Em torno da discussão e votação do Orçamento do Estado para 2020 gerou-se novamente alguma controvérsia típica de uma governação sem maioria absoluta.
Déjá vu?
Em torno da discussão e votação do Orçamento do Estado para 2020 gerou-se novamente alguma controvérsia típica de uma governação sem maioria absoluta.
Escrevi, recordo, em 5 de Dezembro de 2018 no Jornal Tornado a propósito do Orçamento de 2019 (Todos os caminhos vão dar ao Orçamento do Estado).
Depois de um bombardeamento noticioso segundo o qual as propostas de alteração na especialidade ao Orçamento do Estado para 2019, emanadas quer do próprio Partido Socialista, quer dos partidos à sua esquerda e à sua direita eram cerca de mil – mais precisamente 993 – e representavam em perda de receita ou em aumento de despesas 5, 7 mil milhões de euros, tudo sossegou com uma “escassas” 217 aprovadas, as quais em diversos casos até vão permitir aumentos de receita.
Este ano, a propósito do Orçamento de 2021, foram apresentadas segundo o Público, 1365 propostas de alteração sendo que o BE que apresentara 224 no OE para 2019, só apresentou 12 para 2021, atenta a sua votação contra o Orçamento de Estado na generalidade. Recordando-se embora que o PAN passou a ter um grupo parlamentar e que existem outros dois partidos parlamentares com um deputado cada um e duas deputadas não inscritas, há de facto uma progressão.
Os comentários do Director do Público, que passou agora a usar óculos nas fotografias inseridas junto aos seus editoriais.
Cada partido se acha no direito de ir à feira e negociar tudo e mais alguma coisa. A tenda montada pelo PS favorece claramente os clientes do PCP para levar o Orçamento a bom porto e deprecia todos os outros, principalmente o cliente que questionou os preços e a qualidade do produto – o Bloco, claro está. Há avanços e recuos, suspensões de agenda, birras, chantagens, adiamentos e negociações de bastidores. Há excesso de vaidade, de indiferença e de autismo. E, sim, há uma corrida para ver quem consegue aumentar mais a despesa do Estado num país exaurido.
São dignos das folhas anti-parlamentares em que nos anos 1920 os círculos anti-democráticos se permitiram atacar os partidos e a votação dos orçamentos pelo parlamento, acabando por conseguir a interrupção desta votação por 50 anos, isto é, entre 1926 e 1976.
Também existe quem não faça a menor ideia do efectivo alcance das decisões orçamentais em outros aspectos da nossa vida colectiva.
Por exemplo, houve quem escrevesse no seu mural do Facebook e logo visse a sua mensagem errónea difundida por uma amiga comum:
Se o OE for chumbado o governo entra em gestão“.
Como toda a gente devia saber, um OE chumbado faz cessar todas as medidas extraordinárias em vigor“.
Para o ano, se o psicodrama da aprovação do Orçamento for reeditado, serei eu a propor outra:
“Se o OE for chumbado o Sol passará a nascer fora do seu lugar”:
Não me parece que, sendo fundamentalmente respeitável, a posição do Governo de manter um orçamento de ajuda à economia em resposta à crise da COVD – 19, fosse de chumbar a Proposta de OE para 2021, que merecia ser – e foi – ajustada, bem como ser articulada com algumas políticas na área social, e sobretudo com o reequilíbrio das relações de trabalho. Tentaram-no o BE e o PCP e fizeram bem. Mas há uma pequena coisa chamada correlação de forças, que não depende da nossa subjectividade e que não pode ser ignorada, pelo que não espero muito dos resultados.
Entretanto, com toda uma série de decisões a serem condicionadas pelo Orçamento do Estado, facilmente poderemos, como escrevi anteriormente, ser empurrados para situações – limite:
- ou um Governo minoritário é insuportavelmente desfeiteado pelo Parlamento na votação do Orçamento do Estado restando-lhe pedir a declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade da Lei que o aprovou ou ao Presidente da República o veto do Decreto da Assembleia que lhe é enviado para promulgação;
- ou o Parlamento decide tudo a contento do Governo na altura da votação do Orçamento e passa o resto do ano a votar “Recomendações”.
A nossa experiência das últimas décadas, em que têm predominado Governos maioritários, tem-nos colocado mais perto deste segundo cenário.
A constituição de um governo assente numa coligação formal seria uma solução de longe mais desejável, mas parece que é mais fácil fazê-las à direita do que à esquerda.
O “choque BE”
A decisão que o Bloco de Esquerda tomou de votar contra a Proposta de Orçamento do Estado de 2011 logo na generalidade pode ser explicada como uma reacção a sucessivas procrastinações do Partido Socialista que apareceram como especialmente intoleráveis no que à área laboral diz respeito, mas poderá também resultar de uma necessidade de clarificação do papel das várias forças políticas de esquerda, que o BE tem colocado desde que antes das legislativas se reconfigurou como possível participante no Governo … o que não deixou de ter reflexos na sua vida interna … e, apesar dos bons resultados eleitorais em 2019, foi ignorado.
Se o partido momentaneamente dissidente e a sua candidata presidencial serão ou não penalizados em termos eleitorais por esta posição é o que resta ver, sendo que para mim a questão tem interesse meramente académico.
Registou-se de imediato entre militantes e simpatizantes socialistas uma reacção negativa, partilhada por milhares de vozes, contra a posição do Bloco, e também contra os seus dirigentes históricos ou actuais – Francisco Louçã, Catarina Martins, as “meninas”, etc. etc. – de carácter um tanto descabelado que não poderá deixar de minar as possibilidades de futuro relacionamento…. Reacção basicamente espontânea mas alimentada também por alguns cheerleaders e pelo próprio Costa. Suceder isto à esquerda com um partido cujas posições, bem vistas as coisas, lhe permitem dialogar com o PS em numerosas áreas, tem o seu quê de suicidário. Veja-se o drama das três sucessivas eleições legislativas espanholas em que a esquerda foi perdendo força até enfim se constituir uma coligação que depende de apoios pontuais para subsistir.
Curiosíssimo foi o puxão de orelhas de Boaventura Sousa Santos no artigo “Um estranho desentendimento” em que este académico, que formou uma grande parte dos actuais dirigentes do Bloco, escreveu:
Tive o privilégio de acompanhar de perto as negociações entre o BE e o PS. Uma análise superficial do discurso dos porta-vozes fez-me crer que provavelmente desde o início nenhum dos dois partidos quisera o acordo. No entanto, à medida que se aproximava a conclusão do processo e analisava a documentação disponível, comecei a suspeitar que a resistência ao acordo vinha sobretudo dos órgãos dirigentes do BE. Pela seguinte razão. O órgão que tomou a decisão é a mesa nacional constituída por quase 80 pessoas, as quais votaram unanimemente contra a viabilização do OE, quando as sondagens indicavam que quase 70% dos eleitores do Bloco defendiam a viabilização do OE.
Retirando a seguinte conclusão
Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.
Boaventura está cheio de energia, tem os mesmos 77 anos que tinha Joe Biden quando concorreu e foi eleito Presidente dos Estados Unidos, deveria candidatar-se contra Marcelo Rebelo de Sousa. Veremos se os 80 elementos da Mesa Nacional do BE lhe irão pedir perdão de corda ao pescoço.
Incompetência e demagogia nos discursos sobre o Orçamento
Entre as vozes que se levantam contra os Orçamentos do Estado existem as de quem, tendo lido sucessivos Orçamentos, nunca os tenha compreendido ou de quem teça as mais estapafúrdias considerações sem sequer os ter lido.
Carlos Carvalhas, deputado à Assembleia da República em sucessivas legislaturas, veio a certa altura a manifestar desconforto com a existência, todos os anos, de verbas para “Aquisição de Serviços – Não especificados”. No seu espírito “Não especificados” cedo se assimilou a “Não justificados”.
Ora a classificação de despesas ´públicas por objecto conhecera uma primeira versão em 1929, com a assinatura de Salazar, que muito provavelmente não seria o seu autor material fora revista em 1939 e substituída em 1972 e 1976 por classificações económicas das despesas ajustadas à necessidade de alimentar com informação os sistemas de contas nacionais . O âmbito do “Código 31.00 – Aquisição de serviços não- especificados” resultava da estrutura da própria classificação.
Quando em 1985 Carvalhas se candidatou à Câmara de Lisboa trazia consigo uma proposta para resolver os problemas financeiros do município: afectar-lhe as verbas que o Orçamento do Estado inscrevia em “Aquisição de serviços – não especificados”. Não viria a ter o meu voto: nem como candidato à Câmara, nem como candidato a deputado, nem, mais tarde, como candidato a Presidente da República. Had enough ! Se era incompetente ou demagogo, ou um misto das duas coisas, nunca percebi..
Na discussão do Orçamento do Estado para 2021, outro Carvalhas se levantou, desta vez na pena da colunista do Público, Susana Peralta, em artigo em que também, tal como o Director do jornal, passou a aparecer de óculos, e onde se pode ler:
Há duas semanas, escrevi com um conjunto de pessoas uma carta ao ministro das Finanças, onde questionamos uma série de verbas não justificadas inscritas no OE 2021. Este dinheiro podia servir para ajudar as portuguesas e os portugueses que não conseguem pagar o pão.
Exemplos? Quase 10 mil milhões de “despesas excecionais”, 5 mil milhões de empréstimos não sabemos a quem, 2 mil milhões de participações de capital também sem destinatário conhecido.
“Despesas excepcionais” podem ser encontradas há décadas no nosso Orçamento, e a partir de 1976, por sinal por força do mesmo diploma que criou na classificação económica das despesas públicas o infame código relativo a “Aquisição de serviços não especificados”, passaram a ser obrigatoriamente inscritas no Ministério das Finanças sob a classificação orgânica “Capítulo 60 – Despesas excepcionais.” com diversas divisões e subdivisões, estruturadas por rubricas de classificação económica.
Aí se inscrevem por exemplo dotações de capital que são atribuídas às empresas públicas para servirem de contrapartida à realização de investimentos – por exemplo com os transportes ferroviários, ou para saneamento financeiro. E também, segundo penso, as indemnizações compensatórias das obrigações não-comerciais assumidas pelas empresas públicas. E ainda figuras híbridas entre uma coisa e outra, como as dotações para reforço das empresas públicas do sector hospitalar para repor o capital consumido durante o ano, numa técnica orçamental que me parece criticável.
Andará também por aí a dotação provisional que serve durante o ano de contrapartida ao reforço de dotações para outros Ministérios, o que quer dizer que João Leão não pode abrir no Terreiro do Paço um guichet para distribuir pão ou servir uma sopa dos pobres mas pode sim fazer transferências para reforçar o orçamento das entidades a quem incumbe fazê-lo.
E atenção, que se a receita não entrar segundo as previsões – estamos a falar de dinheiro que não se sabe se virá a existir – as dotações inscritas em “despesas excepcionais” serão provavelmente as primeiras a ser reduzidas.
Não desejo a Susana Peralta que vá para deputada, mas gostaria que, como forma de se familiarizar mais com o Orçamento do Estado, se envolva na preparação da Budget Watch que o Institute of Public Policy irá apresentar sobre o Orçamento do Estado para 2022.
Se em 2022 ainda houver Orçamento, entenda-se.
Público, 14-11-2020 “Partidos entregam 1365 propostas de alteração. Só o PCP entregou 320”
“Uma votação contaminada pelo ridículo”, 24-11-2020.
Faço notar no entanto que a entrada em vigor por duodécimos de um Orçamento de 2020 revisto por um “Orçamento Suplementar” liberto (embora temporariamente) dos constrangimentos do défice e em que se poderiam realizar alterações orçamentais, seria tecnicamente gerível. Não se trata de viver das “sobras” do ano anterior, como por vezes ingenuamente se acredita.
A famosa “reforma orçamental” de 1928, subsequente à sua segunda tomada de posse como Ministro das Finanças, teve de ser completada em 1929 pelo Decreto nº 16 670, relativo ao orçamento da despesa, no qual o famoso Professor de Finanças não estava tão â vontade.
Em boa verdade, Carvalhas não era o único a veicular na época propostas deste tipo: na altura alguma esquerda brasileira defendia que não se pagasse a dívida externa e logo os seus homólogos portugueses lançaram a palavra de ordem “Não pagar a dívida externa e usar esse dinheiro no pagamento dos salários em atraso”.
Público, de 20-11-2020 “ Dinheiro público mal gasto e pessoas sem dinheiro para o pão”
Nesse conjunto estavam incluídos os conhecidos Paulo de Morais e Raquel Varela.
Decreto-Lei nº 737/76, de 16 de Outubro.
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