Agora lisboa nos braços, as vozes e os cantares das ruas entre aplausos e lágrimas, desço como quem renasce dos escombros e nos ossos os soldados e a enfermaria bem longe…
LV
Agora lisboa nos braços, as vozes e os cantares das ruas entre aplausos e lágrimas, desço como quem renasce dos escombros e nos ossos os soldados e a enfermaria bem longe, arrumo ainda assim sonhos desencantados e ainda espetados na árvore do quintal onde trepava e comia a fruta por lavar e corria sobre chapas de vidro estes dentes corroídos e a cabeça em casa.
Acordamos entretanto numa masmorra de perdidos como espasmos derretidos nas circunstâncias das coisas e num vazio de pedra sem ilusões, deparamos connosco emparedados como alucinados vindos do deserto onde os vidros nos asfixiavam a cor da garganta seca entre o pó das noites, sem rumaria, vadios no nosso próprio quarto em viagens alucinadas de juncos e de espectros numa televisão de gritos e filmes viciados nas montras mortas de colos embebecidos de sangue guardado nas mãos gretadas de tiros.
Enfim lisboa encostada às memórias de fúrias, enlutada de passos doble nas avenidas enferrujadas de aranhas e escombros de gente nauseabunda contra as muralhas do trânsito cansativo nas orbitas contra a franja destes sonos recuados, a sala na mesma e o esquiço no canto onde o havia deixado como a bandeirada do táxi nesta viagem entre o cais do sodré e o bairro alto, fados de melancolias nas avenidas de musgo pendurados nas vitrines das tardes e subindo devagar degusta com saudades as memórias ainda na cabeça deste hospital onde tantos estendidos com as balas ainda na cabeça, o navio do regresso encostado ao cais de prostitutas e mendigos lavando com os pés as calçadas deste sono na face adormecida, tudo me parece estar diferente, encontra dos militares que combateram no norte de angola uma vez por ano em cidades diferentes descongelar as saudades da camaradagem e os cabelos a esbranquiçarem relatos e comentários e o hospital repleto de juncos e cadeiras de rodas deambulando flores de carne como unhas entaladas entre os dedos, sorrisos de prata nesta jaula de correrias em fralda como se a fronteira determinasse a minha vontade, sigo o riso do claustro ouvindo distâncias nesta telefonia já antiga e que recordo gritos de Brel quando não se volta para casa nunca mais.
Copos engolidos à pressa onde a sombra nos encanta sem voz, as melodias rodeiam-nos de encantos como um sussurro sadio procurando o poiso que me console de abraços e sem vertigens nesta cabeça vencida pela vida, nada voltará a ser o que era, tudo me parece uma tripa sem rumo e o estômago vomita cada soluço como um refém de si mesmo onde todos passam com o seu vagar trivial e apenas os observo como um estrangeiro em si mesmo nesta lisboa do regresso. Cá estamos, contaremos a história dos milhares escondidos nos quartos onde que vozes se repetem em cada soluço, de novo na mesma casa que nos viu partir num navio de ferro ferrugento e caminhar os mares dessas avenidas de ar poluído e fumar o sargaço agora nestes bagaços para nunca esquecer, cá estamos e onde tantos? Apetece-me o escuro das tardes chuvosas como um cigarro consumido e abraços em casa da mãe velhinha
– o meu filho!
de cabeça branca num abraço sem gaz eu cintilava
-quem és tu?
à janela do rio que parta partir miolos como rebentar minas e curar estiolados na cabeça o espelho ainda e reflexos debaixo da cama
– levanta-te rapaz!
e pedindo apenas a quem sei lá
– deixa-me dormir apenas!
que fale baixinho para que ele descanse em paz no meu quarto ainda como se isso nunca me tivesse saído da cabeça.
Vou até ao meu consultório Deolinda, espera-me mais logo.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Sobre As Águas Da Vida O Silêncio Dói
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