A democracia americana está morta! Por mais injusta que fosse a sua tendência, a democracia capitalista pelo menos oferecia a possibilidade de reformas graduais e fragmentárias. Agora é um cadáver.
Chris Hedges, o antigo jornalista do New York Times e do The Christian Science Monitor, galardoado com um Prémio Pulitzer em 2002, em pleno rescaldo das eleições nos EUA escreveu na página Scheerpost um artigo homónimo onde analisa a complicada situação norte-americana e do qual destaco algumas linhas, que não são uma tradução, antes uma tentativa de compilação das principais ideias incluídas no artigo.
A democracia americana está morta! Por mais injusta que fosse a sua tendência, a democracia capitalista pelo menos oferecia a possibilidade de reformas graduais e fragmentárias. Agora é um cadáver.
A iconografia e a retórica permanecem iguais, mas está reduzida a um reality show elaborado e vazio, financiado pelos oligarcas no poder (nas recentes eleições foram aplicados 1,51 mil milhões de dólares na campanha de Biden e 1,57 mil milhões de dólares na campanha de Trump) para nos fazer crer que há escolhas, quando não há.
O duelo balofo entre o tempestuoso Presidente Donald Trump e um Joe Biden com deficiência verbal foi projectado para disfarçar uma verdade onde os oligarcas ganham sempre e as pessoas perdem sempre. Não interessa quem se senta na Casa Branca. A América é um estado falhado.
Os principais actores mataram a sociedade livre norte-americana. Os oligarcas corporativos que compraram o processo eleitoral, incluindo a imprensa e os tribunais, e cujos lobistas redigem a legislação para nos empobrecer e permitir que acumulem quantias obscenas de riqueza e poder irrestrito.
Os militaristas e a indústria de guerra que drenaram o tesouro nacional para montar guerras inúteis e sem fim que esbanjaram cerca de 7 biliões de dólares e nos transformaram em párias internacionais. Os directores executivos das grandes empresas, que arrecadaram bónus e indemnizações na ordem das dezenas de milhões de dólares, deslocalizaram empregos para o exterior, deixaram as nossas cidades em ruínas e os nossos trabalhadores na miséria e no desespero sem um rendimento sustentável ou esperança para o futuro.
A indústria dos combustíveis fósseis que faz guerra à ciência e optou pelos lucros em detrimento da iminente extinção da espécie humana. A imprensa que transformou as notícias em entretenimento estúpido e em questiúnculas partidárias. Os intelectuais que se retiraram para as universidades para pregar o absolutismo moral da política de identidade e do multiculturalismo, enquanto viravam as costas à guerra económica que estava a ser travada contra a classe trabalhadora e ao ataque implacável às liberdades civis. E, claro, a classe liberal irresponsável e hipócrita que não faz nada além de falar, falar, falar; colocaram-se como árbitros morais da sociedade enquanto abandonam todos os valores que supostamente possuem no momento em que se tornam inconvenientes e serviram como apoiantes patéticos de um candidato e de um partido político que na Europa seria considerado de extrema direita
A campanha de Biden apresentou-se totalmente desprovida de ideias e programa político, como se ele e os democratas pudessem limpar as eleições prometendo salvar a alma da América.
Como mostrado pela campanha eleitoral, os democratas e os seus apologistas liberais – transformados em subsidiários dos doadores empresariais, a quem é impossível a defesa de qualquer política que pudesse promover o bem comum, diminuir os lucros e restaurar a democracia, incluindo a imposição de leis de financiamento de campanha – estão alheios ao profundo desespero pessoal e económico que atravessa o país; não representam nada e evitam todas as questões que lhes possam provocar desgaste, como mostra o silêncio sobre temas como a restauração do Estado de Direito, a saúde universal, a proibição do fracking, um New Deal Verde, a protecção das liberdades civis, a formação de sindicatos, a preservação e expansão de programas de bem-estar social, a moratória sobre despejos e execuções hipotecárias, o perdão de dívidas estudantis, a promoção de controlos ambientais rígidos, um programa de empregos do governo e de renda garantida, a regulamentação financeira, a oposição à guerra sem fim e aos aventureirismos militares.
Pelo menos os neofascistas têm a coragem de suas convicções dementes.
A rendição da elite liberal – que deixou de funcionar como uma válvula de escape – ao despotismo cria um vácuo de poder que é preenchido pelos especuladores, exploradores de guerra, gangsters e assassinos, muitas vezes liderados por demagogos carismáticos. Ele abre as portas para movimentos fascistas que ganham proeminência ridicularizando os absurdos da classe liberal e insultando os valores que estes dizem defender. As promessas dos fascistas são fantásticas e irrealistas, mas as suas críticas à classe liberal são justas e fundamentadas.
As recentes eleições confirmaram que o fenómeno do “trumpismo”, com ou sem Trump, está profundamente enraizado na sociedade americana, que é expressão de uma alienação e raiva legítimas alimentada em grandes segmentos da população, ridicularizados pelas elites liberais como “deploráveis”, e que já não se limita aos homens brancos, cujo recente apoio a Trump até diminuiu.
A recusa da classe liberal em reconhecer que o poder foi arrancado das mãos dos cidadãos pelos interesses empresariais, que a Constituição e as suas garantias de liberdade pessoal foram revogadas por decreto judicial, que as eleições nada mais são do que espectáculos vazios encenados pelas elites governantes, que estamos no lado perdedor da guerra de classes, deixou-a a falar e a agir fora da realidade.
O sistema de saúde com fins lucrativos, projectado para ganhar dinheiro e não para cuidar dos doentes, não está equipado para lidar com uma crise nacional de saúde. Para aumentarem os lucros, as empresas do sector da saúde passaram as últimas décadas a fundir e encerrar hospitais e a reduzir o acesso aos cuidados de saúde em comunidades por todo o país, enquanto quase metade de todos os trabalhadores perderam o direito a subsídios de doença e cerca de 43 milhões de americanos deixaram de ter seguros de saúde patrocinados pelos empregadores. Assim, a pandemia, sem um sistema de assistência médica universal, que Biden e os democratas também não têm intenção de estabelecer, continuará fora de controlo e quando terminar o número de mortos atingirá muitas centenas de milhares.
Qualquer que seja o ocupante da Casa Branca, a inevitável agitação social fará com que o estado, suportado por um sistema legal que revoga rotineiramente o habeas corpus e o devido processo legal, use seus três principais instrumentos de controle social – a vigilância indiscriminada, as prisões e a militarização policial – para esmagar implacavelmente a dissidência.
As consequências económicas da pandemia, o subemprego crónico e o desemprego – que deverá rondar os 20%, quando forem contabilizados todos os que deixaram de procurar trabalho, que foram dispensados sem qualquer perspectiva de readmissão e aqueles que trabalham a tempo parcial – significará uma depressão diferente de tudo que conhecemos desde a Grande Depressão.
Desde o ano passado triplicaram as situações de fome nas famílias dos EUA e a proporção de crianças americanas sem o suficiente para comer é 14 vezes maior. Os bancos de alimentos estão saturados; a moratória sobre execuções hipotecárias e despejos foi suspensa, enquanto mais de 30 milhões de americanos pobres enfrentam a perspectiva de serem despejados.
As pessoas de cor, os imigrantes e os muçulmanos serão acusados e culpados do declínio da nação pelos fascistas nacionais e os poucos que continuarem a desafiar o Partido Democrata e a denunciar os crimes do Estado corporativo e do império serão silenciados. A esterilidade da classe liberal, servindo os interesses de um Partido Democrata que os despreza e ignora, alimenta os sentimentos generalizados de traição que viram quase metade dos eleitores apoiar um dos presidentes mais vulgares, racistas, ineptos e corruptos da história americana.
Ao que tudo indica, uma tirania americana, revestida com o verniz ideológico de um fascismo cristianizado, irá definir a descida histórica do império à irrelevância.
A referência à apreciação realizada por Chris Hedges parece-me pertinente e a sua apresentação especialmente adequada, por constituir um ponto de vista sobre a realidade norte-americana muito pouco divulgado na imprensa europeia.
Fonte: Chris Hedges: American Requiem
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