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Terça-feira, Julho 16, 2024

Autárquicas em Cascais: um “caso para estudo”

Vasco Graça
Vasco Graça
Professor. Foi fundador e secretário nacional da FENPROF. Foi diretor adjunto do Departamento da Educação Básica do M.E. Foi deputado municipal do Partido Socialista na Assembleia Municipal de Cascais.

A atenção dos media e da opinião pública às eleições autárquicas é diversa conforme os concelhos a que se reportam. Cascais é um território que, por várias razões, tem um significado eleitoral que ultrapassa o interesse daqueles que nele habitam ainda que seja um “caso” amiúde referido como condenado à perene hegemonia do Partido Social Democrata (PSD).

De facto a direita tem sido ganhadora em todas as eleições autárquicas desde há 45 anos com exceção de dois mandatos (de 1993 a 2001) em que José Luis Judas presidiu ao Município. Todavia o Partido Socialista frequentemente (p.ex. em 1999, 2005, 2009 e 2019) foi o partido mais votado no concelho de Cascais aquando de eleições legislativas. Analisando-se, também, as eleições presidenciais, confirma-se  a existência de um eleitorado  suficiente para que o PS  pudesse ser ganhador nas disputas autárquicas.

As sucessivas derrotas do PS nas eleições municipais deveram-se essencialmente a dois fatores. O primeiro, que o PSD concorreu quase sempre numa coligação com o CDS alargada a outras pessoas que ou são ideologicamente de direita ou estão enredadas nas malhas da subsidiodependência promovida pela Câmara e, o segundo, que a estrutura concelhia do PS   “desapareceu” da esfera pública para além dos atos eleitorais  e não foi capaz de concorrer com estratégias e protagonistas adequados.

Consequentemente, nas eleições autárquicas, a direita tem-se apresentado sempre com a coesão que potencia o pleno do seu eleitorado enquanto na esquerda, sobretudo próxima do PS, uma parte muito significativa dos eleitores abstêm-se.

Neste quadro, a maioria absoluta da coligação ‘Viva Cascais’ (PSD/CDS) permitiu a Carlos Carreiras, construir, desde 2001, um poder ‘caudilhista’ e autocrático que só não é abertamente antidemocrático porque o contexto nacional não o permite. Sobretudo nos últimos 11 anos em que  assumiu a presidência camarária aquele autarca pôde impor  uma política serventuária da “turistificação” exacerbada e da especulação imobiliária com predomínio da betonização, da propaganda, do despesismo e da  desqualificação do concelho, sem enfrentar quaisquer obstáculos políticos relevantes porquanto as sucessivas maiorias absolutas garantem-lhe , na Câmara e na Assembleia Municipal, o exercício intimidatório do “quero-posso-e-mando”.

É a consequência indesejável de um enquistamento eleitoral que, em 2017, teve a seguinte materialização:

 

 ELEIÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL Votos Percentagem Vereadores
PSD/CDS 35.520 45,9% 6
PS (incluindo um movimento de independentes que em 2013 tinha obtido 7,6% dos votos) 22.490 29,0% 2 (+ 2indep) (*)
PCP  5.759  7,5% 1
BE  4.056  5,3%
PAN  3.529  4,6%
Independentes  1.628  2,1%
MRPP    466 0.1%
Votantes 77.325
Abstenção 56,5%

 

(*) Registe-se que os dois vereadores  independentes eleitos na lista do PS aceitaram pelouros “mudando-se” para a maioria PSD/CDS pelo que o PS encontra-se atualmente reduzido a 2 vereadores. A transferência de vereadores eleitos pelo PS-Cascais para a maioria PSD/CDS tem sido uma constante em todas as eleições autárquicas com a única exceção dos três vereadores socialistas eleitos em 1993.

Entretanto a realidade eleitoral de Cascais alterou-se substantivamente.

 

Uma nova realidade

Nas recentes eleições presidenciais os dois partidos da extrema direita parlamentar (Chega e Iniciativa Liberal) obtiveram, respetivamente, 13.338 votos e 4.707 votos. Ambos os partidos já anunciaram as suas candidaturas ao Município sendo que o partido de Ventura apresenta como cabeças de cartaz um conhecidíssimo ‘operacional’ da extrema-direita (Pacheco Amorim) e um cascalense que, nas últimas décadas, foi dirigente da JS local e militante do PS-Cascais (João Rodrigues dos Santos).

A “curiosidade” de o candidato a presidente da Câmara proposto pela extrema-direita  ser um dos ex-socialistas locais que aparecem subitamente convertidos ao ideário da xenofobia, da violência e das velhas “maravilhas” do salazarismo não deverá significar uma deslocação de votos do PS. Todavia, ainda que se remeta a transferência partidária para uma liberdade de opção que a cada qual assiste, tal transumância, designadamente entre partidos de ideários radicalmente opostos, entronca numa problemática política mais vasta e preocupante.

Sabe-se que os partidos existem como expressão organizada de valores e projetos inerentes a classes ou camadas sociais. Integrar um partido é querer estar com outros na ação por essas ideias e propostas identificadoras sendo que o propósito de alcançar o exercício de poder, nacional ou local, tem essencialmente valia como um meio para a concretização dos objetivos comuns.

Infelizmente, desde há anos, parece ampliar-se uma outra visão sobre a militância política. Demasiados “quadros partidários” assumem o seu partido como uma espécie de “clube” que deve ganhar eleições essencialmente para, com isso,  propiciar uma melhoria de vida aos seus “esforçados” dirigentes e amigos. A militância partidária deixa de ser vista como um serviço que se pretende prestar à sociedade e passa a ser sobretudo um processo de afirmação e progressão pessoal onde princípios, coerências e solidariedades valem menos do que uma “boa” agenda de contactos.

Para este “novo tipo” de militantes ,muitos deles com aturada formação nas “juventudes” partidárias,  os partidos são essencialmente agremiações facilitadoras de vedetismos, “empenhos” e empregos num jogo em que as ‘alternâncias’, confrontos e oposições só interessam enquanto parte de um teatro para manipular ‘votantes’.  O seu objetivo principal é o de chegarem a lugares de conforto pessoal que, de algum modo, lhes dê segurança e os situe acima dos demais conterrâneos pelo que, para eles, o partido é sobretudo visto de forma utilitarista e egocêntrica o que, consequentemente, “naturaliza” as transumâncias partidárias.

Mas há, com esta camada de “políticos por conveniência”, uma outra dimensão mais generalizada e menos visível que se tem vindo a constituir como bastante mais preocupante para o devir da democracia.

A desvalorização programática e ideológica que esta “nova” militância em ascensão produz nos partidos facilita e justifica-lhes a criação de redes e cumplicidades transversais a vários partidos onde mais do que as publicitadas diferenças políticas sobreleva o comum entendimento individualista, interesseiro e oportunista. É nessa base que são criados entendimentos e compromissos cerzidos pelos interesses partilhados de ‘boys and girls’ para quem os ‘jobs’, as ‘cunhas’, o nepotismo e as negociatas cimentam uma irmandade multipartidária e pantanosa escondida da generalidade dos cidadãos.

Em municípios como o de Cascais onde o poder é absoluto desde há décadas, onde os orçamentos camarários  e os negócios privados são de elevada monta é “natural” que pese sobremaneira a rede de interesses promotora de uma tal “política de conveniência” pessoal.

É neste contexto geral que se avizinham as próximas eleições autárquicas quando os cerca de 18.000 eleitores que a extrema-direita pretende representar em Cascais ameaçam pôr em causa a “tradicional” maioria local PSD/CDS.

 

Perspectivas possíveis

Dado que a governação autocrática de Carlos Carreiras carece de uma maioria absoluta que a suporte seria previsível que este perspetivasse um entendimento com a extrema-direita. Todavia, talvez consciente que a partilha de poder com o fanatismo populista trar-lhe-ia muitos dissabores, o “caudilho” local já veio a público declarar-se contrário a uma tal aliança.

Assim, olhando para a sucessão de resultados eleitorais, é óbvio que compete ao Partido Socialista um papel essencial para romper com o status quo imposto em Cascais nas últimas décadas e promover uma mudança efetiva de política a bem dos cidadãos do concelho. Para isso há duas possibilidades.

Na primeira, o PS quer ganhar as eleições em Cascais e liderar a necessária viragem na orientação estratégica local . É uma hipótese que tem “pés para andar”.

Em 1993 a situação política nacional era bastante adversa porquanto dois anos antes (1991) o PSD tinha obtido mais de 50% dos votos em eleições legislativas e, todavia, o PS nas eleições autárquicas “saltou” dos seus anteriores 15.200 votos (25%) para os 32.500 (43%) que lhe deram a vitória em Cascais. Bastou para tanto apresentar-se como uma verdadeira alternativa, com um projeto de mudança e um candidato, José Luis Judas, que corporizava claramente a diferença face ao PSD sendo alguém com projeção política nacional, capacidade de realização e assumidamente de esquerda.

A situação é hoje, para o PS, muito melhor quando, a nível nacional, o PS desfruta de apoio maioritário e o PSD/CDS encontra-se muito fragilizado. Está perfeitamente ao alcance do PS-Cascais mobilizar o voto dos cerca de 31 400  eleitores (31,7%)  que, no concelho de Cascais, votaram socialista nas legislativas de 2019 desde que se apresente com um projeto e protagonistas confiáveis para a mudança.

Numa segunda possibilidade, o PS entende que não tem (ainda!)  condições para ser o Partido mais votado mas assume querer ser catalisador na indispensável libertação de Cascais da autocracia da direita e na construção de uma alternativa democrática ao serviço dos cascalenses.

Trata-se, neste caso, de ganhar a confiança do eleitorado de esquerda num compromisso claro de rutura com o que tem sido o pensamento, a ação e a omissão do PSD/CDS. Cascais é um concelho com acentuada divisão social e política onde já se tornou evidente que as meias-tintas “conciliadoras” não mobilizam ninguém sendo presentemente um facto que, dada a fulanização do poder, ou se está ao lado de Carlos Carreiras ou se está contra. Não há terceira via.

Obviamente que qualquer candidatura do PS-Cascais que assentasse no habitual discurso enrolado em frases simpáticas e mil promessas de melhoramentos não cumpriria com o objetivo de ganhar a confiança para mudar de rumo.

Só uma proposta  clara e credível de acabar com o “pantanal” de interesses e destruição ambiental vigente pode, hoje, suscitar o entusiasmo dos cascalenses. Só um compromisso inequívoco e inviolável de agir para a convergência de toda a oposição num combate determinado para mudar as práticas da governação da direita pode dar corpo às expectativas dos cascalenses.

Os eleitores de Cascais estão  conscientes da fragilidade do bloco PSD/CDS e da oportunidade excecional que hoje existe para devolver Cascais aos seus habitantes.

É ineludível que cumpre, em primeira linha, ao PS estar à altura do desafio e comprovar a sua capacidade de construir alternativas reais contra as  orientações e as práticas da direita e do caciquismo local.

Se o PS compreender e atuar em conformidade poderá fazer a diferença necessária em Cascais.


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