Carta de Norton de Matos a José Alberto dos Reis
Ex.mo Senhor
Dr. José Alberto dos Reis
Dig.mo Presidente da Assembleia NacionalNa minha qualidade de cidadão — Grão -Mestre da Maçonaria Portuguesa venho, respeitosamente, representar, perante V. Ex.a e a Assembleia Nacional, a que V. Ex.a dignamente preside, a propósito do projecto da lei, há dias apresentado nessa ilustre Assembleia sobre «associações secretas».
I — É certo que nesse projecto se não fala em Maçonaria; mas a sua contextura e o facto de ter sido apresentada no último congresso católico, realizado em Braga, uma proposta contra a Maçonaria Portuguesa, idêntica em grande parte, no seu espírito e na sua letra, ao referido projecto de lei, não podem deixar dúvidas de que é principalmente a Maçonaria que esse projecto visa.
E sendo assim, julgo do meu dever de Chefe da Maçonaria Portuguesa manifestar a V. Ex.as, a dolorosa impressão que me causaram as disposições desse projeto e as considerações que o precederam.
Longe de mim o querer interferir de qualquer maneira na livre apresentação de projectos de lei à Assembleia Nacional, ou pretender imiscuir-me na livre discussão e apreciação desses projectos: — venho perante V. Ex.a e perante a Assembleia Nacional apenas com o direito que qualquer homem tem de se dirigir a outros homens, verbalmente ou por escrito, desde que o faça em termos correctos e sem o menor vislumbre ou intenção de coação, quando vê a sua honra e a honra e os interesses que lhe foram confiados, injustamente postergados ou ameaçados.
Resolvi, portanto, dirigir-me a V. Ex.as, imediatamente após a leitura do projecto de lei a que me estou referindo. Pratico este ato em meu nome pessoal e assumo a responsabilidade inteira de o praticar também como presidente de uma associação de portugueses que, por eleição, me confiaram o grão -mestrado da Maçonaria no nosso país.
II — Feriu -me profundamente a tremenda injustiça de se pretender misturar a Maçonaria com associações secretas que, no dizer do preâmbulo do projecto de lei, «estão contaminando a sociedade nos seus mais essenciais elementos, corrompendo o Estado, por uma acção dissolvente sobre os seus órgãos, e comprometendo por vezes a honra e a vida dos seus melhores servidores».
Equivalem estas palavras a chamar-se à Maçonaria uma associação de malfeitores e a considerarem -me a mim como o chefe de um bando que põe em perigo a vida e a honra dos meus semelhantes. Por esta razão as classifiquei de «tremenda injustiça», outra classificação não me permitindo dar-lhe a minha dignidade e da pessoa e da entidade a quem me cumpre dirigir-me.
Nunca insultei ninguém, e bem pode V. Ex.a avaliar quão dolorosamente me senti ferido ao verificar que o primeiro projecto de lei apresentado a uma assembleia, que traduz uma modalidade das instituições parlamentares do meu País, nos ataca tão injustamente, a mim e a milhares de portugueses, meus companheiros de trabalho, no que mais apreciamos e zelamos, na nossa honra, na nossa integridade moral.
III — Não cabe à Maçonaria Portuguesa a designação de associação secreta que se lhe quer dar. Associação secreta deve ser, para efeitos penais, aquela cujos fins sejam imorais e inconfessáveis. São de todos conhecidos os fins da Maçonaria e os princípios morais que guiam a sua conduta; nunca se procurou ocultar a eleição dos seus Grãos -Mestres e a nomeação dos seus Corpos Dirigentes; realizam os Maçons muitas sessões e solenidades públicas, onde ostentam as suas insígnias e onde tomam os seus lugares habituais, na sala das suas reuniões, não temendo, portanto, ser conhecidos pelos muitos concidadãos não maçons que a essas sessões assistem.
Além disto, a Maçonaria tem proclamado sempre que as suas portas estão abertas a todos os homens livres e de absoluta integridade de carácter, que desejem associar-se com ela, para melhor assegurar o seu desenvolvimento moral e a prática dos princípios humanitários.
Como poderiam os Maçons desejar ardentemente que para a sua instituição entrassem os homens mais honestos, mais cultos e mais inteligentes do meio em que vivem, se praticassem actos que não pudessem ser aprovados pela esclarecida honestidade desses novos adeptos?
Tem algumas vezes a Maçonaria sido forçada a expulsar do seu seio, homens que, quer dentro da ordem Maçónica quer na sua vida particular procedem irregularmente; e nunca hesitou, perante a possível divulgação dos seus trabalhos, em aplicar as penas merecidas.
IV — Na Maçonaria não há mistérios, existem apenas sinais de reconhecimento e símbolos. Julgo que nunca constituiu perigo ou ameaça a existência de meios de reconhecer os amigos ou de ensinar sob fórmulas concretas, para facilitar a assimilação, a procura da perfeição moral e a prática do amor fraternal.
Os símbolos existem em instituições da mais alta moralidade, nos exércitos, na magistratura e em tantas outras. A bandeira nacional nada mais é, em cada nação, do que o sagrado símbolo da Pátria, amada acima de tudo.
V — A forma da Maçonaria Portuguesa é ritualista, e naturalmente em ritos maçónicos são a maioria das vezes celebrados apenas em presença daqueles que pertencem à instituição maçónica; não porque neles haja qualquer coisa a ocultar, mas pela força do sentimento que leva cada família e cada irmandade a celebrar as suas cerimónias íntimas, sem a presença de estranhos.
Tenho a certeza de que nenhum homem culto acredita hoje nas insinuações ridículas que correram mundo entre gente inculta ou com a inteligência obscurecida por doentio fanatismo acerca do ritual maçónico.
VI — Esforçam-se os Maçons por constituir em cada país uma élite sob o ponto de vista moral e cultural. Fortificar o carácter, aumentar a instrução para bem da Família, da Pátria e da Humanidade é a principal obrigação de um Maçon.
Para ser Maçon é necessário ter profissão honesta que assegure meios de subsistência; ter a instrução necessária para compreender os fins da Maçonaria e energia moral para os cumprir; ter bom comportamento e reputação ilibada.
Como podiam homens tão cuidadosamente escolhidos, praticar actos perniciosos ou sequer incorrectos, que traduzam a menor falta de respeito pelas crenças sinceras, pelas bem -intencionadas opiniões, pelos princípios filosóficos dos seus semelhantes?
Diz o Estatuto da Maçonaria Portuguesa que é ela «uma instituição essencialmente humanitária, procurando realizar as melhores condições da vida social; que exige o máximo altruísmo e o sacrifício de quaisquer interesses materiais e morais ao bem -estar dos semelhantes; que estende a todos os homens os laços fraternais que unem os Maçons; que considera o trabalho e a solidariedade como deveres essenciais do Homem — que honram igualmente o trabalho intelectual e o trabalho manual.
São do conhecimento público os princípios e preceitos basilares da Ordem Maçónica; conhece -os com certeza V. Ex.a, e nenhuma dúvida obsta a que saiba toda a Assembleia Nacional que constam da Constituição de Anderson de 1723, cuja leitura e meditação é de aconselhar a quem pretenda de boa fé instruir-se sobre a essência da moral maçónica.
Mandam-nos os preceitos maçónicos que tenhamos sempre para as crenças puras e convicções sinceras dos nossos semelhantes uma dignificadora tolerância, que afirmemos sempre a liberdade de consciência e de pensamento, que reprovemos todas as perseguições de natureza religiosa ou política, todas as injustiças, todas as violências, todas as humilhações, todos os atentados contra a dignidade do homem.
A Maçonaria, com estes princípios e com esta moral a servirem -lhe de eterna norma, com a ânsia constante de instrução e de desenvolvimento intelectual que a caracteriza, tendo inteira fé na evolução progressiva da humanidade, é, sem dúvida, um dos mais fortes esteios da ordem e da estabilidade social.
VIl — São estas as bases e os fins da Maçonaria, como associação de homens livres. E dentro dela cada Maçon, individualmente, tem por supremo fim fugir da escravatura voluntária, quer ela se apresente sob qualquer dos pontos de vista material, moral ou intelectual.
Para um Maçon a escravatura voluntária (perinde ac cadaver) é a maior baixeza que um homem pode praticar, a maior ignomínia em que um homem pode cair.
VIII — Conhecedores e admiradores destas verdades, têm deixado muitos portugueses as futilidades da vida e ingressado na Maçonaria Portuguesa.
Nela temperaram o seu carácter e procuraram corrigir os seus defeitos por um labor constante de bondade; e, esteiados nos princípios maçónicos, diligenciaram sempre fazer o bem, dignificar os seus semelhantes, quebrar todas as injustiças, e todas as prepotências e engrandecer e prestigiar a Pátria.
Muito lhes dói verem -se, tantos deles no fim de uma vida de trabalho, alcunhados de membros de uma associação de malfeitores e saberem que um seu concidadão os quer sujeitar às penas infamantes de prisão e multa e à humilhação de perguntas, de inquirições e declarações inquisitoriais, que já não são do tempo presente.
IX — Além dos interesses da Pátria tem a Maçonaria Portuguesa em alta conta os interesses da Humanidade. «A Maçonaria é uma instituição universal, variando, porém, a sua organização conforme as condições dos povos em que se acha estabelecida. Todos os Maçons constituem uma e a mesma família, dando -se o tratamento de irmãos».
Entre nós portugueses, o bem da Humanidade tem sido desde séculos uma aplicação constante. Nos territórios das nossas descobertas e conquistas, dos quais muitos fazem, apesar das vicissitudes da nossa história, ainda hoje parte integrante da Pátria Portuguesa, vivem milhões de homens numa civilização primitiva, nas trevas densas da barbárie, vítimas da mais profunda ignorância e das piores superstições.
Vivi muitos anos em contacto com essa parcela da Humanidade e foram grandes os esforços que fiz para os levantar do solo onde rastejavam, para os civilizar, para os elevar à dignidade de homens. A auxiliar-me nesta missão, tive ao meu lado duas ideologias, perante as quais respeitosamente me curvo: a representada pelos missionários cristãos; a seguida pelos Maçons Portugueses. E juntos conseguimos fazer uma obra patriótica e humana que considero como a mais branca pedra no fadigoso caminho da minha vida.
Toda a vida a consagramos — os Maçons — ao serviço dos nossos semelhantes. Admita -se o absurdo da aprovação do projecto de lei em referência e bem pouco valeriam os meus serviços ao País, para que no fim dela, tão pouco merecessem de V. Ex.a e da Assembleia Nacional.
X — Mais uma vez, na longa carreira através dos séculos, a Maçonaria se encontra sob uma onda de perseguições. De um extremo os bolchevistas procuram evitá -la na Rússia; de outro extremo as forças reacionárias promovem a sua expulsão da Itália e da Alemanha.
Imaginava a Maçonaria Portuguesa que lhe seriam poupados mais dissabores e humilhações; continua ainda a abrigar a esperança de que não será transformado em lei o projecto que provocou esta representação; confia no espírito de justiça e no respeito pela liberdade de opiniões e de convicções que caracterizam a maioria dos portugueses.
Mas se nos enganarmos, se o projeto for convertido em lei, então cometer-se -á uma injustificada violência, que menos atingirá individualmente os Maçons em actividade do que a memória daqueles que, desde Gomes Freire, o Duque de Loulé, José Estêvão, Elias Garcia, e tantos outros, a Magalhães Lima e António José de Almeida, como Grão -Mestres da Maçonaria Portuguesa, reconhecidos pelos Poderes Públicos, foram na História de Portugal, gloriosas e inconfundíveis figuras.
XI — Dissolvida embora a instituição maçónica em Portugal, passariam os Maçons a ter uma situação idêntica à que tiveram os cristãos nos tempo das perseguições da Roma Imperial. Dispersados, sem possibilidade de se reunirem, viveram no mundo isolados aparentemente uns dos outros; mas os sinais de que usavam serviram -lhes para se reconhecerem. Ao reconhecimento recíproco seguia-se a separação, possivelmente para não mais se encontrarem. Todavia, apoiados na força que resultava desses laços espirituais, não consta que se deixassem possuir nem de desânimos, nem de desfalecimentos.
XII — Num livro recente que traça a História da Maçonaria, a propósito da Polónia, verifica -se que a Maçonaria se estabeleceu ali em 1767; foi suprimida em 1822; surgiu de novo como instituição organizada em 1921. Adormecida para a vida aparente, durante a denominação estrangeira, reapareceu a Maçonaria Polaca em plena actividade no preciso momento em que, com a vitória dos aliados na Grande Guerra, foi restabelecida a Pátria Polaca.
Estão terminadas as considerações que entendi do meu dever apresentar a V. Ex.a e à Assembleia da sua digna presidência. Fugi nela da norma Maçónica, baseada na repugnância pela exteriorização; infringi talvez a regra severa e forte do silêncio. Mas tinha de ser assim.
Sou com a mais alta consideração e respeito,
de V. Ex.a
muito atento e
venerador
Ass. Norton de MatosLisboa, 31 de janeiro de 1935
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