Queria acreditar na sua presença sempre, mas nem sempre isso acontece, ela é tão volátil como o éter das enfermarias, vai-se.
XXIX
Ingere-se cada instante numa súmula constante de instantes, um abraço vagaroso entre sorrisos e lágrimas, sim, afinal a amizade faz chorar quando a sensação reina, nem que seja esse o único instante, mesmo que depois se dilua nos momentos que se seguirão voando mesmo sem asas ao encontro do infinito. Imaginámo-las eternas mas nem sempre o são, nem sempre perduram neste cansaço de ter de se ser o que afinal não sentimos, somos diluídos também quando conseguimos esquecer, quando nos sentimos vencidos pelo momento em que julgávamos a eternidade daquele abraço apenas fugaz, levado depois para tão longe de nós que conseguimos mesmo esquecê-lo. São inócuas as que são, nem sempre assim acontece, nem sempre nos sentimos degolados pela sensação, pela emoção, pelo que afinal sentimos, vemo-nos na verdade imbuídos nesse mar salgado de ondas saltitantes que nos fazem até saltar como as ondas que flutuam as alegrias desta tão sóbria vida: a felicidade. A amizade é na verdade uma sensação enorme de felicidade, sentirmos que partilhamos a mesma dor e a mesma alegria, repetir sem nos apercebermos da mesma mágoa, vivermos os mesmos momentos ainda que longe uns dos outros. Como troncos que alicerçam a árvore que nos faz viver a longevidade de uma imensa árvore neste quintal comum, o nosso, neste sangue que flui e jorra para dentro nas veias que a vida nos concede, regados todos os dias pela milagrosa chuva que o céu maravilhoso nos oferece, que saibamos assim cumprir sem obrigações.
O olhar reflecte a verdade dessa sensação, o espelho natural da nossa pele encostada como uma divindade oferecida, uma relíquia que poucos conseguirão sentir ou vivenciar, por isso vivamos, mas com felicidade, verdade, nada se consegue sem que o coração assinale e marque ou registe bem por dentro das nossas consciências, um acto de reflexão para que nos sintamos granjeados pelo divino ser que nos aprova os actos: a vida.
Sabes, sinto em cada sonho esse fluir noite a dentro, deitado nas coisas boas que imagino e pretendo, um sonho repetido dia após dia como que de um alimento se tratasse, uma refeição obrigatória alimentando todos os momentos em que sentimos gratificados em nós mesmos pelos actos altruístas desse sentimento natural como a terra que nos cobrirá um dia: a verdade. Sim, nem sempre perdura, nem sempre é como imaginamos ou pensamos, tantas vezes nos desiludimos e nos sentimos feridos, tantas as desilusões que nos castram os movimentos, prendem-nos tudo, a vaidade seca e por instantes desesperamos, cansamo-nos de ser, existir, pensar, fugimos das fantasias decoradas nas bermas de estradas longínquas tal a desilusão, desilusão porquê então? Há quem diga que só dói quando apostamos, quando confiamos e acreditamos, quando já nos sentimos membros dessa comunidade a dois vivenciando todos os dias e confidenciando sempre, sim, tudo se dilui como trevas cansadas e o peso que sentimos sobre a alma, o olhar estarrecido e poisado num além que não existe, o olhar fecha-se diante de um dia ensolarado e belo. Queria acreditar na sua presença sempre, mas nem sempre isso acontece, ela é tão volátil como o éter das enfermarias, vai-se.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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