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João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 1, 2024

A Covid-19 e a crise econômica global

A pandemia revelou profundas divisões, mas não é tarde para mudar de curso.

Superando o grande divisor[1]

Tradução de Artur Araujo para artigo de Joseph Stiglitz publicado pelo FMI – Finance & Development

 

A Covid-19 não tem sido uma doença associada à igualdade de oportunidades: ela persegue as pessoas com saúde debilitada e aquelas cuja vida diária as expõe a um maior contato com outras pessoas. E isso significa que atinge desproporcionalmente os pobres, especialmente nos países pobres e em economias avançadas, como os Estados Unidos, onde o acesso à saúde não é garantido.

Uma das razões pelas quais os Estados Unidos foram afetados com o maior número de casos e mortes (pelo menos no momento da conclusão da redação deste artigo) é porque eles têm um dos mais baixos padrões médios de saúde entre as principais economias desenvolvidas, exemplificado pela baixa expectativa de vida (menor agora do que há sete anos) e os níveis mais altos de disparidades de saúde.

Em todo o mundo, existem diferenças marcantes na forma como a pandemia foi gerenciada, tanto em termos do sucesso dos países na manutenção da saúde dos seus cidadãos e da economia, como na magnitude das desigualdades apresentadas.

As razões para essas diferenças são muitas: o estado preexistente dos cuidados com saúde e as desigualdades no setor; a preparação prévia de um país e a resiliência de sua economia; a qualidade da resposta pública, incluindo confiança na ciência e na expertise; confiança dos cidadãos na orientação do governo; e como os cidadãos equilibraram suas “liberdades” individuais de fazer o que quisessem com o respeito aos outros, reconhecendo que suas ações geravam externalidades. Os pesquisadores passarão anos analisando a força de vários efeitos.

Ainda assim, dois países ilustram as prováveis ​​lições que surgirão. Se os Estados Unidos representam um extremo, talvez a Nova Zelândia represente o outro. É um país em que um governo competente confia na ciência e na expertise para tomar decisões, um país onde há um alto nível de solidariedade social – os cidadãos reconhece que seu comportamento afeta os outros – e de confiança, incluindo confiança no governo.

A Nova Zelândia conseguiu controlar a doença e está trabalhando para redistribuir alguns recursos subutilizados para construir o tipo de economia que deve marcar o mundo pós-pandemia: uma economia que seja mais verde e mais baseada no conhecimento, com ainda maior igualdade, confiança e solidariedade. Há uma dinâmica natural em ação. Esses atributos positivos podem se reforçar mutuamente. Da mesma forma, pode haver atributos adversos e destrutivos que sobrecarregam uma sociedade, levando a menos inclusão e a mais polarização.

Infelizmente, por pior que fosse a desigualdade antes da pandemia, e por mais intensamente que a pandemia tenha exposto as desigualdades em nossa sociedade, o mundo pós-pandêmico poderá experimentar desigualdades ainda maiores, a menos que os governos façam algo. O motivo é simples: a Covid-19 não irá embora rapidamente. E o medo de outra pandemia persistirá. Agora é mais provável que tanto o setor privado quanto o público levem a sério os riscos.

E isso significa que certas atividades, certos bens e serviços e certos processos produtivos serão vistos como mais arriscados e caros. Embora os robôs sejam contaminados por vírus, são vírus de um tipo mais facilmente gerenciado. Portanto, é provável que os robôs, sempre que possível, pelo menos na margem, substituam os humanos. Reuniões virtuais [zooming] irão, pelo menos na margem, substituir as viagens aéreas. A pandemia amplia a ameaça da automação para trabalhadores de serviços pessoais pouco qualificados, que a literatura até agora viu como menos afetados – por exemplo, na educação e na saúde.

Tudo isso significará que a demanda por certos tipos de mão de obra diminuirá. É quase certo que essa mudança aumentará a desigualdade – acelerando, de certo modo, tendências já em curso.

 

Nova economia, novas regras

A resposta fácil é acelerar a qualificação e o treinamento em conjunto com as mudanças no mercado de trabalho. Mas há boas razões para acreditar que essas etapas por si só não serão suficientes. Será necessário um programa abrangente para reduzir a desigualdade de renda.

O programa precisa primeiro reconhecer que o modelo de equilíbrio competitivo (por meio do qual os produtores maximizam o lucro, os consumidores maximizam a utilidade e os preços são determinados em mercados competitivos que igualam a demanda e a oferta), que dominou o pensamento dos economistas por mais de um século, não fornece uma boa descrição da economia de hoje, especialmente quando se trata de compreender o crescimento da desigualdade, ou mesmo o crescimento impulsionado pela inovação.

Temos uma economia repleta de poder de mercado e de exploração. As regras do jogo são importantes. O enfraquecimento das restrições ao poder corporativo; a minimização do poder de barganha dos trabalhadores; e a erosão da regulação da exploração de consumidores, tomadores de empréstimos, estudantes e trabalhadores somaram-se para criar uma economia de pior desempenho, marcada por maior rentismo e maior desigualdade.

Precisamos de uma reformulação abrangente das regras da economia. Por exemplo, precisamos de políticas monetárias que se concentrem mais em garantir o pleno emprego de todos os grupos sociais e não apenas na inflação; de leis de falência mais equilibradas, substituindo aquelas que se tornaram muito pró-credores e exigem muito pouca responsabilidade de banqueiros que se engajaram em empréstimos predatórios; e de leis de governança corporativa que reconheçam a importância de todas as partes interessadas, não apenas a dos acionistas.

As regras que governam a globalização devem servir para mais do que apenas atender aos interesses corporativos; os trabalhadores e o meio ambiente devem ser protegidos. A legislação trabalhista precisa ser mais eficaz na proteção aos trabalhadores e prover mais espaço para a ação coletiva.

Mas tudo isso não irá, pelo menos no curto prazo, criar a igualdade e a solidariedade de que precisamos. Precisaremos melhorar não apenas a distribuição de renda pelo mercado, mas também a forma como a redistribuímos. Perversamente, alguns países com o mais alto grau de desigualdade de renda de mercado, como os Estados Unidos, na verdade têm sistemas fiscais regressivos em que os que ganham maiores salários pagam uma parcela menor de sua renda em impostos do que os trabalhadores que estão mais abaixo na escala.

Na última década, o FMI reconheceu a importância da igualdade na promoção do bom desempenho econômico (incluindo crescimento e estabilidade). Os mercados, por si próprios, não prestam atenção aos impactos mais amplos que surgem de decisões descentralizadas que levam a endividamento excessivo em moedas estrangeiras ou à excessiva desigualdade.

Durante o reinado do neoliberalismo, nenhuma atenção foi dedicada a como as políticas (tais como a liberalização dos mercados financeiro e de capitais) contribuíram para maiores volatilidade e desigualdade, nem a como outras mudanças políticas – como a mudança da aposentadoria (ou das pensões) de benefício definido para a aposentadoria de contribuição definida, ou da previdência pública para privada – levaram a uma maior insegurança individual, bem como a uma maior volatilidade macroeconômica, ao enfraquecer os estabilizadores automáticos da economia.

As regras agora estão moldando muitos aspectos das respostas das economias à Covid-19. Em alguns países, as regras estimularam a miopia e as desigualdades, duas características das sociedades que não administraram bem a Covid-19. Esses países estavam inadequadamente preparados para a pandemia; eles construíram cadeias de abastecimento globais que eram insuficientemente resilientes. Quando a Covid-19 chegou, por exemplo, as empresas americanas não podiam nem mesmo fornecer quantidades suficientes de coisas simples como máscaras e luvas, muito menos produtos mais complicados, como testes e ventiladores.

 

Dimensões internacionais

A Covid-19 expôs e exacerbou as desigualdades entre os países, assim como dentro dos países. As economias menos desenvolvidas têm piores condições de saúde, sistemas de saúde menos preparados para lidar com a pandemia e pessoas que vivem em condições que as tornam mais vulneráveis ​​ao contágio, e simplesmente não dispõem dos recursos de que as economias avançadas são dotadas para responder ao “mau dia seguinte” econômico [economic aftermath].

A pandemia não será controlada até que seja controlada em todos os lugares, e a crise econômica não será domada até que haja uma recuperação global robusta. É por isso que é uma questão de interesse próprio – bem como uma preocupação humanitária – que as economias desenvolvidas forneçam a assistência de que as economias em desenvolvimento e os mercados emergentes precisam. Sem esse auxílio, a pandemia global persistirá por mais tempo do que o necessário, as desigualdades globais aumentarão e haverá divergência global.

Embora o G-20 tenha anunciado que usaria todos os instrumentos disponíveis para fornecer esse tipo de ajuda, a ajuda até agora tem sido insuficiente. Em particular, um instrumento usado em 2009 e facilmente disponível não foi empregado: uma emissão de US$ 500 bilhões em Direitos Especiais de Saque (DES). Até agora, não foi possível superar a falta de entusiasmo dos Estados Unidos ou da Índia. A provisão de DES seria de enorme ajuda para as economias em desenvolvimento e para os mercados emergentes – com nenhum ou pouco custo para os contribuintes das economias desenvolvidas. Seria ainda melhor se essas economias contribuíssem com seus DES para um fundo fiduciário a ser acessado pelas economias em desenvolvimento para atender às exigências da pandemia.

Adicionalmente, as regras do jogo afetam não apenas o desempenho econômico e as desigualdades dentro dos países, mas também entre os países, e nessa arena as regras e normas que governam a globalização são centrais. Alguns países parecem comprometidos com o “nacionalismo da vacina”. Outros, como a Costa Rica, estão fazendo o que podem para garantir que todo o conhecimento relevante para abordar a Covid-19 seja acessível para todo o mundo, de modo análogo ao com que a vacina contra a gripe é atualizada anualmente.

A pandemia provavelmente causará uma onda de crises de dívida. Baixas taxas de juros, combinadas com mercados financeiros em economias avançadas impulsionando empréstimos e tomadas de crédito perdulários nas economias emergentes e em desenvolvimento, deixaram vários países com mais dívidas do que eles podem pagar, dada a magnitude da desaceleração induzida pela pandemia. Os credores internacionais, especialmente os credores privados, já deveriam saber que não se pode tirar água de pedra. Haverá uma reestruturação da dívida. A única dúvida é se será ordenada ou desordenada.

Embora a pandemia tenha revelado as enormes clivagens entre os países do mundo, a própria pandemia provavelmente aumentará as disparidades, deixando cicatrizes duradouras, a menos que haja uma maior demonstração de solidariedade global e nacional. Instituições internacionais, como o FMI, forneceram liderança global, agindo de forma exemplar. Em alguns países também houve liderança que lhes permitiu lidar com a pandemia e suas consequências econômicas – incluindo as desigualdades que de outra forma teriam assomado. Mas, por mais dramáticos que tenham sido os sucessos em alguns lugares, tão dramáticos são os fracassos em outros lugares. E os governos que falharam internamente dificultaram a resposta global necessária.

À medida que as evidências dos resultados díspares se tornam claras, esperamos que haja uma mudança de curso. A pandemia provavelmente continuará conosco por um tempo e suas consequências econômicas por muito mais tempo. Ainda não é tarde para essa mudança de curso.

[1] NT:Optou-se por traduzir the great divide como “grande divisor” e não “grande divisão” para manter-se a associação geográfica da expressão em inglês


por Joseph Stiglitz, Professor da Universidade de Columbia e ganhador do Prêmio Nobel Memorial de Ciências Econômicas   |   Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Fonte: Fundação Perseu Abramo


 

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