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Sábado, Dezembro 21, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Ao fundo pitangas, esmolas avulsas e ninguém, por dentro o sargaço, o vómito, o desespero, nem sei que mais, um corredor sem tempero, se uma vontade sem ambição, se um destino sem rumo, se um rosto sem cara.

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Ao fundo um estrepo silencioso a rastejar devagar parecendo querer morder-me, uma perna bamba e os bicos aguçados sobre a relva seca deste quintal onde morara há anos, um cinzento sol a cavar-me as entranhas e eu estupefacto naquele lugar de ninguém a observar, impávido:

Que direcção irá tomar?

Ao fundo pitangas, esmolas avulsas e ninguém, por dentro o sargaço, o vómito, o desespero, nem sei que mais, um corredor sem tempero, se uma vontade sem ambição, se um destino sem rumo, se um rosto sem cara.

Neste chão não há nada a não ser um desespero inqualificado, um riso quebrado, uma gota de orvalho para satisfazer a sede dos viajantes, sei lá pá, nem mesmo nesta sala de lar há como sentir se há gente, se há vernáculos dissabores a temperarem o descanso final, se há mortes sem prenúncio, se há como viver bebendo para consagrar o fim um dia destes, creio mesmo não haver nada mais do que isto, do que sorrir contra as paredes do presídio, esta esfera ambulante de vontades vencidas pela ignorância de puderem sem que sejam quem possa, efectivamente. As paredes, sim, as paredes crescem cercando-me dentro delas e sem como sair me mato de esgano esganando-me contra elas, aqui não há raiva, escorbuto ou sífilis, aqui não há ambição nem sóforas, aqui só há um restinho a respingar um caminho para o leito após nada comer ao jantar.

Há raivas descontentes consigo mesmas, há cólera. Água benta da santidade ida, da vontade em benzer o meu destino nunca corrompido contra o lazer de dizer bom dia senhor doutor como vai, ralé nenhuma digo, aqui há sonolência de embriagados pelo que tem de ser e mais nada, nada mais do que isso e pronto, vamos e… a sanita é aberta ao geral dos passeantes ou destes turismos vitaminados de rigores da germânia, dos nórdicos desta cidade que me convence a ser um deles e sei como posso e consigo enfim, um estrepo.

As pitangas pingam gota a gota e a janela fechada. O meu murmúrio ensanguentado não é nada perante um mundo como o meu esquecido por todos e sei como todos os que sou, apenas um corredor fechado nesta resma escrita em papel vernáculo o meu destino avassalado e domado por todos, sou isso e muito mais, convençam-se, as raivas enjauladas são um prenúncio de fim e de princípio e quem sabe glória.

Abro a porta e entro para dentro de que tempo?

Talvez fechar-me num casulo estridente e sorrir colgate, escovar a paciência e dormir com os restos que pastam ainda a minha menos incisiva sapiência.  Recobro-me de trapos e viajo sem rumo como estrepo cansado, sim, o meu estado é estar cansado, estou efectivamente cansado de masmorradas vitrinas e jactos de felicidade a enganarem quem nunca soube o que é vida, a verdade é incolor e nem sempre tem o mesmo sentido de todos ou para todos é estranho creio, não acredito em panfletários ou egoísmos subornados, sou apenas um estrepo nesta janela fechada.

O silêncio sorria sozinho nas montanhas fantasmas do planalto. Um frio vazio deambulava nos alpendres onde paredes não existiam. Exibo a barba, o queixo dorido, o sorriso da sorte deambula algures pendurado nos postes da vida. Nem de que cunenes pensava. Pensava coisa nenhuma e caminhava enquanto rebolava pelo capim fantasma do caminho. Contava diariamente o castigo fustigado na face inocente do meu sorriso, magro, alto, pendurado nas quimeras severas do que me havia acontecido. O mar era longe, muito longe, sem carro, sem horizonte, restava o sonho queimado da cama imaginada nesta corda pendurado a sonhar contigo, a desejar-te, quem fosses, pouco importaria.

– Sabes?

Apeteceu-me tanto beijar-te, mesmo naquele cenário não feliz com as pernas esticadas para cima, presas em cordas de escárnio, sangue na cabeça, que dores amor, era o sepulcro. O rio tinha a força do destino.

– Como superá-lo?

Superando-o, as margens fugiam também, disse Deus na amálgama das margens que corriam, tal era a força do desejo.

Vivo nos restos da tua vontade onde só tu sabes de mim, procuro, de mãos atadas abraçar-te, e só consigo sentir o calor lindo do teu sorriso. As minhas mãos não conseguiram ainda chegar até ti, caminho solenemente farejando os teus passos, o redor calado da tua voz forçada pela campa avulsa desta caminhada, a erva daninha a proteger-me, o pensamento por ti protegia-me, repentinamente, um mergulho impensado numa mata qualquer repleta de todos os males.

– Abraças-me?

Preciso mesmo desse abraço, digo-o com todas as sinceridades, calado, apenas o meu pensamento funciona.

Desci a rua sentado no tempo, nem mãe à ilharga nem sonhos na manga, soldados fardados, confundi-os com capim, as vozes o sotaque diferente, deambulavam não sei em busca de quê, se me vissem matavam-me aos quadradinhos garantidamente mas nem me viram, passei de rastos apenas porque rastejava naquele solo divino, dizes ter tido sorte, não estava sozinho, entre mim e o capim a esperança da chegada ao desconhecido nem sabia dele, nada, nem notícias me chegavam, uma tarde mordaz sob um sol cansado e fugir sem saudades, o rio escorria suave o som da sua corrente descendo para sul.

– Sabes nadar?

Qual resposta qual quê!

– Cala-te masé!!!

Encharcado de tantas coisas como erva, capim, parecia mergulhado no algodão da inocência, nem arma a tiracolo houvesse necessidade de me defender, serviria? e nem há mantas e nem sei onde, a minha mãe sentada creio, no canto onde soldados me quiseram matar.

Nem dentes para a escova ou escova para os dentes.

Naquele som de manhãs escondidas, talvez, certo ruído de alcofa na maresia ao fundo a tua voz, um quintal e mais coisa menos coisa o Serafim nos anexos.

As mãos na cara encobriam nada, a voz dilacerava uma dor e nós nada, o choro árduo do adulto, ouvia. Mãos na cara, um homem de crista, sei lá, um homem sem corpo talvez e mesmo assim o meu pai:

– Veste-te e vamos ao hospital.

No mesmo instante um jardim de lezírias, sobre quatro cantos uma fonte esquecida, e relva, e sonho, e delírio, a dor do Domingos ao fundo do quintal num repetido “ai” tantas vezes, a bola verde, o meu amigo Platão:

– Vamos?

A bola, eram talvez trapos juntos e demolhados depois secos e num choupal ainda cru, e não eram trapos:

– Defendo todos os teus remates, apostas?

Quintal de cimento na casa vazia. Mas não eram de cimento os meus delírios, o meu pai, longe, cerca de cem metros, não mais:

– Vamos Domingos, vou contigo, prepara-te.

E um homem que era, vazio de reminiscentes nenhuns na escola dura desse antigo ido, onde os militares, saloios alguns, e creio até que muitos, de calças puxadas quase até ao peito, disfarçados de homens mais que a gente de lá, como por exemplo o Pedroto, embora gostasse da forma como ele lidava comigo, enfim um à parte:

– Anda preto, nem nadar sabes.

Tiraram ao Domingos os dentes que lhe ruíam devagar a face esquerda. Desinchada já a cara sem valor, talvez o que sentia eu ali, os dentes dele que doíam foram arrancados a saca-rolhas. Acredito! Lá fora a cidade escondida no bolso ébrio de que silêncios que não sei, a rua aberta, e estrada onde seguira o meu pai no carro numa pressa de ambulância, o destino era o hospital na zona do aeroporto entregá-lo:

– Meu empregado, cuidem dele.

A indiferença ali. O senhor Silveira de cabo verde sem dó. E por quê a dor?

Há uma flor cansada, despojada nesta ladeira ambulante, ouvem-se gemidos de sonho enquanto durmo, uma dor cansada bem dentro da floresta a desfolhar-se devagar não sabe fugir, o mar aqui é imenso, o verde da vegetação a secar-se a si mesma, raios de balas escondidas penetram sem querer também, sobem-se penhascos, atravessam-se rios habitados, corpos que se bóiam sem destino já, há uma voz perdida e repetida neste silêncio que se pretende, necessário, uma bússola imaginaria num dos bolsos já rotos da cabeça que fervilha e não termina a caminhada, a barba a picar-me a palma da mão quando a passo pelo rosto tento secar o suor, o coração dobrava o seu ritmo a cada passada, a luz que ia e vinha lá de bem longe, através das nuvens.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas


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