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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

O estado dos direitos humanos no mundo. Relatório Anual 2020

Quando o impacto da COVID-19 foi exacerbado por décadas de desigualdades, o exemplo de liderança veio de pessoas comuns.

  • Pandemia expõe desigualdade sistémica em todo o mundo, com as minorias étnicas, os profissionais de saúde e as mulheres entre os mais severamente impactados
  • Relatório evidencia como a COVID-19 foi usada por líderes como arma para intensificarem o seu ataque aos direitos humanos
  • A nova Secretária-Geral, Agnès Callamard apela a uma reflexão e à reconfiguração de sistemas de forma a podermos, genuinamente, reconstruir melhor

A pandemia global expôs o terrível legado de políticas deliberadamente divisórias e destrutivas que perpetuaram desigualdade, discriminação e opressão, e abriram caminho à devastação causada pela COVID-19, disse a Amnistia Internacional no seu relatório anual publicado hoje.

O Relatório da Amnistia Internacional – “The State of the World’s Human Rights 2020/21” (O estado dos direitos humanos no mundo 2020/21) analisa 149 países, no que se inclui Portugal, e faz uma avaliação abrangente das tendências dos direitos humanos a nível global em 2020.

Neste relatório, a organização descreve como as pessoas que já são marginalizadas, incluindo mulheres e refugiados, são quem mais sente o peso devastador da pandemia, em resultado de décadas de decisões políticas discriminatórias por parte dos líderes mundiais. Profissionais de saúde, trabalhadores migrantes e trabalhadores no setor informal – muitos nas linhas da frente da pandemia – também foram traídos por sistemas de saúde negligenciados e apoios socioeconómicos irregulares.

A COVID-19 expôs e aprofundou brutalmente a desigualdade dentro dos países e entre eles, e destacou a impressionante negligência dos nossos líderes pela humanidade comum. Décadas de políticas divisórias, medidas de austeridade e escolhas erradas de líderes em não investir na melhoria de infraestruturas públicas em ruínas, deixaram a este vírus demasiadas presas fáceis”

A resposta à pandemia global foi ainda prejudicada por líderes que exploraram impiedosamente a crise e fizeram da COVID-19 uma arma para lançarem novos ataques aos direitos humanos, diz a organização.

“Enfrentamos um mundo em desordem. Neste ponto da pandemia, mesmos os líderes mais iludidos teriam dificuldade em negar que os nossos sistemas sociais, económicos e políticos estão destroçados.”

 

Pandemia agravou décadas de desigualdades e erosão dos serviços públicos

O relatório da Amnistia mostra como as desigualdades existentes, resultado de décadas de liderança tóxica, deixaram minorias étnicas, refugiados, pessoas com deficiência, pessoas mais idosas, mulheres e crianças desproporcionalmente afetados de forma negativa pela pandemia.

A COVID-19 agravou a já precária situação de refugiados, requerentes de asilo e migrantes em muitos países, aprisionando alguns em campos com condições degradantes, cortando abastecimentos vitais ou precipitando controlos fronteiriços que deixaram muitos retidos. Por exemplo, o Uganda, o país que mais refugiados acolhe em África – cerca de 1.4 milhões – encerrou imediatamente as suas fronteiras no início da pandemia e não abriu qualquer exceção para os refugiados e requerentes de asilo que tentam entrar no país. Consequentemente, mais de 10.000 pessoas ficaram retidas ao longo da fronteira com a República Democrática do Congo (RDC).

O relatório destaca um aumento acentuado da violência de género e doméstica, com muitas mulheres e pessoas LGBTI a enfrentarem barreiras crescentes à proteção e apoio devido a restrições à liberdade de circulação, à falta de mecanismos confidenciais para as vítimas denunciarem violência enquanto estão isoladas com os seus abusadores e à redução de capacidade ou suspensão de serviços.

Aqueles que estão nas linhas da frente da pandemia – profissionais de saúde e os do setor informal – sofreram devido aos sistemas de saúde deliberadamente negligenciados e de insuficientes medidas de proteção social. No Bangladesh, muitas pessoas que trabalhavam no setor informal foram deixadas sem qualquer rendimento ou proteções sociais devido aos confinamentos e recolheres-obrigatórios. Na Nicarágua, ao longo de duas semanas no início de junho, pelo menos 16 profissionais de saúde foram despedidos após exprimirem preocupações sobre a falta de equipamentos de proteção individual e sobre a resposta estatal à pandemia.

Estamos a colher os resultados de anos de negligência intencional às mãos dos nossos líderes. Em 2020, sob o peso único de uma pandemia, os sistemas de saúde foram submetidos a um derradeiro teste e as pessoas foram deixadas financeiramente em queda livre. Os heróis de 2020 foram os profissionais de saúde, que nas linhas da frente salvaram vidas, e aqueles no fundo da escala de rendimentos que trabalharam para alimentar as famílias e manter em funcionamento os nossos serviços essenciais. Cruelmente, aqueles que mais deram, foram os menos protegidos”.

 

Variante altamente perigosa de líderes fez da pandemia uma arma para atacar direitos humanos

O relatório também traça um quadro sombrio de falhas dos líderes mundiais, cuja gestão da pandemia foi marcada por oportunismo e desprezo total pelos direitos humanos.

Temos visto um espectro de respostas dos nossos líderes; do medíocre ao aldrabão, do egoísta ao fraudulento. Alguns tentaram normalizar as medidas de emergência autoritárias que introduziram para combater a COVID-19, enquanto uma variante altamente perigosa de líderes foi mais além. Viram isto como uma oportunidade para consolidar o seu próprio poder. Ao invés de apoiar e proteger, estes líderes simplesmente fizeram da pandemia uma arma para devastar os direitos das pessoas”.

Um dos padrões principais foi o de autoridades aprovarem legislação criminalizando críticas relacionadas com a pandemia. Na Hungria, por exemplo, o governo do primeiro-ministro Viktor Orbán alterou o Código Penal do país, introduzindo penas de prisão de até cinco anos por “divulgar informação falsa” sobre a COVID-19, por exemplo.

Nos estados do Golfo, no Bahrein, no Kuwait, em Omã, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos, as autoridades usaram a pandemia de COVID-19 como um pretexto para continuar a suprimir o direito à liberdade de expressão, incluindo ao acusarem indivíduos que publicaram comentários nas redes sociais sobre as respostas governamentais à pandemia, por difundirem “notícias falsas”.

Outros líderes usaram força excessiva. Nas Filipinas, o presidente Rodrigo Duterte disse ter ordenado à polícia que “matasse” a tiro pessoas que protestem ou que possam causar “problemas” durante as medidas de quarentena. Na Nigéria, o policiamento brutal das forças de segurança resultou na morte de várias pessoas por protestarem nas ruas, que apenas exigiam os seus direitos e apelavam à responsabilização. Sob a presidência de Bolsonaro, a violência policial no Brasil aumentou durante a pandemia de COVID-19. Pelo menos 3181 pessoas foram mortas pela polícia entre janeiro e junho – uma média de 17 mortes por dia.

Alguns líderes foram mais longe, usando a distração da pandemia para suprimir as críticas – e quem as fez – não relacionadas com o vírus, e perpetuar outras violações dos direitos humanos enquanto o olhar dos meios de comunicação mundiais se focava noutros locais. Por exemplo, na Índia, Narendra Modi reprimiu ainda mais os ativistas da sociedade civil, realizando, inclusivamente, raides antiterroristas nas suas casas e instalações. Entretanto, sob o presidente Xi Jinping, a perseguição do governo chinês aos uigures e a outras minorias muçulmanas em Xinjiang continuou inalterada e foi introduzida uma lei de segurança nacional draconiana em Hong Kong para legitimar a repressão politicamente motivada.

Instituições internacionais como o Tribunal Penal Internacional e os mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas existem para responsabilizar estados e perpetradores individuais. Infelizmente, 2020 mostra que estas foram confrontadas com um impasse político por líderes que procuram explorar e minar as respostas coletivas às violações de direitos humanos”.

 

Interesse nacional tem superado cooperação internacional na resposta à COVID

No cenário internacional, os líderes mundiais também não estiveram no seu melhor, dificultando esforços de recuperação coletivos ao bloquearem ou prejudicarem a cooperação internacional.

Estes incluem:

  • Líderes de países ricos, tais como o ex-presidente Trump, a contornarem os esforços de cooperação global, ao comprarem a maior parte do fornecimento mundial de vacinas, deixando poucas ou nenhumas para outros países. Estes países ricos também falharam em pressionar as empresas farmacêuticas a partilharem o seu conhecimento e tecnologia para expandir o fornecimento global de vacinas para a COVID-19.
  • Na China, o governo de Xi Jinping a censurar e perseguir profissionais de saúde e jornalistas que tentavam desde cedo alertar sobre o vírus, suprimindo informação crucial.
  • O G2O a oferecer-se para suspender pagamentos de dívida dos países mais pobres, mas exigindo que mais tarde o dinheiro seja reembolsado com juros.

“A pandemia lançou uma dura luz sobre a incapacidade do mundo de cooperar efetivamente em tempos de extrema necessidade global”, disse Agnès Callamard.

A única forma de sair desta confusão é através da cooperação internacional. Os estados devem assegurar que as vacinas estão rapidamente disponíveis para todos, em todo o lado, e de forma gratuita. As empresas farmacêuticas têm de partilhar o seu conhecimento e tecnologia para que ninguém seja deixado para trás. Os membros do G20 e as instituições financeiras internacionais devem aliviar a dívida aos 77 países mais pobres para que respondam e recuperem da pandemia”.

 

Com o falhanço dos governos, surgiram movimentos de protesto em todo o mundo

Políticas regressivas inspiraram muitas pessoas a juntar-se a lutas de longa data, como provam os protestos do Black Lives Matter nos Estados Unidos, nos protestos #EndSARS (Fim ao SARS) na Nigéria, e em novas e criativas formas de protesto tais como as greves climáticas virtuais. O relatório detalha muitas vitórias importantes que os ativistas pelos direitos humanos ajudaram a garantir em 2020, particularmente no que se refere à violência de género. Estas incluem nova legislação para combater a violência contra as mulheres e raparigas no Kuwait, na Coreia do Sul e no Sudão, e a descriminalização do aborto na Argentina, na Irlanda do Norte e na Coreia do Sul.

Em 2020, a liderança não veio do poder, do privilégio ou de especuladores. Veio das inúmeras pessoas que marcharam para exigir mudanças. Assistimos a uma onda de apoio ao #EndSARS, ao Black Lives Matter e aos protestos públicos contra a repressão e a desigualdade em lugares por todo o mundo, incluindo na Polónia, em Hong Kong, no Iraque e no Chile. Muitas vezes arriscando a sua própria segurança, foi a liderança de pessoas comuns e dos defensores de direitos humanos que nos instou. Estas são as pessoas na fronteira da luta por um mundo melhor, mais seguro e mais igual”.

Estamos numa encruzilhada. Temos de nos soltar dos grilhões que degradam a dignidade humana. Temos de reconfigurar e reiniciar para construir um mundo alicerçado em igualdade, direitos humanos e humanidade. Temos de aprender com a pandemia e de nos unir para trabalhar de forma corajosa e criativa para que todas as pessoas estejam em pé de igualdade”.

 

Em Portugal

O relatório foca também a situação em Portugal, revelando pontos comuns com o contexto mundial. A pandemia veio exacerbar desigualdades já anteriores, e a resposta do governo à COVID-19 expôs lacunas nos direitos à saúde e habitação. Ainda no direito à habitação, continua a faltar acesso a habitação adequada para muitas famílias e, em contexto de situação pandémica, o apoio a pessoas em situação de sem-abrigo foi largamente deixado às autoridades locais e a voluntários.

O relatório revela também falhas na garantia dos direitos de refugiados, requerentes de asilo e migrantes, as quais ficaram especialmente visíveis no seguimento da morte de um cidadão ucraniano sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

O documento revela ainda que persistiram episódios de discriminação e racismo, e mostra as preocupações com as situações de violência contra mulheres e raparigas. Neste âmbito, foca-se o primeiro caso de acusação por mutilação genital feminina a ir a julgamento em Portugal.

Advocacy a nível nacional

Com vista à resolução destas situações, a Amnistia Internacional partilhou o relatório com o Presidente da República, Primeiro-Ministro e vários membros do Governo com responsabilidades nas áreas mencionadas no relatório, assim como a todos os partidos políticos com assento parlamentar.

Foi também pedida uma audiência à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e à Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas para apresentar as conclusões e recomendações do relatório.

 

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