Um conjunto de ilustres influenciadores que quotidianamente ocupam o espaço mediático a pretexto da Covid-19, constituídos numa “Convenção Nacional da Saúde”, realizaram ontem (18/11/2020), uma “E-Conference” que designaram como “71 minutos pela Saúde” onde, com alguns convidados, se apresentaram com um ‘guião’ para dar continuidade à linha de atuação que tem sido protagonizada pelos bastonários das Ordens.
Após três meses de preparação, este tele-seminário visou essencialmente promover os objetivos do “mercado da doença” e transmitir perspetivas marcadamente retóricas, generalistas e contraditórias além de ter ilustrado, na prática, que mesmo com planeamento, sabedorias e meios o evento não evitou equívocos, derrapagens e falhas (1).
O guião estruturante desta iniciativa é óbvio e o seu ponto de referência situa-se na resposta que o Estado terá que assegurar para os doentes que não têm Covid-19. O presidente da Convenção, Eurico Castro Alves, logo na sua tele-apresentação deixou claro o propósito quando referiu: «há milhões e milhões de consultas e de atos médicos que deixaram de ser realizados, há milhares e milhares de intervenções cirúrgicas que deixaram de ser feitas» (…) e «é nosso dever lembrar a quem tem hoje a responsabilidade das decisões na saúde que há um grupo muito grande de portugueses que está neste momento com a sua saúde em risco e é aqui que o nosso (2) contributo será importante».
A partir deste ‘leitmotive’ o guião delineou o percurso.
Primeiro, descredibilizar e fragilizar a governação acentuando erros no combate à Covid-19 com três causas em destaque (i) as más opções dos decisores e dos especialistas envolvidos (ii) a ausência de planeamento, a desorganização e a crescente incapacidade de resposta e (iii) o fechamento dos governantes a ouvirem os verdadeiros conhecedores da realidade e às colaborações que lhes são oferecidas.
Segundo, destacar que, neste quadro dramático, o pior que acontece e que se vai agravar é a situação do «país dos portugueses que não têm a doença Covid-19» (Eurico Castro Alves). Neste eixo cabia evidenciar que (i) aqueles que já ‘são’ doentes e aqueles que virão a sê-lo estão desamparados e desrespeitados, (ii) o Serviço Nacional de Saúde (SNS) está esgotado e sem capacidade de resposta e (iii) há recursos que não têm sido devidamente aproveitados.
Terceiro, evidenciar que é necessário e é possível corrigir o rumo e responder aos graves problemas que se avizinham desde que haja sabedoria, planeamento e mobilização de meios.
Este guião habilidosamente arquitetado foi vivificado com um conjunto de intervenções de convidados e organizadores.
A tele-palestra do “keynote speaker”, António Ferreira, que se apresentou como «discordando radicalmente das atitudes e das estratégias que estão a ser seguidas para o combate à pandemia na maior parte dos países industrializados e em Portugal também» foi, sobretudo, uma tentativa de demonstrar que «todas as medidas conducentes à paragem de atividade social e económicas são inúteis e prejudiciais».
As tele-entrevistas repartiram-se entre algumas que, certamente bem intencionadas, ilustraram as dificuldades sentidas hoje no terreno assim como as carências vivenciadas por “doentes não-Covid” e outras (bastonários das Ordens, Germano de Sousa, Manuel Carvalho e Óscar Gaspar) que foram entrelaçando o fio condutor da Convenção.
Ainda que o “comentário final” (António de Sousa Pereira) até tenha alertado para algumas contradições e a ausência de “encerramento” não tenha permitido a síntese conclusiva anunciada, o objetivo principal desta iniciativa terá sido cumprido. A “E-Conference” serviu seguramente para passar a mensagem que, subliminarmente, era transversal a todo o ‘guião’ da iniciativa e que se pode sistematizar em três pontos:
- A Saúde está mal e vai piorar sobretudo para os “doentes não Covid19”
- Dada a pouca competência e a incapacidade dos envolvidos (governantes, especialistas e profissionais) é necessário que, connosco (eles, claro!), haja planeamento e decisões acertadas.
- A solução só não a vê quem está toldado por “preconceitos ideológicos” pois é indispensável pagar aos “players” privados, sociais e cooperativos para fazerem «os milhões de atos médicos que ficaram por fazer».
A visualização dos 118 minutos da “E-Conference” é a melhor comprovação da análise que dela fazemos mas algumas frases ali proferidas ilustram quanto o discurso pretensamente “consensualista”, pragmático e empenhado constituiu um iniludível biombo para propósitos bem mais prosaicos.
…eu partilho muito das preocupações e das críticas que são feitas, nomeadamente, ao caos informativo que é produzido quer pela DGS quer pela própria ministra da Saúde…»
…faz falta um fórum onde os vários intervenientes no processo de saúde possam participar para dar a sua opinião e possam, sobretudo, ser ouvidos pelas autoridades o que penso que é algo que neste momento não está a acontecer como ficou óbvio neste webinar…» ]…»
…a mim ninguém me pediu ajuda até hoje portanto deduzo que ninguém está a tratar do problema …»
…nós continuamos a seguir manuais que já ninguém percebe… nós temos maus generais… o que nos falta são elites e líderes”
…os doentes não-Covid são uma parte muito importante do sistema e nós estamos perante duas pandemias, uma mais mediática que abre os telejornais que tem a ver com o Covid mas depois temos milhões de portugueses que têm doenças…»
…assinei com muito gosto e honra a carta dos bastonários para chamar a atenção para …que a realidade, apesar de alguma recusa inicial por razões mais ideológicas do que reais, transportou-nos até hoje onde é essencial recorrer às misericórdias e aos privados para o Covid e para o não-Covid…»
…nós representamos 30% da capacidade hospitalar do país portanto com organização e planeamento é possível articular as diversas peças do sistema para que todos nos demos melhor…»
… falta aqui uma estratégia conjunta, uma task force credível, com vários agentes, privados, ordens profissionais, investigadores …. Um comité de decisão com reuniões semanais. »
Finalmente, resta-nos esclarecer a razão de duas notas iniciais. Em (1) afirmámos que a planificação da “E-Conference” não evitou que a iniciativa tivesse equívocos com convidados que foram bastamente anunciados e que afinal não existiam, que apresentasse a derrapagem de 50% nos tão publicitados 71 minutos e que evidenciasse falhas como o silêncio do “chairman” Miguel Guimarães por falta de tempo e o eclipse da sessão de encerramento com o fim abrupto da tele-conferência. Com a nota (2) não pudemos deixar de compaginar a declaração do presidente da Convenção – «há um grupo muito grande de portugueses que está neste momento com a sua saúde em risco e é aqui que o nosso contributo será importante», com a “disponibilidade” manifestada por Óscar Gaspar em nome da hospitalização privada.
Nem a Ministra nem o autarca estiveram presentes e o ‘encerramento’ não se realizou
O ‘chairman’ da e-conference que afinal não falou
«Neste momento há acordo para 600 camas nos hospitais privados das quais 86 para apoio ao Covid»
por Maria Catarina Sanches Torga | Por opção do autor, este artigo respeita o AO90
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