Estou convicto de que o jogo político observável hoje tanto no Brasil como nos EUA é paradigmático, exemplar e merece “reflexão” e talvez nem precisemos da cachaça para verificá-lo.
Na década de 80, o baixo Bexiga em Sampa era o “point de uma galera”. Na Rua 13 de Maio, quase esquina com a Rua Santo Antônio, havia um bar chamado “Persona”, que possuía duas grandes atrações. A primeira, um drinque, cachaça com mel – tanto a cachaça como o mel eram oferecidos em variedade impressionante; a segunda, o jogo do espelho, uma “viagem”, uma vertigem adolescente sem ilicitudes. Aquela atração nos ajudava, meninas e meninos, a “curtir” esta.
O jogo consistia nas tentativas de um casal, em que cada um dos parceiros, posicionado em lados opostos de um espelho, munidos com uma vela acesa, buscasse, a partir de suas reflexões opostas, uma posição em que as imagens se imiscuíssem, se sobrepusessem. Esse fenômeno físico, óptico, essencialmente científico, para nós, jovens casais, transformava-nos em cúmplices, em “almas-gêmeas”, em pessoas inseparáveis. Que romance! Que bobagem! Essa mistura “física” e “química”: o mel na cachaça e o espelho e a luz das velas que nos tornavam algo sofisticado me fazem pensar se isso não se dá apenas no amor. Será que a ira e o ódio buscam se misturar a despeito dos agentes? Estou convicto de que o jogo político observável hoje tanto no Brasil como nos EUA é paradigmático, exemplar e merece “reflexão” e talvez nem precisemos da cachaça para verificá-lo.
A imprensa já apontou os detalhes que instruíram o ministro do STF, Alexandre de Moraes, na instauração de investigações sobre os protestos contra a Suprema Corte, o Congresso Nacional e em defesa da ditadura militar em 19 de abril de 2020 em todo país. Apoiadores de Bolsonaro foram alvos de busca e apreensão, e integrantes de grupos que fizeram protestos foram presos. A CPI das fake news também agitou o Congresso Nacional e pôs a nu as mazelas da família do capitão que habita o Alvorada.
É evidente que as seguidas manifestações antidemocráticas e antirrepublicanas foram urdidas não só por simpatizantes – massa de manobra ignara – do bolsonarismo, mas por assessores da Presidência da República, muito bem instruídos, alocados no terceiro andar do Palácio do Planalto com funções precisas: municiar o presidente de material falso que atenda suas demandas no poder.
Sua finalidade era óbvia: o autogolpe. Afinal, diante do estrito e necessário Estado democrático de direito, qual seria a motivação de retrocedermos à ditadura militar, ainda que dissimulada na figura de um capitão reformado? O autogolpe submeteria, subjugaria o Judiciário e o Legislativo ao Executivo, afrontando a regra básica da república: o equilíbrio entre os poderes. Tal reestruturação de poderes tem nome bem preciso: ditadura.
No dia 6 de janeiro, uma semana atrás, Donald Trump deu sua cartada final para um autogolpe. O vice de Jair, Mourão, concorda e Stephen Levitsky, professor de Harvard e autor de Como as democracias morrem, corrobora. A 15 dias da posse, depois de perder todas as ações judiciais, impetradas em cinco estados – Arizona, Geórgia, Nevada, Pensilvânia e Wisconsin –, sem o desejável auxílio de juízes trumpistas, contra os resultados das eleições, Trump ousou golpear a democracia americana. Possuía a última cartada desse jogo absolutamente consequente diante dos objetivos que havia proposto a si: deslegitimar o Legislativo e sapatear sobre o Judiciário. Além disso, esculachar o voto da maioria da população norte-americana. O processo eleitoral que em 2015 lhe dera a honra de governar e que em 2020 lhe negou.
A partir de sua rede de mídias sociais, Instagram, Facebook e, principalmente, o Twitter, convocou a caterva, a súcia insalubre e temerária a fim de “marchar” sobre Washington. Os autômatos, verdadeiros lúmpenes, atenderam prontamente à vontade do princeps. Diante da Casa Branca, num palco ridículo com vidros à prova de balas, em discurso digno da mais refinada ficção, comandou, qual um capitão-presidente, a turba ignara em direção ao Parlamento para que pressionasse o Legislativo a não referendar o resultado legal de uma eleição que expressava a vontade dessa gente “esquisita” – os defensores do Estado democrático de direito.
Sem acusar ninguém, muito estranhou a facilidade com que a manifestação dessa malta, desse bando, chegou ao Capitólio e como o violentou, e como o humilhou, e como o escarneceu. Era impensável, para nós, que a democracia norte-americana estivesse suscetível a esse tipo de ação. Na verdade, muito tinha me estranhado, e me violentado, e me humilhado, e escarnecido as manifestações em prol da ditadura no Brasil.
O jogo do espelho me parece límpido. Eram ações orquestradas. Mas teriam essas chegado aos EUA ou de lá reverberariam? Por um instante, lembrou-me a frase de Eduardo: “Cara, se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não”; ou Weintraub: “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF”. Mas os EUA estariam submetidos a este modus operandi? Ou o Brasil, avant la lettre, teria se prestado a tão nobre exemplo? Pouco importa.
Lá os empedernidos facínoras precisariam mais do que um jipe, precisariam do apoio institucional da tropa de verdade. Isso era fundamental para que disferissem o golpe fatal contra a democracia. Ocorre, entretanto, que a tropa de lá não topa mais o Trump, ele já era. O trumpismo valeu-se de um balão de ensaio à moda bolsonarista e se deu mal. O presidente dos EUA teve péssimas novas na tentativa de advento. Seu autogolpe deu água. Mas a questão que se impõe é saber se nosso caudilho entendeu que os dias são outros, são novos tempos em que reina a previsibilidade das instituições, em que o jogo do espelho é apenas uma experiência lúdica dos sentidos.
por Paulo Martins, Professor de Letras Clássicas e diretor da FFLCH/USP | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
Publicado no Jornal da USP