O Uzbequistão – de onde era originária uma grande parte do exército soviético que combateu no Afeganistão – passou assim de país ditatorial inimigo da liberdade religiosa a aliado seguro na guerra contra o terror, tendo abrigado importantes bases norte-americanas de 2001 a 2005.
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Nos escombros da União Soviética
O Embaixador britânico dissidente Craig Murray, numa das observações porventura mais pertinentes no seu testemunho transformado em livro intitulado ‘Assassínio em Samarcanda’, apresenta o Uzbequistão como um país onde o fim da União Soviética se traduziu num endurecimento da ditadura comunista, e não em qualquer primavera da liberdade.
Conheci o Uzbequistão em 2014, uma década depois de terminado o consulado de Murray no país, e tudo o que vi confirmou a impressão de o país ser gerido por uma severa ditadura, certamente mais acentuada do que era a da Alemanha Oriental dos anos 1970 ou a Rússia dos anos 1980.
Posto isto, e entre os inúmeros pontos em que discordo da visão do ex-diplomata britânico, fiquei sempre impressionado pela arte de receber e tolerar os estrangeiros. A ditadura de Karimov se porventura não fomentou essa capacidade, também não a eliminou.
Na verdade, a primeira razão pela qual me interessei pelo país foi o relato de membros da comunidade judaica europeia do caloroso acolhimento no Uzbequistão dos judeus que perante o avanço das tropas nazis na União Soviética encontraram aí refúgio. O Uzbequistão continua ainda hoje a abrigar deslocados tártaros exilados pelas purgas estalinistas ou coreanos fugidos das invasões japonesas, entre muitos outros refugiados das mais diversas paragens.
Para além de todos os refugiados que são hoje parte integrante do seu povo e dos muitos russos ou ucranianos que ficaram depois da implosão soviética, há comunidades uzbeques nos países vizinhos e comunidades dos países vizinhos no Uzbequistão. A título de exemplo, uma das mais emblemáticas cidades do país, Samarcanda, etnicamente, é esmagadoramente tajique.
E depois, a verdade é que a ditadura uzbeque não eliminou (ou pelo menos não eliminou totalmente) brilhantes académicos e diplomatas que tive a oportunidade de conhecer e com eles muito aprender, muito em especial em matéria de Islão.
Sete anos depois, a morte de Karimov deu lugar à subida ao cargo do seu Primeiro-Ministro de 2003 a 2016, Shavkat Mirziyoyev, e a alguma liberalização do regime, que se faz notar sobretudo na integração económica mundial, e que se reflectem na mudança de imagem geral do comércio e movimento da capital desde a minha presença prévia no país em 2014.
A União Europeia concedeu recentemente ao Uzbequistão o estatuto ‘GSP+’, o estatuto comercial mais favorável atribuído teoricamente a países terceiros em função de um conjunto de critérios de bom comportamento laboral, ambiental, social e sobretudo de direitos humanos. Não se trata de uma distinção significativa porque ela tem sido concedida em total contradição com esses preceitos, tornando-se antes de um símbolo da decadência política das instituições europeias. A generalidade dos observadores independentes não vê uma evolução significativa no carácter ditatorial do regime que possa justificar o gesto europeu.
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O Uzbequistão e a Jihad
Como todas as repúblicas da Ásia Central, de religião maioritariamente muçulmana, após o fim da URSS, o Uzbequistão assistiu a um grande influxo de doutrinação religiosa, frequentemente de pendor fanático islamista, que rapidamente deu lugar a terrorismo jihadista em conexão com o santuário talibã no Afeganistão, país com o qual faz fronteira.
O Uzbequistão é tido por ser o país da região que tratou de forma mais dura e radical o movimento islamista, combate que passou por repressão e muita violência, sendo que a questão não está ultrapassada. Os EUA em particular e o Ocidente em geral, depois de um apoio irrestrito ao jihadismo como forma de minar a União Soviética, passaram ao plano contrário após o 11 de Setembro de 2001, focando apenas a vertente da violência e da repressão.
O Uzbequistão – de onde era originária uma grande parte do exército soviético que combateu no Afeganistão – passou assim de país ditatorial inimigo da liberdade religiosa a aliado seguro na guerra contra o terror, tendo abrigado importantes bases norte-americanas de 2001 a 2005.
Em 2005, a propósito de um dos mais sangrentos confrontos com islamistas, em Andijan, no Vale de Ferghana (ver por exemplo este relatório) os EUA condenaram vivamente a violência do exército uzbeque, o que levou ao encerramento das bases americanas e a uma reviravolta diplomática, com uma ancoragem cada vez mais sólida do país na esfera de interesses russos e chineses.
Para a Rússia e muito em especial para a China – que como assinalei na semana anterior, é o novo líder estratégico regional – o jihadismo talibã passou a ser visto como um instrumento útil na luta contra o Ocidente, no fundo invertendo-se os papéis desempenhados há décadas atrás.
Com Mirziyoyev voltou a fazer-se sentir a tendência para encarar o jihadismo de uma forma utilitarista. Karimov tinha tido já a peregrina ideia de apoiar uma facção dissidente do grupo islamista ‘Hizb ut-Tahrir’, o Akromiya, com a intenção de enfraquecer o ‘Hizb ut-Tahrir’ que considerava o seu inimigo principal, para ver o Akromiya montar a mais espetacular sublevação registada (Andijan, 2005) e, por tabela, ser acusado de fabricar grupos jihadistas para massacrar o seu povo.
Desde que a administração Trump desastradamente seguiu os conselhos do Qatar e abandonou a posição de que qualquer negociação para a paz teria de ser dirigida pelas autoridades afegãs – uma repetição da desastrosa lógica do Vietname – que a legitimidade das autoridades afegãs foi posta em causa, com um enorme reforço da confiança dos Taliban e, tão ou mais importante do que isso, com os principais actores internacionais a considerar os talibã um interlocutor priveligiado.
Na senda do exemplo americano, tanto a Rússia como a China, como de resto também o Uzbequistão, acharam que o caminho a seguir era negociar com os talibã para que estes deixem de os atacar, vendo o grupo jihadista como dando mais garantias do que as autoridades afegãs de estabilidade e pacificação no país.
Os talibã passariam assim a ser os bons jihadistas, capazes de assegurar mais estabilidade que as autoridades laicas e, mais importante ainda, capazes de manter um acordo com terceiros – o que deram largamente provas de não fazer durante o seu consulado de terror sobre o país.
Como observei a semana passada, a China, que me parece ser a verdadeira estratega neste jogo, terá uma confiança muito limitada nessa cenário, mas confesso que fiquei desiludido quando me dei conta que em alguns lugares chave do poder uzbeque vejo agora rostos de uma nova geração que se pensa mais moderna e liberal mas que me parece francamente menos competente, informada e lúcida que a anterior, encarando como possíveis cenários irrealistas.
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A batalha de Cabul
A pressão de quase toda a comunidade internacional sobre as autoridades afegãs para que elas se rendam aos talibã é impressionante, e só nesta semana vimos o inefável Qatar a promover negociações entre as autoridades afegãs conduzidas pelo número 2 afegão e os talibã, enquanto eu mesmo pude presenciar as negociações em Tashkent entre uma delegação paquistanesa integrando militares e dirigida pelo Primeiro-ministro Imran Khan e a delegação afegã dirigida pelo Presidente Ashraf Ghani.
E, por mero acaso, à saída da reunião quase choquei com o Presidente Ghani, que parou, me cumprimentou com imensa cordialidade como se nos conhecêssemos (nunca nos encontrámos) adivinhando o interesse nos meus olhos, de uma forma que não deixou de me espantar.
Como é possível que o Presidente de um país à beira do colapso total, sujeito a uma inacreditável pressão (só o que eu vi em Tashkent arrasaria a moral do mais intrépido dos combatentes) tenha encontrado o estado de alma para perder alguns segundos a cumprimentar um desastrado passeante que se pôs no seu caminho?
Talvez quem esteja a pensar que Cabul são favas contadas esteja a menorizar a fibra dos afegãos.