E as composições florais por lá ficaram, esquecidas e abandonadas, perante a indiferença geral. Até que…
Fevereiro de 2021. Mês de confinamento puro e duro em Portugal. Objetivo: remediar os efeitos nefastos que o alívio decretado pelo Natal de 2020 acarretou, colocando o país nas posições do top covid em que ninguém quer estar. Parece estar a resultar.
Mas enquanto os portugueses recolhem às suas casas num sacrifício tendo em vista dias melhores, há quem, e a propósito da requalificação de um jardim na capital portuguesa, demonstre pouca vontade de proceder a um desconfinamento mental.
Breve resumo dedicado a quem não conhece a capital portuguesa. Belém é uma freguesia de Lisboa. Conta com 16.528 habitantes, mas quem a visita supera, em muito, esse número. São 10,43 km2 onde se podem visitar vários museus e monumentos de inegável valor histórico. Acreditem, são muitos mesmo, incluindo o palácio que é a residência oficial do Presidente da República. Para além das atrações históricas, mais recentemente a freguesia recebeu um centro cultural que alberga uma célebre coleção de arte moderna, tornando aquele espaço num dos museus mais visitados no mundo. São muitos os museus, incluindo o Museu Nacional de Etnologia (já lá vamos). Mas… sejamos sinceros: nada supera os pastéis de Belém que ali têm o seu local exclusivo! Ah, e também tem o Jardim da “Praça do Império”, construído em 1940 por ocasião da exposição do “mundo português”. Mais tarde, em concreto em 1961, ano que assinala o início da luta armada de libertação nas antigas colónias portuguesas, aquele espaço feio e disforme (acreditem, é um ponto de fealdade numa área nobre), foi adornado com composições florais em forma de brasão dos distritos portugueses, não faltando as então denominadas “províncias ultramarinas”, as colónias.
A história fez o seu percurso. A luta dos povos africanos contribuiu para a revolução em Portugal que, por sua vez, esteve na origem da independência dos respetivos países (infelizmente, não da paz). E as composições florais por lá ficaram, esquecidas e abandonadas, perante a indiferença geral. Até que…
Até que, com o país confinado e a cidade deserta de turistas, os arranjos florais moribundos ressuscitaram! Um milagre que tem por protagonistas essas franjas da sociedade que se digladiam no debate sobre legados históricos perante a indiferença duma população que há muito aprendeu a viver à margem tanto das glorificações patéticas do passado colonial como das autoflagelações pós-modernas. Digamos que a população portuguesa, no que há memória diz respeito, há muito sabe viver, e com toda a tranquilidade, com o astrolábio e o navio negreiro. Para desgosto duma academia que gostaria de ver a sua necessidade de se deitar no divã do psicanalista alargada a toda a população…
O que despoletou então este renovado interesse pela arte floral? A intenção do município da capital portuguesa, já anunciada há alguns anos, de proceder a uma requalificação do espaço (que bem precisa…), requalificação essa que, por motivos que deveriam ser óbvios, não contempla brasões florais que, basicamente, morreram de morte natural…
Curiosamente enquanto decorria este debate nos jornais portugueses, noutras paragens, o jornal britânico The Guardian, dava voz a um ativista originário da República Democrática do Congo e à sua missão de resgatar tesouros africanos (e não só) que se encontram em museus europeus. O sugestivo título da notícia – “Queremos as nossas riquezas de volta” – não deixa margem para dúvidas, mas o ativista detalha a sua intenção, apontado mesmo alvos que merecerão a sua atenção quando o mundo voltar ao normal. Espanha, Alemanha, o Vaticano, o Reino Unido e… Portugal têm prometida a sua visita. E assim voltamos a um dos menos interessantes museus situados na freguesia lisboeta de Belém, o Museu Nacional de Etnologia.
Fundado oficialmente em 1965, mas com casa permanente estabelecida apenas após a revolução que trouxe a democracia a Portugal e a independência aos países africanos, seria de esperar que esta instituição fosse o local por excelência onde a antiga potência colonial exibisse artefactos provenientes dos mais variados pontos do mundo por onde os portugueses andaram, incluindo peças que simbolizam a identidade desses povos. Só que não… E quando o ativista visitar Portugal e entrar naquele museu o mais certo será uma boa dose de desilusão: é que os artefactos de cultura africana ali exibidos são de manufatura recente, tão recente que obviamente não correspondem a quaisquer tempos imemoriais e muito menos ao invocar da identidade remota ou ancestral de quem quer que seja, num espólio, ao que parece, adquirido em expedições realizadas para o efeito (aquisições em relação às quais a instituição afirma guardar grande parte dos recibos de compra, sempre que tal se revelou possível). Mesmo para quem coloque em causa as condições, eventualmente exploratórias, de tais aquisições, um facto permanecerá imutável: o tal valor histórico e simbólico não está ali em exposição. Nem ali, nem, de forma significativa, noutros locais. Eventualmente um objeto ou outro na Sociedade de Geografia de Lisboa, algumas peças espalhadas em pequenos museus pelo país, incluindo de coleções particulares, mas não se espere encontrar “grande coisa”…
Quem, fora de Portugal, esteja envolvido nestas lutas pela memória, poderá questionar como é possível. Afinal estamos a falar de um país pioneiro na expansão e anacrónico na descolonização. Já para quem conhecer um pouco do que foi a ditadura portuguesa, incluindo a sua alergia a qualquer ideia de cultura em privilégio de um certo folclore, tal não constituirá qualquer surpresa. Na realidade, e com os cumprimentos de um cidadão arménio que se refugiou dos horrores da II guerra mundial no país, em Lisboa existem mais artefactos de grande valor da região da Mesopotâmia e Médio Oriente do que propriamente resultantes de pilhagem colonial. E menos surpreendido ficará ao saber que ainda em 2019 (é verdade!), o estado português reconheceu ter centenas de obras de arte inventariados com “localização desconhecida”. Por falar em legados, é neste pequenos pormenores que se denota que Portugal, no seu esforço de desenvolvimento pós regime fascista, atingiu primeiro as sempre invejadas médias europeia de desenvolvimento humano na saúde do que na educação (na realidade, só agora estamos a atingir tais médias na educação)…
Uma sugestão. Quando o ativista, envergando a sua boina de inspiração militar com que se fez fotografar no artigo referido, visitar o Museu de Etnologia, e concluir que a visita foi por nada, seria simpático ser recebido pelos defensores da tese do pecado original dos portugueses. Para compensar a desilusão, poderiam fazer uma visita à Fábrica dos Pastéis de Belém, onde se poderiam reunir com os defensores da excecionalidade portuguesa e dos arranjos florais que não existem há décadas. Seria um excelente local para encetar um debate. Afinal, se as coisas azedassem, nada como um pastel de Belém para adoçar o ambiente (recomendo com açúcar e canela). Depois disso, recomendaria uma passagem pelo novo jardim do império a caminho do Centro Cultural de Belém onde, caso não quisessem visitar a coleção de arte moderna, teriam sempre o jardim das oliveiras situado no vasto terraço do espaço cultural. Mas façam com que esta visita coincida com o final da tarde, altura em que se pode desfrutar do jazz que por lá costuma ser tocado. É grátis! Mas não deixem de olhar em redor. Observem com atenção essa espécie que ocupa o local – o português comum, aquele ser que não caminha curvado sob o peso dos pecados dos seus egrégios trisavós nem se alimenta da nostalgia de tempos passados (aliás, de má memória para esmagadora maioria). Falem com alguns. Pode ser que aprendam alguma coisa…