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Sábado, Novembro 23, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Passo, quase indiferente, parcialmente consciente e quase ali presente, resvalo as margens com história, as margens que brilham um silêncio invulgar, ou da janela anónima dos olhos que esqueço

12

A madrugada surge como o resquício de mais uma viagem. Deambulando secretos abismos, ouve-se como o vento acompanha cada passo, aligeirando a vontade, sem que os prenúncios me sigam, alvitram-se desejos, rompantes instantes acoplam-se num silêncio desejado, ou que seja requisitar de ti mais um instante, que me possa valer na companhia de mais uma ausência.

Frio de Praga. A rua inebria a cadência sólida, o rio Vltava serpenteando longe, quase chamando a minha atenção, rasga belo o horizonte, ainda ali sentia os teus passos, momentos antes, ainda a neve fez registo como um silêncio nocturnamente cálido, não te via. Pela inebriante falésia, dissipa-se longínquo o caudal sóbrio, quase mergulham pelos teus olhos este resto de sonho, quase anoitece, a iluminação nasce entretanto, a viela arroja-se lentamente diante a cadência melancólica dos meus passos, rumo a mais um ligeiro sono, ou o regresso sequioso dos meus instintos a este lençol de tantas noites telúricas, à sombra das memórias, das palavras ainda vivas, ou daquele sorriso entre tantas viagens, dormirei talvez e de novo, encobrirei os olhos e seguirei, sem destino.

Escondido enfim num silêncio tanto faz ali mesmo, diria, num espasmo de viajante eu mesmo, sobre a cálida refrega as tuas mãos de vento num dormitar, dizem os sepulcros secos de que saudade e tanta a saudade de mais, assumo, voasse eu sobre quimeras essas onde por lá tu, no lugar das pândegas a regência no silêncio dos frutos, o lugar das pândegas escondido num silêncio quase nómada.

– Queria tantas coisas!

Dizia sem falar escutavam-me perdidos, a rua escura à nossa frente sem luz nem vício, apelei sem falar, desabafar contigo, queria, desbravar este recôndito azoto guardado no amago, as palavras dissipavam-se pelo escuro como reféns normais nesta página de invenções por escrever:

– Abrir os olhos?

Impaciente. Sinto-me impaciente e continuo, escuta-me por favor, sem obrigação alguma deixa-me enfim concluir este desejo, largar dos armários da minha cabeça este assunto a que sinto dever-te nas mãos, como conseguirás depois alargá-lo pelos pântanos a que merece esse amargo esgotado a remoer-me o estômago.

Naquela serra, subindo sem trenós onde quem sabe neve, um calor a arder sei lá, mesmo dia o escuro imenso quando me vendaram os olhos nem te via, penso que ouvia escorrer o tempo com medo da morte:

– O próximo és tu!

O ruído daquele motor diesel a minha mãe a meu lado. Adormecer como uma pandega neste capim seco onde cobras vadiavam felicidade, picada e zumbidos, a arma na testa apontada calo-me:

– Poderia gritar?

Nem resposta, a farda suada e suja enervava-me, o cheiro divagava lugares como nuvens perdidas onde camas que sonhava, não conseguia dizer palavra:

– Estou estoirado, pá, raiva?

Quase nobres. A distância inundada entre os olhos. O decote dos meus sonhos. Os rios decorados sobre a planície rosnando silenciosamente, entre os dedos, os dedos suaves quase dilaceram as entranhas, as riscas, o decote das margens. Quase desaparecendo na falésia. As curvas. Sem cor fundem-se ao por do sol, das tuas margens.

Reflectirem. Sobre sorrisos. Cada gota do chuvisco entranhar-se por dentro, nas margens da pele arrepiada sob a lã dos beijos. A distância inunda entre os olhos.

Ao inventar os meus passos, a noite sobranceira e delicada, sacia o vento das florestas que o rosto encobre, como cada passo, como cada laço dos teus abraços estalarem imensos sorrisos as costelas da minha ânsia. A saudade. A vontade. As palavras descobrem-se nestas ruas onde um dia a vida se perdeu. Onde um dia a noite foi expulsa e trocada por um novo dia. O brilho de tal sol deixava sobre a tua pele os riscos que haviam sido tantos e os meus beijos, sobre os sorrisos.

Salinas, decoram com os seus efeitos a distância, onde brilhar um céu inventado, encanto qualquer, a silhueta do silêncio escorrer pelos lábios, como orla de calçada, talvez se sentisse o brilho na pele também, na fantasia certamente, como se fosse morar contigo, onde ninguém entre a não ser quem não estará, nem eu, nem a vida, nem as crostas da lua acariciadas por dentro das tuas mãos, num olhar que se desfaz no decorrer das horas.

A verdade no escuro. Entre as têmporas da vida. Os resquícios amargurantes, flutuam devagar, parecem conseguir voar, silenciam pelas orlas do fim, há sorrisos, há declínios, há margens que a vida leva e lágrimas deambulam o coração entrosado nas raízes do infinito, nas sombras cáusticas dos ruídos deste temporal que nos assola o organismo, repelente caminhada nos labirintos do desejo, nos atritos da voz, emaranhado silêncio num corpo voraz.

Descobrindo na planície os odores do teu olhar. Descolorindo nas margens secas do infinito a marca definitiva dos teus passos. Perfurações bélicas dos pés que seguem. Que buscam o futuro. Que buscam uma vida nas orquídeas da morte. A norte.

Cintilante, de brandos e lentos passos, esbracejo as sombras e efeitos do tempo, o resquício do chuvisco, o resto do vento, as restantes imagens sem sentido que se distorcem no limiar da íris, que se encerra, saboreia e parte, abrindo as incógnitas e errantes maresias talvez concretas, nunca verdadeiras, existentes diante o teu sotaque, sem que fales, sem que digas ou gesticules, os bancos vazios fogem como numa fuga impossível. O calor dos teus sonhos ali demarcados, na cor fingida da vida assentada na superfície da distância, recolocada e sem marcas, saboreia a vida possível.

Passo, quase indiferente, parcialmente consciente e quase ali presente, resvalo as margens com história, as margens que brilham um silêncio invulgar, ou da janela anónima dos olhos que esqueço, dos olhos mártires e ousados e eloquentes, que reflectem sobre os espaços por onde me espalho, o verde cicatrizado dos teus gestos, ou que azul terá deixado neste céu antigo o efeito que me aniquila qualquer outro desejo, qualquer ensejo significará uma perdida mais, um somatório consequente e ritmadamente fraterno, com as mãos feitas na distância cravando em mim as unhas sem dor sequer, sem riscos na alma, sem confidências, sem consequências.

Dissidentes?

Distantes?

Aparentes?

Vadios os momentos, esses sim, os forasteiros da vida e moradores do inventado, do infortúnio, voluntário da loucura caminhando, nas orlas escuras da melodia súbita um Jacques Brel gritava revoltas de rima amada, por isso me escuto, enquanto reinvento o percurso jamais repetido, a melodia suaviza a passos cadentes e demência da vontade, perito da clemência, incoerentes mesmo sigamos, nós, e nós, e nós, sérios candidatos a novo cismo, do coração derrotado a hora de um provável sono. Que não chega. Que não se manifesta. Que não agita a dor carnal. Que não mexe os poros encardidos de silêncio, ou que se tapem os uivos da seara, os arrufos da memória, que se distem, por favor, que sigam se quiserem, não as minhas incursões díspares, não as minhas convicções serenas, ou pardas, ou nuas, às mãos de um areoso mar terreno nesta cama sem nome, que ocupa plenamente a minha ausência na vida. Os teus cabelos caíam. Desciam. Sucumbiam o silêncio. Os teus cabelos arranhavam o tempo. A ira.

Senti-los como este rio frente a ti, da rua onde vivem os fantasmas, do meu sorriso, que permanece inócuo ao sentir descerem as águas do douro ente um olhar teu, só teu, sempre teu, sempre, que sejas assim sempre, sempre, que vivas ainda as maresias antigas, futuras, que respires ainda as águas brandas e puras, limpando da tua pele as marcas dos beijos que se encardiam tocando-te, serena, sem as noites que jamais nos sentiam, as noites ali, onde passas rumo ao dia, limpando a lavando o rosto das marcas que secaram o sorriso que descobri em ti. Serás Lúcia, um dia destes. Serás úmero nos resquícios do meu tempo. Assombrando cinzenta a viajem. Espinho de cardápios sólidos. Mar. Mais mar. Que fossem de facto mar. Na esplanada alucinada de certo tempo em que a vida parecia futuro. Não bebes café, sei, nem bebes mais a minha vida. Sei. Não partas então. Não fujas da vida. Não durmas assim repentinamente. Adormece ao amanhecer, com os odores simples da fantasia.

Nas tardes em que até a falésia parece merecer o regozijo de uma lágrima.

Digo:

Talvez, pela encosta despida de frenesim nenhum me ouçam almas vazias nas conchas desprovidas, direi, ali, largadas no estrume inócuo do vento a derrapar sobre a areia crua da tarde, nas tardes em que até a falésia precisa de uma lágrima, como por exemplo:

Quando era pequeno, me aliavam as bolas negras da cadelinha que na casota me sussurrava o seu esguicho de meiguice.

Naquela tarde em que vinha da escola, sozinho, numa ânsia voraz de quintais onde chutar boladas de traquinice me era permitido, vi estendida numa via municipal o animal dos meus regozijados silêncios, desmembrada, de patas içadas num céu perdido, os olhos abandonados numa ausência de morte, pelos de sangue na berma do meu desgosto:

Morta para a vida.

Morte para sempre.

A não ser, sei lá, que haja mortes a fingir, a fazerem-se de lucas e num riso de feiticeiros rirem para dentro gozando com a nossa dor. Mas não.

Estava morta de verdade.

Digo:

Mais tarde confirmei tudo isso, ela não voltou como sempre o fazia ao fim das tardes, o ladrar cor-de-rosa da alegria que eu sentia que dela vinha quando assim era e naquele dia, não voltou a acontecer. Ao fim daquela tarde não mais ouvi o ladrar cor-de-rosa da cadelinha bolinhas.

E isso porque sei, e porque a vi, e não porque me tivessem dito, certo, certo, nada me diriam e porque soubessem, não, não saberiam nunca porque:

Garanto!

Nunca lhes contei que era com a cadelinha bolinhas que os meus mais estimados momentos eram reflectidos. Na casota de madeiras que o destino, destino antes de a ver na estrada de patas abandonadas da vida, desta, a vida por onde os sepulcros nos gozam, onde os médicos nos deixam morrer de verdade, onde os juízes não nos eclodem das furtivas displicências descoloridas de tardes, como tantas outras tardes em que se morre apenas porque a vida não é infinita.

Seguir. Diante a indiferença, quem sabe se na realidade, será diferente, como se esculpem as horas, as ondas, as marcas, os vagos raros da pele, diante tanto mar e nada, beijo, como me sinto filho alheio do sonho, sigo, sigo e sem saber, que saiba, que sigo e sigo sem nada render o meu percurso, como a pele seca, como seca a vaga distância, como marca a tão profunda dor, que nunca terei sentido, que sinto.

Indiferença, como pecúlio este percurso, este diafragma dos tempos, dos olhos que se espalham e vislumbram, visões de nada, de tudo, dos sempre e repetidos instantes ocupados, vagos como sempre os percursos e sempre lisonjeiros os dias da vida que se anuncia, sobre a marca ou sob a estrada, por que se caminha ou segue, por que visiona a metrópole dos meus dias ressarcidos e devolvidos, à anterior esperança de te ter no interior do peito que se ocupa com os restantes nadas deste suspeito caminhar. Suspiro e rego as margens da minha vida nesta noite mal dormida, empobrecida talvez. E porquê? Por nada.

Diferença. Ou intrínseco afecto desfeito, rebolando calada a tua passagem, a tua viagem, a tua distância, cálida a margem por quem seres, por quem foste, por quem serás, calma a distância de calada e refeita a solene memória, quando eram beijos, gritos, quando era amor, desejo, quando era seres-me dizendo-me, que representas agora um nada absoluto os teus perversos desdéns, de mim, quando fui poema, quando tema, quando saudade. E sei que sou por instantes esta saudade em mim, os gritos aqui representam nada, dignificam nada, significam nada mais perante este olhar o nada, olhar o vago, olhar o vazio, escrevendo as ruas, descrevendo as luas, esgrimindo os meus apelos neste confuso ser eu, como quando fui ninguém, quando fui alguém, quando fui quem quer que seja nestas ansiadas viagens de mares teus, fui sim quem descreveu o nosso silêncio em livros de feira, declamador dos meus sonhos que hoje ignoras quando sentas a alma em teu quarto e te deitas com o amor da tua vida, esquecendo o poema que alguém um dia te escreveu. Sou Lucas nestas páginas, nestes caluniosos reflexos, sou aquele que ninguém precisa e chama.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas

 

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