Quando Magritte pintou um cachimbo e colocou a legenda “isto não é um cachimbo”, o que ele queria expressar mesmo é que isto é arte. E não realidade.
Os primeiros teóricos que se preocupavam com a dimensão do cinema, como Rudolf Arnheim e Walter Benjamin, olhavam sempre para o realismo como algo que, para alguns, impedia o cinema de ser arte. Arte é algo dentro da realidade, certamente, mas se não houver uma especificidade de ser então não temos arte.
Hoje, temos uma forma de comunicação que não é claramente arte. A conversa que então acontece entre duas pessoas ou mais pelo Instagram ou Messenger, ou qualquer outro meio, é realidade. Cada pessoa está no momento exato presente em sua situação, cada um em seu lugar, e o que acontece na tela é pura realidade. É tanto real quanto virtual. As pessoas se encontram. No cinema não há essa realidade. A cena durante o filme nunca é diretamente presente.
Quando Magritte pintou um cachimbo e colocou a legenda “isto não é um cachimbo”, o que ele queria expressar mesmo é que isto é arte. E não realidade.
É um filme belo. Com uma narrativa leve, com um roteiro musical que aproveita as músicas feitas em função das lutas populares. Como documentário é muito agradável de se ver. E além de documentar muitas cenas nas ruas daquele momento, Karim Aïnouz situa particularmente a jovem Nardjes até ela se encontrar com amigos e ir tomar uma cerveja depois das manifestações do dia.
Talvez, porém, fosse preciso um certo aprofundamento com algumas entrevistas com os líderes desse movimento que aconteceu em 2019 e talvez pareça ter sido um tanto imediatista. É claro que conseguiu impedir que fizessem mais um quinto mandato para Bouteflika, mas gente dos seus governos continuou com o novo presidente. Enfim, não se pode exigir de um artista o que ele não tem para dar. Pelo menos é o que podemos pensar como explicitação do cinema de Aïnouz. Por exemplo, seu famoso filme mais recente A Vida Invisível aprofundou menos do que se poderia esperar, a partir do argumento que tinha em mãos com o romance de Martha Batalha.
Esse Nardjes A. foi uma produção que parece ter sido criada no impulso de uma presença simpática e extraordinária da jovem e da própria ação popular na cidade onde o diretor se encontrava. Não foi uma produção mais aprofundada. Entretanto, vale pelas ideias que projeta e pela própria beleza da linguagem. A cinematografia é excelente.
(Olinda, 1. 2. 2021)
Revendo Arthur Omar
Não sei se o pessoal de hoje conhece Arthur Omar, mas ele é certamente um criador visual da maior importância. No seu começo, me parece que foi fotógrafo profissional e estourou como artista em 1974, quando apresentou o filme Triste Trópico no 1º Festival de Cinema de Belém. Nessa ocasião, ele ganhou o Prêmio Especial do Júri e poderia ter ganhado o Grande Muiraquitã. A questão é que seu filme mostrava um retrato do nosso país dos mais irônicos, e o júri – do qual eu fazia parte – queria premiá-lo, mas o presidente da Embrafilme, o cineasta Roberto Farias, não concordava. E ameaçou se demitir da empresa se houvesse a premiação. O acordo foi que outro filme – que eu não me lembro qual era – ganhar o Muiraquitã, deixando para Triste Trópico o tal Prêmio Especial do Júri.
Tem uma cópia de Triste Trópico no YouTube e pode ser vista, embora esteja cortando o enquadramento das imagens e o som também não esteja bom. Mas dá para ver o que é o filme, que é irônico a partir do título aproveitado do livro do antropólogo Claude Levy-Strauss, Tristes Trópicos. O diretor criou um personagem, um tal Dr. Arthur, que voltando de uma viagem de estudos na Europa vai revelando o país brasileiro envolvido num grande drama sanitário. Esse filme sem dúvida não tem a densidade dos filmes de Glauber Rocha, mas tem a importância crítica. E por isso o presidente da Embrafilme não queria que ele fosse destacado, para não ferir o governo militar de então.
Eu revi agora cinco curtas de Arthur Omar que estão no site Making Off e que mostram como ele é um excelente criador de VideoArt. E não se perde somente em criar beleza imagética, mas sabe aproveitar a imagem para mostrar cenas críticas. Estão lá no Making Off os filmes O Som, Tratado de Harmonia, Ressurreição, O Inspetor, Versão sem Letreiros e Pânico Sutil. Esse último filme foi feito a partir de uma exposição de moda do escritório M. Officer e tem muita força visual, muita beleza e criticidade.
Arthur Omar já participou diversas vezes da Bienal de Artes de São Paulo e em 1997 fez lá uma grande exposição, que se não me engano tinha o título Antropologia da Face Gloriosa. Tem trabalhos também no Afeganistão e documentou a destruição de obras de arte pelos talibãs. Arthur Omar é mineiro de Poços de Caldas, nasceu em 1948, e é casado com a teórica e crítica Ivana Bentes.
(Olinda, 19. 1. 21)
Dois monges
Trata-se de um filme mexicano produzido em 1934 pelo cineasta Juan Bustillo Oro, que foi restaurado há pouco tempo pela Cinemateca de Paris. Está em exibição no site Making Off. Bustillo Oro é um cineasta que trabalhou muitos anos no México, com um cinema de caráter popular, e morreu nos anos 80. Esse Dois Monges é um excelente exemplo de um filme novelesco, que marcou de forma bem expressiva o cinema mexicano. Sabe-se que as novelas da televisão brasileira se inspiraram em sua criação nos filmes novelescos mexicanos. Nesse Dos Monjes há uma excelente capacidade de criação pela sua técnica expressiva, se destacando a forma de interpretação que já tem uma forma cinematográfica e não simplesmente inspirada pela interpretação teatral.
A história foi extraída de um romance de José Manuel Cordero e tem uma trama simples, mas ao mesmo tempo com grande envolvimento dramático. Envolve personagens inspirados na realidade, demonstrando um certo espírito crítico. A trama é entre frades e o envolvimento deles com senhoras católicas. A importância principal de ter sido restaurado é que coloca um excelente exemplo para quem esteja estudando o gênero cinematográfico novelesco.
(Olinda, 21. 1. 21)
por Celso Marconi, Crítico de cinema mais longevo em atividade no Brasil. Referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8 | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado