Em seus versos, de extrema musicalidade e plasticidade, Cristo e Buda, Oxum e Pachamama dão as mãos a Rosa Luxemburgo e Che Guevara.
Mineira de Montes Claros, Marli Fróes é uma poeta voltada à experiência do sagrado, presente no meio ambiente, na comunhão com todas as formas de vida, no amor e na luta política. Em seus versos, de extrema musicalidade e plasticidade, Cristo e Buda, Oxum e Pachamama dão as mãos a Rosa Luxemburgo e Che Guevara.
A autora publicou o livro de poemas Carnaverbo e o ensaio A Autoria, a Paixão e o Humano em Clarice Lispector (livro resultante da tese de doutorado), além de ter participado de várias antologias. Publicamos, abaixo, cinco de seus poemas.
Adiar o fim do mundo
Para Ailton Krenak
A vida deve ser fruição
dança cósmica!
os viventes; um sumo único, viscoso, elástico
– radicalmente vivos –
interconectados como a teia da aranha
que anuncia a verdade da fome e do alimento
saber de onde vem o pão
e quem planta a semente
honrar toda forma de vida
o abraço elemental
o espírito de Pachamama
misturar o nosso corpo com toda matéria bruta,
a matéria primeira da vida
na sua quentura nascente
vida: não um roteiro
de como ser eleito para o centro
ou lançado para a margem
É preciso coragem
para a travessia do deserto e do desastre
Não devorar o mundo,
mas aprender
com o verde-azul
da floresta,
reinventar o mundo.
Tensão
Superlua em escorpião
Buda Gautama dá as mãos a Cristo
no Himalaia
é o Festival de Wesak
Sete ervas,
Sete incensos,
Chegam ao Brasil
e vão para o terreiro do Pai José
jogar capoeira
que é um modo de varrer a sujeira,
o instintivo, a sombra.
Bebem jurema preta
banham em ervas
Buda, Cristo, Pai José chamam os líderes mundiais
seres da necropolítica,
– campo minado –
adentram a floresta
para o círculo das mulheres xamãs,
defumação, chás, força do rapé e da
ayahuasca
conhecer a força do sangue da mulher,
a roda da vida
conectar com a deusa, com Gaia
com o sol e com a lua
lavar a roupa suja:
pendências da escravidão,
desigualdade social,
distopias…
botar o varal de roupas de alecrim
à espera de quem nascerá
e de quem morrerá.
Entrelugares ou o amor ntural
Para Sidnei Olívio
Não estar longe…
habitar a epiderme do mundo
ser sol, outras vezes chuva
grão em broto
a beijar a terra
foto-síntese-luz,
germinar em vários jardins:
amanhecer, florescer
todos os dias!
Ser a planta,
o pássaro- pólen
antera
pantera
gimnospermas
enovelar
em suas pernas
estourar em frutos
receber o orvalho
na pele pétalas
risco, arabescos
ramagens
sombras dentro das sombras,
camuflando panteras
tuas unhas
em perigos de cio…
acordando kundalini
Sincrética dor ou amor em atos
I
Em Diamantina,
a mulher adornada de terço acende a vela
rasga a multidão para tocar
na nossa senhora das candeias,
II
No passado
parturientes em quarentena de purificação
na lei mosaica, imolavam, diante do sumo-sacerdote,
cordeiro, pombas ou rolas
III
No livro sagrado
Conta-se que, em presença de Simeão
apresentaram-se Maria e José
Da purificação da virgem
nasce a festa da candelária
IV
Além mar
padroeira das Ilhas Canárias
de Portugal atravessa o oceano
em terras ameríndias arrasta a procissão de velas
nossa senhora da luz, das candeias, candelária, invocada pelos cegos
passeia pelo Sermão de Vieira
V
No Rio de Janeiro
os adolescentes dormiram para sempre
em frente à Igreja da Candelária
Qual luz, Nossa Senhora !
VI
Do mar
vem Yemanjá e dá as mãos à Nossa Senhora da Candelária
A virgem beija um a um em pétalas de um amor
inalcançado pelos homens.
VII –
De Aruanda
Oxum canta, em Iorubá, um lamento nunca ouvido
Coloca seus adornos na fronte dos meninos anderson, valdevino, gambazinho, leandro, paulo josé e marcos.
Oxum chora uma cachoeira
e os meninos veem
brincam nas águas
esquecidos da vida e da morte.
Ritmo
jazz na esquina
jaz o tempo que é morto
as notas nunca igualmente repetidas:
reverberadas em algum lugar.
sem jungle otimista ou serenata
que atravesse a manhã
recolho os meus pertences
que no fundo não são meus
arrasto a barra da saia
que varre o chão
– memória de um mar ancestral –
lembrando… nada na vida é para sempre
tudo metamorfoseia noutra vida:
arquivos, marcas, necroses,
pinturas rupestres, seres calcificados
memórias a dizer
que a vida é sempre contínua.
ainda que a orquestra seja interrompida
a música se consubstancia
em algum lugar inescapável…
sigamos varrendo o chão,
recolhendo o sangue
e as flores dos nossos antepassados…
por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutorado em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte | Texto em português do Brasil
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