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Sábado, Novembro 23, 2024

O legado de Sarney em seus 91 anos

Tereza Cruvinel, em Brasília
Tereza Cruvinel, em Brasília
Jornalista, actualmente colunista do Jornal do Brasil. Foi colunista política do Brasil 247 e comentarista política da RedeTV. Ex-presidente da TV Brasil, ex-colunista de O Globo e Correio Braziliense.

No sábado, o ex-presidene José Sarney fez 91 anos. A pandemia atropelou o festival de homenagens  presenciais programadas no ano passado para seus 90 anos mas um belo livro foi produzido pela Câmara, sob a coordenação de Isabel Flexa de Lima.

Neste tempo de desmonte e destruição de tudo o que foi construído no período democrático da Nova República, a meu ver encerrado com a eleição de Jair Bolsonaro, cabe recordar, principalmente aos mais jovens, iniciativas e políticas públicas iniciadas em seu governo, aprimoradas no futuro e hoje ameaçadas.

O legado maior de Sarney, já inscrito na História, foi a condução segura e habilidosa da transição, num tempo em que esconjurávamos a palavra “retrocesso”, temendo uma recaída autoritária, uma ressurgência da ditadura derrotada. Foi lidando com cristais e administrando pressões que Sarney honrou os compromissos da Aliança Democrática firmada para a eleição de Tancredo pelo Colégio Eleitoral, depois que regime, embora moribundo, conseguiu impedir a aprovação da emenda das diretas-já. E assim avançamos com o enterro do entulho autoritário, chegamos à Constituinte e às eleições diretas de 1989. Sarney, que vivera o píncaro da popularidade com o Plano Cruzado, chegou desgastado ao final do governo mas com sua mais delicada missão cumprida.
Afora o edifício democrático, o governo Sarney legou também ao Brasil um conjunto de políticas públicas que respondiam a urgências daquele tempo, tiveram prosseguimento em governos posteriores e hoje, tanto quanto a democracia, encontram-se ameaçadas pelo governo extremista e autoritário de Jair Bolsonaro, aquele que disse ter vindo para destruir, e segue com sua política de desmonte.

Na cúpula de líderes pelo clima, no dia 22 passado,  Bolsonaro tentou faturar os feitos ambientais do Brasil nas últimas décadas para dissipar a percepção global do desastre ecológico produzido por seu governo. Foi o governo Sarney, do qual me recordo bem porque cobria o Palácio do Planalto, que criou o Ibama e instituiu as primeiras políticas ambientais, com o programa Nossa Natureza, lançado em 1988.  O modelo predador de desenvolvimento adotado pelo regime militar avançou sobre a Amazônia com estradas e projetos de colonização, dando início ao desflorestamento. Uma das medidas do programa para conter o desmatamento foi a criação do Prodes – Projeto de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite, que até hoje produz, através do INPE, as taxas oficiais de desmatamento.

No futuro, a ex-ministra Marina Silva dividiria o Ibama em duas partes, criando o ICMBio – o Instituto Chico Mendes, destinado à conservação, ficando o Ibama com a parte de fiscalização. Foi também Sarney que, em 1988, transformou a maior parte do arquipélago de Fernando de Noronha em Parque Nacional, e para lá mandou, como govenador, encarregado da conservação, o jornalista Fernando César Mesquita.

Neste momento, o ministro Paulo Guedes está numa ofensiva para literalmente acabar com o Mercosul, pressionando pelo fim da Tarifa Externa Comum (o que acabaria com a união aduaneira) e da exigência de consenso nas negociações de acordos comerciais com outros países ou blocos. Foi Sarney, juntamente com o então presidente argentino Raúl Alfonsín, que deu início à construção do Mercosul, depois que os dois países firmaram a aliança estratégica que pôs fim à velha competição entre os dois países. O Mercosul está ameaçado e as relações Brasil-Argentina, azedadas.

A primeira política social nacional, voltada para os mais pobres foi o Programa Nacional do Leite, criado por Sarney em 1986, que teve seu mérito reconhecido pela ONU. Através dele, cerca de 10 milhões de crianças carentes passaram a ter direito ao um litro diário do alimento tão importante na nutrição infantil. No rastro desse programa vieram outras políticas sociais, culminando no Bolsa Família, no governo Lula.

A Lei Rouanet, alvo da extrema direita bolsonarista, teve seu nome alterado por mera picuinha do ex-presidente Fernando Collor. Havia sido criada por Sarney e levava seu nome. Foi a primeira política efetiva de incentivo à Cultura. Sarney criou também o ministério da Cultura, antes inexistente, que teve como primeiro titular um político fortemente vinculado às artes e à produção cultural, o ex-deputado José Aparecido de Oliveira. Sob Bolsonaro, o ministério acabou, virou secretaria do Ministério do Turismo, e a lei Rouanet foi demonizada, deixando de funcionar como política de fomento cultural.

Pincei estes quatro pontos do legado de Sarney, mas poderia evocar outras políticas públicas que o Brasil foi aprimorando antes de chegarmos ao governo atual, que faz a roda girar para trás. O Brasil despedaçado nos ensina também a valorizar tudo o que foi feito antes, e a reconhecer que, para além das diferenças político-partidárias, estávamos no tempo de construir.

Com Sarney adentrando os 90 anos,  além de honrar seu legado político, cabe a seus contemporâneos reconhecer suas qualidades como ser humano generoso, afetuoso e tolerante. A tolerância é um dom que também estamos revalorizando nestes tempos sectários. Falam da personalidade de Sarney a ampla gama de amizades que ele colheu ao longo da vida, para além das diferenças partidárias.

Foi Sarney, então presidente do Congresso,  que acompanhou Lula no voô para São Paulo, depois da transmissão do cargo a Dilma, em primeiro de janeiro de 2011. Era o último voo de Lula no aviao presidencial, e os dois choraram juntos na viagem, recordando passagens daqueles ultimos oito anos.  Chegando, foram visitar o vice de Lula, José Alencar, que estava internado e morreria em março. Lula ainda não sabia, mas tempos difíceis o esperavam. As relações do PT com o grupo Sarney iriam se deteriorar mas a amizade entre os dois prevaleceu.

Sarney não disputou novo mandato em 2014. Em dezembro despediu-se do Senado, encerrando seus 60 anos de atividade política ininterrupta, que conseguiu conciliar com uma produtiva vida literária, escrevendo romances de sucesso como O Dono do Mar e Saraminda. Este último, a pedido dele, li nos originais.

Quando comecei a cobrir o Congresso, em 1981, Sarney foi das primeiras autoridades que entrevistei. Percebendo minha insegurança de jovem repórter, ele foi de uma afabilidade inesquecível. E ao longo dos anos e das turbulências políticas, sempre encontrei nele, inclusive na Presidência, um interlocutor que sabia valorizar o trabalho de cada jornalista. Mesmo quando não podia dar a resposta desejada, o fazia com delicadeza e respeito.

Pessoalmente, sempre recebi dele atenções e delicadezas, nos meus melhores momentos e nas situações difíceis. Quando deixei a presidência da EBC, ele deixou em curso uma sessão do Senado para prestigiar meu ato de despedida e prestação de contas, lamentando, em seu discurso, que eu não tenha tido tempo para concluir o trabalho de implantação do sistema público de comunicação, hoje também em processo de desmonte.

Escrevo com sinceridade estas linhas, como testemunha da construção do Brasil democrático que precisamos resgatar, e que teve em Sarney um artífice importante. A ele, longa vida e reconhecimento.


Texto original em português do Brasil


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