Do futebol é comum dizer que é “mais do que um jogo”. A frase poderá ter diversas interpretações, mas o que será inquestionável é a dimensão universal desta modalidade desportiva, dimensão essa comprovada em audiências, investimentos entre muitos outros fatores.
Obviamente a ideia segundo a qual o futebol pode ficar fora da esfera política é uma utopia nunca realizável (e seria desejável?). Num cenário de polarização política como o que se vive atualmente, tal seria ainda mais impossível de atingir, e o recentemente terminado Campeonato da Europa de Futebol foi a prova disso, com a questão LGBT a atingir maior visibilidade neste particular, dado o contexto político em torno da situação da Hungria.
Mas se em relação à questão LGBT se verificou alguma unanimidade por parte do mundo do futebol europeu, o mesmo não se poderá dizer em relação à questão do racismo, em especial no que diz respeito ao celebrado gesto de ajoelhar por breves instantes antes do início das partidas, que tem sido praticado naquele que é atualmente o principal campeonato de clubes do velho continente (Premier League Inglesa) e apadrinhado nas competições europeias de clubes pela UEFA. E face a isso, não será exagerado concluir que o gesto assumiu uma conotação tão anglo-saxónica que merece a designação em Inglês: take the knee.
A história do gesto, como expressão de solidariedade e luta contra a discriminação racial, tem ramificações antigas, mas adquiriu maior visibilidade quando a estrela de um outro futebol de um outro continente, o protagonizou em 2016. Em concreto, Colin Kaepernick, quarterback dos San Francisco 49ers, e para tornar compreensível a coisa, um “quarterback” é uma espécie de distribuidor de jogo lá pelo país onde o nosso futebol tem o nome de “soccer” e fama de ser um jogo de miúdas (o que, felizmente, corresponde cada vez mais à verdade). Com os eventos em torno da morte de George Floyd às mãos da polícia, e o crescimento do movimento Black Lives Matter, o gesto ganhou força e internacionalizou-se. Ou, pelo menos, foi tentada uma internacionalização.
Saltando dos EUA para a Europa, como não poderia deixar de ser, foi no Reino Unido cada vez mais desunido que a principal influência se fez sentir. A Premier League apadrinhou o gesto e a seleção inglesa foi a primeira equipa nacional a seguir o exemplo quando, em setembro de 2019, defrontou a sua congénere islandesa para a Liga das Nações da UEFA. Seleção inglesa, Premier League e Champions League da UEFA apadrinharam o gesto, que sempre se revelou envolto em alguma polémica. E assim, do apoio ao movimento Black Lives Matter, o taking the knee passou a apoiar a luta antirracista, sem referência a um movimento que muitas vozes acusam de político e não humanista, num sentido mais lato.
Com mais ou menos polémica, o certo é que o futebol inglês aderiu a uma espécie de “norma antirracista” que tem caracterizado a escola de ciências sociais anglo-saxónica. Seriam inevitáveis alguns choques culturais. Um exemplo paradigmático apanhou o internacional português Bernardo Silva, quando em setembro de 2019 publicou um tweet com uma foto em criança do seu colega de equipa no Manchester City e amigo de longa data, Benjamin Mendy, lado a lado com o boneco da popular marca de chocolates “conguitos”. O francês não se sentiu ofendido e ter-se-á oferecido mesmo para pagar a multa, o treinador espanhol da equipa saiu em defesa do internacional português, assim como muitos colegas de profissão. Mas nada desviou a Federação Inglesa de Futebol da sua razão, embora reconhecendo não se tratar de um ato racista, mas de uma brincadeira. Resultado: um jogo de suspensão, 58 mil Euros de multa e participação numa “ação educacional”.
Já em outubro de 2020, foi a vez do internacional uruguaio que milita no Manchester United, Edison Cavani, ser apanhado nas malhas apertadas do que a Federação Inglesa considera racismo. Em concreto, respondeu com um “gracias negrito” a um comentário a uma publicação feita na sua conta no Instagram, após um jogo em que faturou dois golos. Desta feita o resultado da “infração” saldou-se em 112 mil Euros, 3 jogos de suspensão e… a participação na “ação educacional” com que o principal órgão que tutela o futebol inglês pretende educar quem que não segue a sua norma. Aqui a questão assumiu outros contornos. A Academia de Letras do Uruguai esclareceu que, localmente, a expressão tem cariz carinhoso. Já o jornal uruguaio Ovación, considerou o caso um “atentado contra a cultura do país”, e mesmo a Confederação Sul-americana de Futebol (Conmebol) expressou a sua solidariedade ao jogador castigado. Mais incisivo foi o sindicato de jogadores do Uruguai, que não se coibiu de responder à sanção imposta pela Federação Inglesa de forma contundente: “A sanção mostra a visão tendenciosa, dogmática e etnocêntrica da Federação Inglesa, que só permite uma interpretação subjetiva a partir de sua conclusão particular e excludente, por mais falha que seja”.(1)
Em resumo, a importação e adoção duma norma antirracista proveniente de outras paragens e de outros contextos externos ao futebol era uma desastre à espera de acontecer, só adiado pela situação pandémica que impedia a presença de público nos estádios.
Os primeiros indícios de que algo poderia correr mal verificaram-se mesmo antes do Europeu, após a tímida abertura dos estádios ao público. Mesmo com lotação muito limitada, as vaias ao take the knee começaram a ecoar pelos estádios ingleses, o que se repetiu em Portugal quando dois clubes ingleses disputaram a final da Champions League na cidade do Porto. Já aquando da outra final europeia, a Liga Europa, que opôs os ingleses do Manchester United aos espanhóis do Villareal, a separação foi evidente, com a equipa inglesa e o árbitro da partida de joelho no chão e os espanhóis… não.
Um dia antes do início da competição, a 10 de junho, enquanto em Portugal se assinalava o Dia de Portugal, o canal britânico SkySports apresentou um estudo(2) sobre o apoio do público ao take the knee. Com base em 4.500 inquéritos a adeptos de futebol de 9 países, a que adicionarem um grupo denominado “adeptos britânicos etnicamente diversos”, o resultado revelou que o país onde o gesto recebia mais apoio era… Portugal, com uns esmagadores 79%, suplantando mesmo a tal categoria constituída por britânicos etnicamente diversos. Mas a conclusão mais óbvia foi o facto de o gesto estar longe de recolher unanimidade, sendo a sua popularidade e apoio colhido junto dos adeptos inverso aos locais onde foi mais praticado e divulgado (maior apoio em Portugal, Espanha e Itália, menor apoio em Inglaterra, Escócia e País de Gales).
E assim chegámos ao Europeu, com a vacinação a avançar por todo o continente e a restrições de acesso de público aos estádios a permitirem um número cada vez maior de adeptos nas bancadas.
Foi um campeonato cheio de peculiaridades. Realizado por todo o continente (em concreto, 11 cidades) o estranho modelo obrigou algumas seleções a acumular milhas em voos enquanto outras praticamente não saíram do seu país, com destaque para a Inglaterra.
Já em termos de apoio ao take the knee, as seleções dividiram-se em três grupos: Um primeiro grupo constituído pelos participantes das ilhas britânicas (com exceção da Escócia) a que se juntou a Bélgica, que seguiram o gesto nos seus jogos. Um segundo grupo formado pelas seleções da Europa ocidental (com exceção da Bélgica), a que se juntaram Escócia e Turquia, e que optaram por não o fazer exceto quando defrontassem equipas do primeiro grupo, num gesto de solidariedade entre colegas. Por fim um terceiro grupo, constituído pelas seleções dos países mais a leste, que simplesmente não o seguiram em qualquer circunstância.
Em resumo o gesto antirracista de ajoelhar antes do início das partidas esteve ausente de quase 70% dos jogos, foi vaiado em quase todos onde foi praticado, tendo sido sempre seguido por apenas 3 das 24 seleções presentes. Uma derrota por goleada… Mas será que quem foi goleado foi o antirracismo ou, como referiu o sindicato de jogadores do Uruguai, uma visão etnocêntrica do que devem ser os valores da luta antirracista no desporto rei?
O Campeonato da Europa chegou ao fim. E também houve futebol. E de qualidade, há que o dizer! Começou de forma dramática, com o incidente envolvendo o dinamarquês Christian Eriksen e acabou em drama (menor, mas drama), com uma decisão por “pontapés da marca de grande penalidade”, em que para a decisão final, por motivos difíceis de compreender, o treinado inglês colocou um jovem jogador com idade e cara de menino. Um menino descendente de emigrantes nigerianos, a quem o futuro pertence. Na baliza um gigante italiano de braços abertos parecia ocupar toda a baliza. Aos olhos do jovem internacional inglês, olhos de medo, tenho a certeza que o tal gigante italiano era mesmo maior que o estádio. O miúdo falhou e quebrou emocionalmente. Inconsolável, enquanto os italianos faziam a festa. Mereceram ganhar. Foram a melhor equipa ao longo da competição. Mas aquele menino não merecia aquilo. Nem os insultos de teor racista que se seguiram nas redes sociais, quer a ele quer a outros dois jovens colegas de equipa que partilham com o menino assustado, de seu nome Bukayo Saka, para além da tenra idade, um tom de pele mais escuro. Um clássico do ódio alarve e ignorante, já anteriormente sentido na pele no decorrer desta competição pelo francês Kylian Mbappé ou, sem teor racial, pelo espanhol Álvaro Morata assim como pelo sueco Marcus Berg, perante falhanços clamorosos ocorridos poucos dias antes e que só não acontecem a quem não lá anda.
Portugal, campeão em título, passou de forma discreta pela competição. Colocado no “grupo da morte” ultrapassou a fase de grupos de forma tremida acabando por ser (injustamente, há que o dizer) afastado pela Bélgica, num jogo que decorreu quase em casa (Sevilha) e que deve ter sido a única partida em que o take the knee não foi vaiado pelo público. Principal destaque: Cristiano Ronaldo sagrou-se o melhor marcador da competição enquanto apanhava sol num iate em pleno Mediterrâneo. Definitivamente, não é para qualquer um…
Termino esta reflexão com um salto no tempo e no espaço. Em concreto até ao distante ano de 1994 e ao país de exportação do take de knee, que nesse ano organizou o Mundial de Futebol. Para muitos, esse evento foi uma espécie de derradeira tentativa para o país entrar no o grupo das nações que adoram futebol (mesmo chamando-lhe “soccer”…). Ironicamente os norte-americanos vaticinaram na altura que, caso essa derradeira tentativa falhasse, só restava ao “soccer” remeter-se ao seu último reduto: o resto do mundo. Findo este europeu, algo semelhante pode ser vaticinado noutro contexto: se nada for feito para adaptar a (justa) luta a diferentes realidades, só restará à norma antirracista made in acedemias anglo-saxónicas remeter-se ao seu último reduto: o mundo que fala inglês, e mesmo assim só em parte e sem apoio do público.
Entretanto a bola continua a rolar. Decorre já a fase de apuramento para o mundial do Catar, a disputar em 2022, e a polémica promete não abrandar.
Segundo o jornal britânico The Guardian(3), cerca de 6.750 trabalhadores provenientes da Índia, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram nos trabalhos de construção de infraestruturas, como estádios e hotéis, devido a condições de trabalho sub-humanas. São números assombrosos que pensaríamos próprios de outras eras, corroborados pela Amnistia Internacional. Vamos ver se estas vidas importam para o mundo do futebol e de quem o utiliza na sua condição de “mais do que um jogo”.
Notas
(1) Jogadores uruguaios defendem Cavani e dizem que Federação Inglesa foi ‘preconceituosa’ em punição por racismo
(2) Taking a knee: Football fans across Europe asked about its importance and if they support it
(3) Revealed: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World Cup awarded