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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

Ciência e fake news

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

Quando a desinformação se propaga à velocidade do fogo em pasto seco – beneficiando não apenas da avidez trazida pelas redes sociais e do facilitismo que grassa na generalidade dos meios de comunicação, mas principalmente de estruturas bem organizadas e financiadas para a sua difusão – não será de estranhar que a ciência (entendida no sentido lato da investigação e aquisição de conhecimento nas mais díspares áreas, tanto das ciências exactas como das sociais) seja uma das actividades mais atingidas, podendo até dizer-se que, na actualidade, a ciência está a ser pervertida para fins políticos de uma forma sem precedentes.

As fake news não são uma coisa de há meia dúzia de anos, nem os factos alternativos (eufemismo que veio substituir a vulgar mentira) de Donald Trump e demais políticos e dirigentes mais ou menos populistas serão mais perigosas do que tantas outras que circularam e continuam a circular; o problema é que a conjugação de factores como o facilitismo, a preguiça e a iliteracia das populações estão a conduzir-nos para uma situação demasiado perigosa. Talvez, por isso, haja quem pense que Donald Trump (e outros populistas formados na escola de Steve Bannon) era perigoso para o Sistema não porque as suas mentiras fossem mais prejudiciais ou mais convincentes do que outras, mas porque, ocasionalmente, o monólogo egocêntrico e divagante que continuamente cultiva inclui algumas verdades inconvenientes, esquecendo (ou esperando que o façamos) que uma ou outra destas possíveis verdades inconvenientes é muito pouco no vasto oceano de mistificação e desinformação que aquele tipo de políticos continuamente cultiva e propaga.

Depois, a ideia de poder existir quem decida o que é verdade e proíba a publicação de falsidades pode soar, por instantes, como boa e defensável, até se formular a questão de saber quem separa a verdade da mentira! A um passo do restabelecimento da censura ou da recriação do famigerado SNI (Secretariado Nacional de Informação, eufemismo do que começou por ser o Secretariado de Propaganda Nacional criado pelo regime do Estado Novo) é o momento de reflectirmos sobre o que queremos para o futuro… e a escolha até pode parecer simples e resumir-se a saber se queremos uma sociedade onde impere um livre arbítrio sustentado no desenvolvimento das capacidades cognitivas e racionais de cada indivíduo, apoiadas pela pesquisa e informação científica orientada pelo interesse geral e não pelo empresarial, como hoje temos, ou se aceitamos que alguém defina por nós o que está certo ou errado.

A crescente polarização das sociedades, que leva à rejeição presunçosa das opiniões e pontos de vista contrários sem grande esforço da sua documentação e comprovação (veja-se aqui no Tornado o ponto de vista de Paulo Casaca em «Do pangolim ao plano delta»), será tão responsável pela difusão das fake news quanto o ambiente de descrédito das instituições, motivado pela crescente percepção da teia de interesses (políticos e empresariais) que rodeia a produção e difusão do conhecimento científico. O que temos assistido em torno da Covid-19 e da profusão de “opiniões” e “conselhos” de especialistas e demais opinantes é disto claro exemplo. Os especialistas deixaram de debater entre si para formarem a verdadeira opinião científica; passaram a fazê-lo nos meios de comunicação e a estes se juntaram meros curiosos (ou mal intencionados fomentadores de dúvidas alheias), aumentando a dificuldade na distinção entre informação e desinformação e, consequentemente, contribuindo para um alvoroço generalizado cujo principal objectivo poderá bem ser o de justificar a aplicação de métodos de vigilância a pessoas com opiniões em desacordo com a narrativa prevalecente.

Este evidente risco de recurso a novas (e velhas) formas de censura ganha contornos actuais (e ainda mais perigosos) que em caso algum resolvem a questão fulcral da qualidade da informação. Esta questão deveria ser a preocupação central de académicos e investigadores, não estivessem estes demasiado ocupados no financiamento das suas actividades, ou directamente empenhados em think tanks organizados segundo orientações político-económicas.

Tal como em outras áreas da sociedade, também no campo da investigação se tem feito sentir o condicionamento neoliberal que, impondo os dogmas das restrições orçamentais e da minimização dos aparelhos e capacidades públicas, provocou uma sangria de técnicos, especialistas e investigadores levando à extinção ou à inoperacionalidade de muitos institutos públicos que foram centros de conhecimento e de difusão de informação, com o vazio assim criado a ser preenchido por organizações mais ou menos privadas e agendas subordinadas a interesses económicos distantes do interesse geral.

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