Simplificações excessivas e reivindicações com cabimento discutível
As manifestações de hostilidade de base racial entre sectores da população residente em Portugal parecem emergir com aparente independência de ciclos governativos e podem ser propiciadas pela desagregação de mecanismos de enquadramento que garantiram em épocas passadas algum grau de coesão. Já partilhei aqui no Tornado algumas impressões sobre as primeiras limitações ao progresso das liberdades imediatamente após o 25 de Abril(i). Recordo agora uma manifestação de hostilidade que vem dos últimos tempos do “cavaquismo”: a constituição das milícias de Francelos para fazer face aos ciganos, que curiosamente coincidiu com notícias sobre a aquisição de cinemas pelas novas Igrejas, num país em que tradicionalmente vinham da Igreja Católica os impulsos mais conservadores, mas também os desprendimentos de militantes progressistas que alimentavam muitos movimentos sociais. Um monopólio legal – o da força por parte do Estado – e um monopólio de influência moral – o da Igreja Católica- eram simultaneamente postos em crise.
Olhando apenas para o primeiro destes aspectos, considero o fomento de manifestações de hostilidade racial como especialmente perturbador em termos sociais e defendo, como é conhecido, a ilegalização das organizações que as promovem, mas parece-me útil ter uma visão crítica sobre algumas excessivas simplificações, como as que vão surgindo por aí.
Numa entrevista à Visão(ii) realizada em 2020, Cristina Roldão, identificada como Professora da Escola Superior de Educação de Setúbal, Doutora em Sociologia e Investigadora do CIES – ISCTE , segundo a revista com ligação ao estudo das questões relacionadas com os afrodescendentes e as desigualdades na Educação, a juventude e os bairros de realojamento, defende que os portugueses são mais racistas com os grupos com quem têm mais proximidade histórica e descarta a explicação da baixa escolaridade.
“Quais são as causas deste racismo? Ignorância? Ódio?
É um passado colonial que está na nossa memória e que perdura, porque não temos medidas ativas para o desconstruir. Há um imaginário de que determinados grupos são subalternos. Não se trata de ignorância, porque somos mais racistas exatamente com os grupos com quem temos proximidade histórica, como os brasileiros, as pessoas de origem africana ou a população cigana. Porque não há racismo com os finlandeses, com quem temos muito menos História comum? Porque não é uma questão de não conhecer o outro, tem que ver com hierarquias raciais que se estabeleceram historicamente e que durante séculos foram legitimadas por grandes instituições da Ciência, da Igreja e da Política.”
“ O racismo não é maior entre pessoas com baixa escolaridade?
Talvez essas pessoas tenham menos ferramentas de sofisticação para ocultar o seu racismo, enquanto outros dominam mais a linguagem e a autocensura. Mas há momentos em que a coisa vem ao de cima, escapa.”
De forma aliás recorrente em diversas intervenções, Cristina Roldão apoia-se nos estudos do European Social Survey, para afirmar que:
“Os portugueses estão entre os povos europeus que mais acreditam que existem raças naturalmente superiores a outras, ou que existem grupos culturalmente superiores – isto na ordem dos 50, 60 por cento.”
Quando a necessidade de fundamentação desta tese começou a pressionar chegou-se mesmo a afirmar que só 11 % dos inquiridos em Portugal estavam libertos da crença de que existiam grupos culturalmente superiores.
Não conheço Cristina Roldão nem o seu trabalho académico, mas este tipo de explicação pelo passado colonial, parece-me carecer de validade em relação às populações ciganas, ser questionável em relação aos brasileiros, aliás uma sociedade heterogénea, e estar construído de forma a colocar no mesmo saco manifestações de racismo e declarações de condenação do racismo.
De facto, quando Jerónimo de Sousa declarou publicamente que a maioria do povo português não é racista, logo foi denunciado como negacionista do racismo (quase pior do que racista…) e o PCP espetado na ponta de um ataque em forma assinado pelo SOS Racismo e por uma série de “colectivos africanos” sem outro argumento que não os dados do European Social Survey. Pouco importava que Jerónimo de Sousa estivesse a atacar o racismo e a afirmar que a grande maioria do povo português não tinha sentimentos racistas.
Começa entretanto a ser aparente que este tipo de construção visa conseguir resultados práticos no plano, digamos, redistributivo.
Mostra-o um dos artigos mais recentes de Jorge Fonseca de Almeida (economista, colunista do Jornal de Negócios, que também já passou pelo Jornal Tornado), que partilha com Cristina Roldão, como mostra um artigo desta também recente, a reivindicação de “quotas” ou “cotas” étnico-raciais:
- “Quotas para minorias? Indispensável!” é o título do artigo de Jorge Fonseca no Jornal de Negócios de 21 de Maio de 2021, a título de compensação do colonialismo e da perseguição histórica às minorias, incluindo judeus e muçulmanos, defendendo “Quotas étnico-raciais” para acesso ao ensino superior(iii)
- “A questão racial no caso da Lusa” é o título do artigo de Cristina Roldão no Público on line de 15 de Maio de 2021, onde se defende a necessidade de “Cotas étnico-raciais” nas redacções e na Política(iv).
Há contudo algumas dificuldades, que não podem ser iludidas, na justificação das responsabilidades do Estado português neste domínio, bem como na delimitação e identificação das minorias que deveriam beneficiar da instituição de “quotas” ou “cotas” étnico – raciais e em geral de acção afirmativa com vista à redução das desigualdades.
Por um lado todas as independências de PALOP´s foram reguladas por acordos em que foram parte o Estado português e os movimentos que foram considerados representativos das respectivas populações (e no caso da Guiné Bissau por acordo com um Estado já proclamado) não sendo evidente que o Estado português tenha de tomar quaisquer medidas a título de compensação do colonialismo (ou da escravatura) em favor de pessoas que, retendo ou não a nacionalidade portuguesa, se foram fixando, por razões essencialmente económicas, na antiga “Metrópole” num processo que em muitos casos já vai na 3 ª geração. Aliás no plano dos direitos económicos e sociais a Constituição da República Portuguesa garantiu aos residentes a generalidade dos direitos garantidos aos nacionais, e a legislação que dificultou a obtenção da nacionalidade por uma grande parte dos deslocados ou imigrantes dos PALOPS e dos seus descendentes, tem vindo, e bem, a ser flexibilizada.
Quem ficou nos países de origem está hoje integrado em sociedades mais ou menos estabilizadas, ou que pelo menos já não são desestabilizadas pela colonização portuguesa ou por situações neo-coloniais, dotadas das suas próprias elites políticas e económicas(v), nalguns casos servidas por universidades próprias e noutros beneficiando de acesso a algumas escolas portuguesas, inclusive, nalguns casos de escolas politécnicas, com apoio das suas entidades empregadoras.
A circunstância de muitos dos imigrantes dos PALOPs terem de aceitar trabalhos não qualificados não os distingue de outros imigrantes e até de outros residentes originários que têm de aceitar o mesmo tipo de trabalhos, não constituindo necessariamente um problema de justiça racial. A dificuldade de acesso dos seus jovens ao ensino superior resulta essencialmente de condições familiares e económicas, ou até de falta de informação e incentivo para prosseguir uma “carreira profissional” fora da sua “classe” mas de novo o mesmo sucede com muitos outros jovens residentes, imigrantes ou mesmo originários. Há necessidade de corrigir os efeitos destas desigualdades a favor do objectivo constitucional da igualdade real, mas não apenas em função de preocupações étnico-raciais.
Por outro, seria necessário delimitar as minorias, segundo uma definição “para si” que estivessem em condições de aceitar. A insistência neste ponto, a consequente crítica às perguntas do Censo, e a defesa da identificação como “negros” ou como “afrodescendentes” que Cristina Roldão, se bem percebi, assume no seu mais recente artigo, traduzem um debate que interessa aos potenciais destinatários, mas também aos restantes sectores da população.
E, enfim, a definição constitucional do princípio da igualdade
“Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Coloca algumas restrições à definição de estratégias que visem alcançar a igualdade real dos cidadãos com recurso a discriminações positivas baseadas nestes factores.
A questão das condições de acesso ao ensino superior é a que tem emergido mais de um debate que estará a envolver o Governo, a Administração, e aqueles que têm sido tidos como representantes de minorias étnico-raciais.
Apesar de tentativas de transferir a definição dos critérios de ingresso no ensino superior para as próprias instituições – algumas das quais chegaram a tentar utilizar a figura da carta de recomendação – o ingresso está ainda no essencial dependente de um concurso nacional de acesso comum às instituições de ensino superior público – que foi aliás flexibilizado com a abertura de processos de selecção a nível de instituição para candidatos com mais de 23 anos (maiores de 23). O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas tem mostrado algumas preocupações com a fidedignidade dos resultados com das classificações obtidas no ensino secundário, particularmente das avaliações pela qual se responsabilizam escolas privadas, tendo aparentemente começado a confrontar os resultados com a performance realizada nas próprias instituições, mas o sistema continua a ser o que tem existido e não parece em vias de sofrer correcções através da consideração de quotas étnico-raciais ou da majoração das notas dos candidatos através desse tipo de factores.
Para além de considerações de constitucionalidade, deve reconhecer-se que uma evolução nesse sentido seria susceptível de desencadear fortíssimas reacções adversas num sistema de ingresso já muito marcado pela comparação de médias de classificação(vi).
Neste contexto a proposta de atribuir no ensino superior uma quota para candidatos oriundos de Escolas TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária) que teria o beneplácito do Conselho de Reitores(vii) parece ser uma forma airosa de tornear as dificuldades.
No entanto o radicalismo, associado ao que me parece ser um certo grau de desconhecimento do funcionamento do sistema educativo, parece estar a fazer das suas. Veja-se no artigo citado a seguinte reacção de Jorge Fonseca de Almeida:
“O governo propõe quotas territoriais para o acesso ao ensino superior. Pode ser um primeiro passo, mas não é suficiente. Porque estas quotas podem ser facilmente apropriadas pelos que as não merecem e deixar de fora aqueles que delas deviam aproveitar. Como impedir uma família de classe elevada branca de inscrever o filho no 12º ano em escola de zona de quotas territoriais e ficar ele com o lugar que devia ser para outro? Como impedir os professores de excluírem os alunos das minorias nos anos iniciais e garantir que só chegam ao final do ensino secundário os outros?”
De qualquer forma, para mim, aquilo com que a sociedade e o Estado portugueses se devem preocupar é com o apoio aos alunos que tendo capacidade intelectual e hábitos de trabalho para prosseguir estudos após a conclusão do secundário, não o fazem por necessidade de contribuírem para o sustento da família ou de alcançarem um mínimo de estabilidade pessoal, e não com a atribuição de quotas étnico-raciais a título de “reparação” do colonialismo ou de “normalização” das estatísticas.
Notas
(i) “1974 …”, publicado em 9-10-2019.
(ii) Visão, 12-7-2020
(iii) Quotas para minorias? Indispensável
(iv) A questão racial no caso da Lusa
(v) Que no caso angolano vieram mesmo a mostrar uma assinalável – e, parece ser hoje consensual, indesejável – inclinação para investir em Portugal fortunas de origem duvidosa.
(vi) Repare-se que não tenho interesse pessoal ou familiar na matéria, uma vez que tive a experiência de, sendo pai de uma aluna que concluiu o secundário com média de 17 valores, a vi escolher uma licenciatura em que se entrava com 15 valores… .
(vii) No Site da Direcção-Geral da Educação em 16-5-2021
“O Programa TEIP é uma iniciativa governamental, implementada atualmente em 136 agrupamentos de escolas/escolas não agrupadas que se localizam em territórios economica e socialmente desfavorecidos, marcados pela pobreza e exclusão social, onde a violência, a indisciplina, o abandono e o insucesso escolar mais se manifestam. São objetivos centrais do programa a prevenção e redução do abandono escolar precoce e do absentismo, a redução da indisciplina e a promoção do sucesso educativo de todos os alunos.”