As cidades cansam. Sinceramente, nestas varizes que se alongam pelas pernas fartas de filas, de ministérios, dos centros de saúde, da fila do autocarro, do metro repleto sem lugar para mais um, cansam mesmo
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De madrugada, as águas tocam melodias, escorrem no seu ritmo e cantam, as águas, frias tantas vezes sabem também ser quentes, ecoam como uma alvorada, como o piano desaparecido, como uma sinfonia só para mim nesta floresta de coisa nenhuma, entendo um delírio, uma perdição, sinto as vozes, o rosnar da indisposição calar-me pelo caminho, ouvir os meus passos neste divã de folhas esquecidas, coisa que possa ter existido, a tua mão forte, fugaz, coisa nenhuma, ainda no útero da verdade, neste manicómio de paredes brancas, o psiquiatra a seguir-me por todos os lados e nada dele quero, a voz de uma vizinha, suave, mãe, por que razão a voz de uma mulher se o psiquiatra é um homem gordo e feio, de barbas compridas, cabelos compridos, óculos pequenos e de lentes grossas, feio, faz-me teme-lo, o seu aspecto, e vem, segue-me ainda e deixo de o ver. Um dia abrirei os olhos, quero vê-la despida neste leito isolado e a meu lado deitar-se, uma mulher qualquer, senti-la ou coisa nenhuma, mas ouvi-la por todos os poros, mais que tudo.
– Deixe-me adivinhar!
A lida nesta casa nómada, vigiada por tardes mesmo que perdidas, sinto como, indiferente que estou, ia ladeira abaixo. Penetrar o tempo. O meu sono com zumbidos secos que flutuam devagar. Parece que me invento por aqui numa caminhada feita na cidade construída neste delírio, acreditas? é a minha memória divagante.
Uma floresta.
Diz-me, uma cidade.
Ou verdade nenhuma.
As cidades cansam. Sinceramente, nestas varizes que se alongam pelas pernas fartas de filas, de ministérios, dos centros de saúde, da fila do autocarro, do metro repleto sem lugar para mais um, cansam mesmo, os combustíveis que vagueiam o ar que respiro, carburantes que me poluem a paciência, solventes sem perdão e a minha vista bifurcada numa luz sem que nada ilumine, sinto as caluniantes vozes perdidas nas tabernas, esplanadas, de quem segue sem que saiba mais da vida dos perdidos, de tantos que irão certamente perder-se também, alguns vazios e outros estreitos, por carreiros. Por baixo das árvores a minha vida aberta aos ventos, esquecida de deveres e razoes, vadia se tiver de ser, e entre os meus, como me dizem, janelas abertas esperam um pedaço de pão, obrigações, e o meu rosto a encher-se de rugas e a cabeça feita num branco de neve e cansado de tantos nadas nestas coisas feitas de breu, seja o que for que importa?, o betão cresce num ritmo nem por ele dou mas não o quero nas minhas mãos, canso-me de ver paredes na estrada, nas ruas, na vida, sinto como caminham devorando-me da minha paz.
Psicologicamente decapitado.
Ah, mais vida. Este furor azucrinante é garantidamente mais vida.
E ventos, soltos, tempos espalhados na praça da figueira, ou que terreiro do paço, lugar com mais pedras cada vez, sozinho.
Contam-me de injustiças.
À cabeceira, (imagino que a tenha), um livro de mil páginas esquecido, esquecido nunca, faz parte dos meus instantes e busco-o nas lezírias das minhas insónias, tento nele definir ou encontrar-me.
(vontade de ti mãe).
O horóscopo não me convence.
Solto nas tardes restos de que vento, que tempo, estas tardes que me vadiam o rosto e contra os meus cabelos soltos na rua onde sei lá, talvez more, sensações de que nem sequer morada tenho se perdido tanto faz, não devo estar, não, não devo, mas é lá ou nela os meus dias, no meu riso enganado. Sobre a falésia estendida nos côncavos passos dos meus pés doridos, dormem os meus desejos sem saudade, ah, queria ter dito também, já não sei o que são saudades, a minha perdeu-se numa esquina abandonada e como de novo encontrá-la?, o tempo perdeu-se de mim, perdi-me dele, perdemo-nos longe um dos outros como a tempestade passada, ai que longe tudo isto, tudo se faz longe, mesmo que navegar me descobrisse dos teus olhos ausentes neste mar de Lisboa, acolhido pela tua saudade, brilhos confusos, distorcidos, breves são os silêncios que a tarde leva todas as tardes, ou se disser todos os dias cada vez que acordo nesta cama de palha inventada para me acolher, acordar com um brilho silencioso, deve ser tão bom, tão lúdico e belo, gostava tanto de sentir, bailar sempre esta dormência do mundo, e a minha mão enganada assina o meu destino dou-te o meu futuro, vazio que estou que levarás?, o ciclo seguinte é coisa nenhuma, os anjos dormem separados da verdade, escondidos dos sonhos, a floresta assombrada nesta tarde de chuva a terminar, sinto já o escuro a anunciar-se:
(uma voz estampada).
Sobre os rochedos os restos, dizem pescadores que já nem pescar pescam, perderam as barcas, ouvi de outro:
Na minha família amigo, já conto mais de vinte perdidos.
Dizem-me de gritos, sobre que gritos, razões perdidas tão longe, tão longe, razões sobre razões e já tantas foram sem coisa alguma:
– O barco afundou-se e dele, nada sabemos, ficou a viúva, ficaram os filhos, perdeu-se a vida com tudo isto!
Mas eu, e deixo-lhe aqui o meu nome, assumo, senhor Silvério Valadares Villas-Boas.
Outra voz não a mesma, de Esposende, perdidos no mar furioso e porque se enfurece o mar? pergunto eu que nada sei de meteorologia.
Não quero gritar. Nada quero anunciar. O meu cansaço mata-me. Sinto dores por todos os cantos, rendo-me. Perdi. Se isso significar um projecto de paz com os puderes, paz, um fim de guerra, quero.
E soltam que ventos? as tardes? Os risos sobre as areias esperando quem nem sei se voltará, espero quem morreu, sei que morreu.
– Pois meu amigo, alguém vive depois de vinte dias debaixo das águas do mar?
Liberto-me deste sargaço com o cheiro do bagaço, o som do medronho no balcão:
– Dois Martins!
Fugir.
Ai que cansaço, sempre.
E esta via, garanto, irmos, ter um dia um fim, a estrada termina, duvidas?, um fim nunca se esquece, quem sabe se é perdoado, depende de tantas coisas, tantas, mas um fim, muito mau para ambos, eu, cunhado, e a minha irmã Joana viúva aos vinte e oito anos sem pensão nenhuma, com dois filhos.
A floresta.
Eu, meio perdido, tu algo indiferente já, pensei que anestesiada com diazepam para nem sequer sonhares, ofendida, a vida nunca é longa, dure o que durar:
– Filho, a mãe não tem anjos nas mãos.
Mas como temos um espírito de companheirismo. Sei. Gostos nem sempre iguais, nunca diferentes, gostas mais de ser uma mãe rendida à vida, abraçá-los Libéria, sobre a areia da praia onde esperam o corpo de Sidónio morto talvez num naufrágio silencioso para nós, deitados nesta cama de flanelas quentes.
(Aí no mar amor, o calor existe?)
Submissa. Calada. Jogar o jogo de quem perde que adianta, a derrota, que significa isso?
(Deus te tenha Sidónio).
Por que via?
Um dia sairei da floresta. Pôr o cérebro na praia, ocupar o silêncio com músicas dos grandes ídolos soviéticos, o peso acústico de Tolstói, suavidade a negro nas páginas peregrinas do deserto escondido por que casa habitarmos, amargos e doces nas vozes, esses silêncios perpetuam-se e escorrem sem deixar rasto sequer, descem como uma ribeira abandonada, estendido na sala do vizinho escuto-o, enquanto eu, deitado ainda, mergulho fechando olhos:
– Larga-me pela madrugada!
Explicam-me o óbvio. Metem-me em redomas vazias com palavras que já conheço, misturam-me nas folhas castanhas destas entranhas redundantes às vozes escondidas nessas palavras como sonhos ou pesadelos e vergonha, sentir a cara fria, gelarem-se os dedos, renascer outro medo, o escuro da floresta faz ter medo tantas vezes, o ruído da cidade não mete mede, apenas me deixa nervoso, não sei se durmo e rebolo sobre relvas e prados, sinto um eco nefasto nesta sala:
– Desliga o televisor Lurdes!
Sento-me a um canto, abro um livro, um livro longo, dos mais longos que tenho à cabeceira e com paciência.
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas