Texto inédito de Beatriz Aquino
“Baile de Debutantes “
2h45 da madrugada. Carros sonolentos buzinam discretos na noite paulistana. A garoa fina é um convite para o abrigo. Mas almas insones haverão sempre de questionar a ordem natural das coisas.
Dentro de um carro, na frente do prédio onde mora, uma menina de quinze anos faz uma oração.
O último cliente da noite lhe ofereceu carona pra casa e ela aceitou.
Era um sujeito bonito e de poucas palavras. Parecido com o seu pai.
Eles sempre se parecem com o pai.
Às 2h45 de uma madrugada fria de uma noite paulistana, uma menina de quinze anos faz uma oração. E em voz alta. Porque ela nunca teve medo de ter fé.
Embora as Aves Marias e Salve Rainhas não combinassem muito com suas longas botas de vinil.
Era bonita ela. Poderia se dizer. De uma beleza ainda quase infantil. Mal tinha formas, mas era doce e gentil, o que lhe dava um ar maternal e com suas longas e reluzentes botas, um quê de feérico.
Era doce também. E rezava porque o cliente lustrava um revólver com uma flanela e dizia com a mesma naturalidade como quem repete a lista do supermercado;
“Hoje você vai morrer.”
Então ela rezava. E em meio à oração ela dizia que pediria também por ele, por sua alma, ela que não era nem boa e nem má, pois que não dá tempo ser alguma coisa aos quinze anos de idade.
E porque ela chorava com a convicção de quem do mundo ainda nada havia entendido e porque o mundo gosta de arrancar da garganta um grito de confissão de culpado de todos os que por ele passam, o homem que parecia-se com o seu pai deitou a arma no colo e disse;
“Pode ir. Dessa vez vou deixar passar.”
Emocionada e trêmula, ela desce do carro e se dirige até a frente do prédio enquanto busca na pequena bolsa as chaves que abrem o grosso portão. A maciça placa de ferro que lhe protegia do selvagem mundo de fora.
Uma volta na fechadura.
Ninguém passava na rua.
Duas voltas na fechadura.
“É preciso reforçar a segurança nesse bairro.”
Lembrou do que dizia o zelador do prédio.
Três voltas na fechadura.
Um estampido rouco atravessou o ar da madrugada desalojando as invisíveis gotículas da garoa que caía sobre toda a cidade.
Ela sorriu.
As almas insones haverão sempre de questionar a ordem natural das coisas.
Às 2h58 da madrugada, uma prostituta de quinze anos de idade, se é que se pode ser algo tão definido e contundente aos quinze anos de idade, é assassinada com um tiro nas costas.
E foi tão rápido o modo que isso aconteceu que eu mal tive tempo de escrever o seu nome…
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