Aquelas lágrimas velozes pela face daquela mulher fazem-me reflectir sobre o nosso, o vosso, o meu e o teu comportamento. Quantos de nós e de vós não causaram as lágrimas lancinantes daquela mulher?
Há uns dias, numa viagem à Escola de Saúde e Ciências da Vida, da Universidade do Minho, senti um frémito no coração, ao pôr do sol, sobre Braga.
Dei de lado com uma senhora de média idade que chegava à rotunda de acesso ao Hospital Central de Braga, e ela cumpriu com todas as regras de trânsito: assinalou a marcha com o “pisca” e deixou-me passar.
O sol poente destacou-lhe os olhos rasos de lágrimas que escorriam aceleradas e grossas pela face. Ela vinha do Hospital banhada em lágrimas que o sol poente fazem iluminar com um brilho que não me deixou indiferente.
Não sei se era médica, mas chorava no regresso a casa, ao fim de um dia porque perdeu uma batalha.
Ignoro se era enfermeira, mas as lágrimas espelhavam no rosto algo que correu mal.
Não sei se era uma assistente de saúde e chorava por causa de alguém que morreu ou não sente melhorias.
Desconheço se era uma pessoa qualquer que recebe uma má notícia no Hospital de algum familiar.
Sei de uma coisa: não era para dar — como cantava Carlos do Carmo ou Maria Teresa Noronha — “alívio à minha mágoa/ Mas às vezes quando canto/ A minha dor sinto tanto/ Tenho os olhos rasos de água”.
Também aprendi que enquanto os mortos não forem meus nunca percebo a gravidade do que estou a viver.
Aquelas lágrimas velozes pela face daquela mulher fazem-me reflectir sobre o nosso, o vosso, o meu e o teu comportamento. Quantos de nós e de vós não causaram as lágrimas lancinantes daquela mulher?
Vem-nos à memória aquela frase batida do Nobel da Literatura, o inglês Thomas Stearns Eliot num poema, “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de 1917, do tempo da guerra e da peste, em que Prufrock pergunta se ousará perturbar o universo, se ousará comer um pêssego. E se, ao envelhecer, consegue enrolar a dobra das calças.
I grow old… I grow old…
I shall wear the bottoms of my trousers rolled.
Shall I part my hair behind? Do I dare to eat a peach?(…)
I have heard the mermaids singing, each to each.
I do not think that they will sing to me.
(“Eu envelheço … eu envelheço …
Devo usar a dobra das minhas calças enrolada.
Devo pentear o meu cabelo para trás? Eu ouso comer um pêssego?(…)
Eu ouvi as sereias a cantar, uma para cada uma.
Eu não acho que elas vão cantar para mim.”)
Devo? Deves? Ousas? Ouso? Tenho a ousadia de perturbar o universo?
Estamos todos a correr riscos e com um confinamento… sem Liberdade porque não tivemos, não tiveste, não tive, não tivestes responsabilidade. Não interessa agora se ele teve ou se eles tiveram culpa. Quem são os eles? O eles é impessoal, é abstracto, é geral, são outros, indefinidos ou incógnitos.
Mas ao eu, ao tu, ao nós e ao vós aponta-se o dedo acusador. E a culpa é de quem? É do Costa, é do Marcelo, é da Temido, é dos governos anteriores, é da União Europeia ou da China? Não. A culpa é tua, minha, nossa e vossa.
Agora, por minha e por tua culpa, muitos serviços são novamente fechados. Vamos queixar-nos que telefonamos e ninguém atende, porque não fizemos o que devíamos. Tantas pessoas são prejudicadas e atiradas pela janela fora do emprego e dos rendimentos de sobrevivência, porque eu, tu, nós e vós — não metas o ele ou os eles nesta conversa — sepultamos a responsabilidade de que todos precisam cuidar de todos para que todos possamos sair disto juntos. Fomos inconscientes — eu, tu. Nós e vós — quando teimamos em pôr o nariz a espreitar por cima da máscara.
Olhem lá: porque levamos a criancinha para “passear” num carrinho do supermercado (que é para ser frequentado por uma pessoa por família, de preferência adulto fora do grupo de risco)?
A culpa é tua e minha quando promovo(es) festinhas em casa “só” com uns amigos ou familiares ou no parque com os farnéis comprados no McDonalds e te divertes, sem máscara e sem distância física, até às quinhentas da madrugada, ao ponto dos vizinhos terem de chamar a Polícia.
Quando, numa Unidade de Cuidados Intensivos, já não houver uma cama para ti, para mim, para nós, para vós — vais e vou perceber que foi uma criancice não ficar em casa em vez de aceitar ir a bares e participar em ajuntamentos de jovens sem máscara.
A culpa é minha, é tua, é nossa e é vossa porque fomos uns asnos: se podes ir a hipermercados — como a lei permite — isso quer dizer que é obrigatório?
É por minha e tua culpa que os teus e os meus velhos estão a morrer mas o crime não é do Covid 19: este pode ser um analgésico para as nossas consciências, onde devia existir a noção de diferença entre fazer bem ou fazer mal.
Dirão que já estamos todos fartos. Andamos nisto há quase um ano, apetece-nos e culpar alguém: o Governo, o Ministério da Saúde, a Direcção-Geral da Saúde ou o Presidente. Vamos lá ser um pouco crescidinhos e jogar com o nosso baralho de cartas e é tão fácil: evitar sair. É o único ás de trunfo para ganhar o jogo da vida e a “sueca” da saúde.
Não contribuas para uma mágoa seca como aquele fado sem música que o Carlos do Carmo — a Voz de Portugal — cantou junto ao caixão do José Cardoso Pires, há muitos anos.
Por tua, minha, nossa e vossa culpa, nós estamos a descobrir o pior modo de entrar num ano novo.
Devo? Deves? Tenho a ousadia de perturbar o universo? Tens?
Então façamos, para que menos mulheres ou homens chorem a mágoa seca na rotunda de acesso ao hospital, quando regressam a casa para estar com os seus.
Por ti, por mim, por nós, por vós… e, já agora, por eles. Anda lá, joga o Ás de trunfo. Tens duas vitórias anunciadas: ganhas tu e ganhamos todos nós. Se não o jogas, é porque gostas de perder, preferes ser derrotado.
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.