nível actual dos juros, o aumento dos déficits e da dívida tarde ou cedo trarão a inevitabilidade de novos ajustamentos, o que na linguagem dos criadores do Consenso de Washington (FMI e Banco Mundial) significará redução da administração pública (redução de funcionários públicos e aumento do desemprego), a privatização de bens e serviços públicos e a concessões a empresas estrangeiras da exploração dos recursos naturais dos países como contrapartida para o acesso ao crédito do FMI ou do Banco Mundial.

Por outro lado, a propagandeada conversão energética, ou seja, a transformação de indústrias poluentes em indústrias verdes e limpas, não é isenta de custos nem responde à questão quando sabemos que na maioria dos países a produção de electricidade ainda assenta no uso de hidrocarbonetos; por outro lado a transformação digital acentuará, com o crescimento do e-comércio, do e-learning e das transferências electrónicas, o domínio dos “Cinco Grandes” – os gigantes norte-americanos da web (Google, Apple, Facebook, Amazom e Microsoft, também conhecidos pelo acrónimo GAFAM) – que dominam o mercado digital.

O FMI, preocupado com a construção de uma sociedade mais justa (apresentada como a terceira grande oportunidade criada pela covid-19, depois da economia verde e da transformação digital), já se anunciou pronto para emprestar biliões para o chamado alívio da dívida e assistência financeira – tendo aprovado, para o efeito, o aumento do Catastrophe Containment and Relief Trust (CCRT), de 250 mil milhões para 1 bilião de dólares – para permitir novos investimentos para a transformação desejada, mas isso não passa de adicionar nova dívida para saldar a dívida antiga que só em muito raros casos inclui algum alívio real, ou perdão da dívida.

Será então puro maquiavelismo pensar que perante a anunciada hecatombe das economias, que voltam a ver ressurgir um cenário de profunda debilitação da sua capacidade de remuneração dos capitais, estes procurem fomentar o endividamento dos estados e assim assegurar a mais segura e rentável das aplicações?

E que pensar quando a quase totalidade dos fundos do programa de assistência financeira do FMI são canalizados para países em desenvolvimento e particularmente para uma faixa do continente africano onde as multinacionais agrárias procuram criar um novo e grande celeiro mundial?

Ou quando se esquece que os países mais industrializados também estão a incorrer em enormes gastos (com valores em ordem de grandeza até superiores aos primeiros), senão que a grande diferença deriva do facto destes gerirem dívidas maioritariamente tituladas em moedas nacionais e os outros exclusivamente em moeda (dólares norte-americanos) estrangeira.

Com a dívida mundial, agora impulsionada pelas necessidades sanitárias agravadas por décadas de desinvestimento nas áreas da saúde e da segurança social, em vias de registar novos máximos devemos trazer para a ordem do dia o debate em torno de questões como a de reequacionar o modelo de globalização vigente e o fim da hegemonia do dólar na economia mundial. A recuperação de uma certa economia local e o uso de uma moeda que respeite as políticas nacionais (e não os interesses de investidores e especuladores internacionais), orientada para o desenvolvimento socioeconómico das populações, serão os primeiros e indispensáveis passos no sentido do tal equilíbrio socioeconómico e da maior justiça económica de que tanto se fala, mas que na realidade nunca vemos aplicada.


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