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Quarta-feira, Dezembro 25, 2024

Uma guerra contra quem? O escândalo da COVAXIN e a urgência das ruas

Valdete Souto Severo
Valdete Souto Severo
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora

Morrem cerca de 80 pessoas e outras 2.500 são contaminadas pela covid-19 a cada 60 minutos. Já passamos de 514 mil óbitos e de 18 milhões de infectados. Essa não seria a dimensão da nossa dor e da nossa perda, se vacinas tivessem sido compradas ainda em 2020, quando foram oferecidas ao governo. Bolsonaro cancelou a compra em outubro; negou-se novamente a comprar em novembro. Em dezembro, insinuou que quem tomasse vacina viraria jacaré. Chegou a dizer que “a pressa da vacina não se justifica”.

As vacinas aprovadas pela Anvisa, e compradas pelo governo, chegam aos soluços. Em muitas cidades faltam doses. Novas variantes do vírus, somadas à incerteza quanto ao tempo de imunização e o atraso na vacinação, justificam alguns diagnósticos alarmantes. Por isso, cientistas e infectologistas reafirmam a importância de cuidados simples, como o uso de máscaras. O presidente, que quase nunca usa, recentemente retirou a sua máscara, para ofender repórteres que o questionavam. Pessoas que o acompanhavam fizeram o mesmo, colocando todos em risco de contaminação. Não há campanha pública de incentivo à imunização. Logo, nada permite concluir tenha havido uma mudança na lógica negacionista de que “a pressa da vacina não se justifica”.

Eis porque é tão grave a denúncia de pressão para assinar documentos que garantiriam a compra da COVAXIN, em tempo recorde. Um governo que nunca se preocupou com vacinas, de repente firma um contrato com valores mais altos do que os praticados com os demais laboratórios, para comprar uma vacina que não foi aprovada pela Anvisa. E tem mais. A compra não foi negociada diretamente, mas intermediada pela mesma empresa que assinou um contrato para fornecimento de 5 milhões de preservativos femininos ao Ministério da Saúde, em 13/11/2020, por R$ 15,7 milhões. Esse valor foi alterado em fevereiro deste ano, para R$ 31,5 milhões. A justificativa foi a correção na cotação do dólar. Se fosse um crédito trabalhista, podemos até pressupor o escândalo que geraria uma tal “correção monetária”.

A defesa do governo foi de que nem um real foi pago até agora. É verdade. O que não altera o fato de que o negócio foi feito, o valor foi empenhado, o que implica dizer que não poderá ser gasto com outras despesas públicas. À CPI, perguntado sobre o fato, tanto o servidor quanto o irmão, deputado federal, relataram que, percebendo irregularidades no primeiro documento de compra, conversaram diretamente com o presidente sobre isso, no dia 20 de março. Na conversa, Bolsonaro teria dito que a compra era “rolo” do deputado Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, e que iria levar o caso à Polícia Federal, mas nada fez.

É tristemente simbólico e profundamente significativo o fato de que a denúncia de corrupção no atual governo tenha relação com a compra de vacinas, em meio a um dos piores momentos da pandemia. Afinal, tantos entre nós justificaram seu voto em 2018 na vontade de não conviver mais com a corrupção. E agora ela reaparece, insistindo em nos confrontar com a realidade de que sempre existiu. Apresenta-se justamente naquilo que há de mais dolorido. Soma-se à negação da compra de vacinas no ano passado, ao boicote à campanha de imunização e se traduz em mortes, em perda de capacidade laboral, em dor. Em tanta dor.

Significativo também foi o pronunciamento de Onyx Lorenzoni, no dia 23 de agosto, após a denúncia. Ele iniciou com citação da Bíblia, seguiu evocando sentimentos nacionalistas e concluiu dizendo: “vai ter que pagar, vai ter que se ver conosco”. O presidente confirmou: em vez de investigar as denúncias, pedirá à Polícia Federal que investigue o servidor. E nada aconteceu. Ninguém foi afastado. A CPI segue. Os mais de 100 pedidos de impeachment continuam parados.

Analisando o fascismo da década de 1920, Clara Zetkin conclui que a reação autoritária é uma espécie de “asilo para todos os desabrigados políticos”, arrasta consigo quem perdeu “a segurança sobre a garantia de sua existência e, com isso, a sua crença na ordem social”. É também fruto da desesperança, causada por uma violência insuportável.

Naquela época, a sedução do fascismo foi resultado, inclusive, segundo a autora, da violência produzida pela primeira grande guerra. É interessante, portanto, que a metáfora da guerra tenha sido utilizada recentemente por Arthur Lira, para justificar sua inércia. Se, como disse o presidente da Câmara dos Deputados, não há como apurar “crime de guerra no meio da guerra”, duas reflexões precisam ser feitas.

Em primeiro lugar, é preciso compreender que, se há uma guerra, não se trata de guerra contra o vírus, mas sim contra o povo brasileiro, destinatário do deboche, do escárnio, da omissão e da atuação corrupta que o desampara, que o expõe ao adoecimento e à morte. Então, é necessário definir o que faremos diante do desencanto. Afinal, o autoritarismo historicamente tem seduzido boa parte do povo brasileiro e a violência a que todos temos sido submetidos já se torna insuportável.

A saída não pode se restringir a uma eleição que ainda tardará para acontecer e que talvez se limite a repetir erros do passado. Até porque essa guerra vem sendo travada há muitas décadas.

É urgente retomar a crença em um horizonte utópico; a aposta em mudanças estruturais mais profundas, que façam a vida fazer sentido. Essa é a razão pela qual as ruas vêm sendo ocupadas, “apesar dos perigos, de todos os pecados, de todos os enganos”, pois como diz a música “estamos marcados pra sobreviver”.

Já há notícia de mobilização para o dia 3 de julho. Não é hora de ceder, conceder ou adiar atitudes que já se tornaram inadiáveis. A omissão é a maior violência que se pode cometer hoje contra o povo brasileiro.


Texto em português do Brasil

Fonte: Brasil de Fato

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