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Sábado, Novembro 23, 2024

Ao Fundo Pitangas

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Vivo nestes cobertores quentes, desta vida estimulada pelas mãos da noite. Cubro-me quente e repito o sono. Repenso os planos da vida e descanso.

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As horas esgrimem. Desfalecem. Seguem no trem do tempo ao ritmo do vento, vão e elevam e seguem, no trem sem destino, vão, ao ritmo da substância, de reflexos e actos mudos, sem voz e de gritos, falam e não são ouvidas ou ninguém entenderá, como eu, mudo não sou nem falo, ou berro e ninguém consegue ouvir-me, quando me pretendo e ofusco, corro em contradição comigo mesmo como se porventura me quisesse e rejeitasse ao mesmo tempo, como se me ouvisse e não conseguisse entender-me, Lucas dizia-me como me serias, entre mim e ele e eu, que sou o mesmo e me confundo, coloco-me perguntas sem me conseguir responder, por isso calo, ou parto sempre assim, sorrateiramente e vou, neste manto de significativos nadas e vidas tão breves como eu, quando vivo.

Vivo nestes cobertores quentes, desta vida estimulada pelas mãos da noite. Cubro-me quente e repito o sono. Repenso os planos da vida e descanso. Renascerei várias vezes, caminho e pergunto, se é verdade que me dás as mãos, quero a tua sopa, ou a vida que me foge, sou deste tempo e alimento quem és, ou nunca seremos nada, ou voltamos a ser quem éramos, sim, se fosses quem penso, ou és Lúcia antiga? Vem, vem então até mim novamente ou evita-me sempre, se me confundo comigo sempre?

Vi os caracóis sobre a cabeça. Era de certeza ele, aquele quem sempre vira renascer de cinzas, renascer dos pasmos da vida, se for vivo ainda. Ou não morreu nunca, acredito na forma que vejo, de mim aqui ou outro ali, um lado estranho que me equipa de vestes nómadas, lutando contra os meus fantasmas que me despem a alma e renasço, nada e tudo neste confronto que me descalça, simplesmente. Ouço ainda o mar. O mar antigo. Ouço as escadas invadirem os quartos, onde amei a distância, os quartos onde parti da vida, onde me suicidei, sobrevivi, a cama das orlas dúbias, do vento, a rua do barlavento e tu vestida ainda rejeitas em pele crua a voz que dissera ser de mim, ainda morto. Vem, assume então, vem, com garantias, assume e vem, por favor, se te escondes, que encobres? Sou ainda quem fui, acredita, sou ainda o mesmo que nunca existiu, aceita, mas não deixo escapar o resto de vida ainda pendurado, perdido nas cordas de roupa velha empestadas de nada, do meu futuro também.

Se ainda se caminha, como se caminha na busca dum sempre novo, num revigorado presente e futuro nunca despojado, inventar como novamente. Que dizes do sonho então? Rejeita certamente, às palavras de ontem, sabes quem direi ser-me, como foram sinceras as vidas ali comungadas, entre nós, quem lá esteve e fui. Sou pressentimento, ou teu despojo e alegria, sou de repente aquele vão de escada que sacode as intemporalidades dos teus hábitos, que te soterra nos dias e a dor colada por dentro, ser teu dorido sonho, teu calmo regresso, ser a distância dos teus passos nesta vida abandonada e o regresso ao nosso anterior sedimento e divino pressagio, as nossas horas deitando-nos longe da verdade, vivendo como corvos as entranhas do medo, num rochedo aberto e distendido no horizonte, o eco das vozes sucumbe pela noite quando a janela gritamos na esperança de que consigamos alertar, despertar quem nos venha socorrer, a mão do abismo querendo empurrar-nos, e grito, sacudo da pele o frio mórbido e regresso se conseguir, ate junto de algo que tenha um sol que me derreta, que me conforte com algas quentes arruinando deste medo atroz o frio que me mata e rapa os cabelos, despe-me completamente a pele, fico nu dai para dentro, só, isolado e escondido de vergonha sem que mais ninguém me veja, sem que ninguém se aperceba da minha fragilidade, despido da pele e da vida, sem fugir irão ver-me com certeza e é isso que quero que não aconteça, Não quero que vejam que por dentro o meu sangue está morto!

De têmporas gastas e escritas, num relatório dos acontecimentos inventados, descreves sobre a areia seca as margens da vida, as impossibilidades ali, limitando mais que todas as intenções seguintes, caminha, rouba do mar o espaço que é seu e entrá-lo, adiante, adiante, encontrarás mais dentro uma plantação de sonhos, recheados de vidas e adquire a que queiras, a que te complete, a que consigas ou não entender, veste-te dela ou nela e com ela, não regressas aqui, onde deixei a pele fugir de mim e me perdi na distância, ficou entre mim e o fim do mar, longe da vista dos comuns, buscando o sol ou não sei que mais, não sei de mim, não, onde estou? Quem poderá dizer-me quem sou? Quem quer que me descubra? Todos evitam o ressurgimento dos meus apelos, todos fogem e tapam os ouvidos e quase pensam, se ao menos ele se calasse… nem a sombra das árvores desta vida se acomodavam solitárias numa noite ao menos, uma paz breve de vez em quando.

Do lado de lá da estrada, iluminada e subtil a casa fantasma deste instante. A casa onde já estive. Pressinto não conhecê-la, não a identifico neste exacto momento, sinto que nela alguma vez terei estado, vivido segundos de prato vazio não na mão comendo restos de feijão, ou era onde Lúcia morava? Bati com raiva e força os portões sem guarda. Respondeu-me uma voz masculina e feroz, reagi sem medo tremendo sozinho, com coragem, reagi sem medo que nunca tenho! No estado em que estou, ah, claro, quem poderá descobrir quem sou? Olharem-me ficarão apenas com a sensação de ser um fantasma, estarei protegido pelo azar que me roubou a essência visível da existência… não tenho pele. E um rosto assim não deixa margem, não uso couraça, uso o meu azar. Um portão de sinos, sem campainha, num tempo em que não existiam ainda.

Já na sala. No sótão há vento e tempo. No claustro do vago há mar. Há viagem. Viajei tantas vezes. Sempre que viajo.

Por dentro deste escuro onde moram vozes que me contas. Vens tão raramente, que era feito de ti? E senti ou ouvi, não sei se de verdade ou pressenti, imaginei certamente e não estava ali eu, de badanas nuas, riscos num casaco estranho e mãos soltas quase içadas, uma visível e a outra ficou algures, pelo caminho ou perdida por dentro do corpo que estalava pedaços da carne sem dores e sem futuro, Quero estar na tua cama e dormir, ate de novo conseguir fugir Lúcia, sabes quem sou ainda? Que perguntas fazes, que me perguntas se não sei que dizes? Estas na mesma ainda, adivinho, jamais esquecerei as margens flutuantes dos teus lábios que um dia comprei sem dinheiro, adquiri caminhando, com o esforço da minha vontade, do meu querer, ate merecer tê-lo, e tento mais neste instante, que seja poder deitar-me num solene e raro repouso que desconheço, que significa então descansar?

Acordo. Frequentes e frequentes perturbações que me despertam a esta terrível passagem de vidas da vida dos homens desta vida, onde fui outro e sou nada agora, falei de como imaginei que ele fosse, parco em confusos espectros, passagens por aqui, vigias na tua casa, na tua terra, onde existia além um rio, Não o vejo agora, lembras-te Lúcia? Que é feito dele? Passava ali, depois da estrada, levava quem se passeava num turístico desdém, procurando saciar o desconhecido, olhando as margens da floresta naqueles barcos ferrugentos, antigos, confortáveis, mas não sei, digo apenas porque me pareciam sê-lo… depois disso morri.

Não sou outro nem o mesmo, posso enveredar pela diferença que necessite.

Num oportunismo do instante. Num calor que busque. Quero a mão Lúcia. Ainda a tua mão. Quero os beijos ainda Lúcia, os beijos ainda vivos. Secos no tempo e no temporal meteorológico do vazio. Com espasmos de nada. Feito em nada. Transformado em quem me desejo. Acertas nas coisas do tempo, tenta acertar em mim.

Pensei vestir-me de Maria. Assim sorriria sem me esconder. Saía à rua e passaria por todos os contornos da avenida desta cidade, bebia em todos os bares da minha, ninguém saberia quem era, se outro ou eu, se ainda ali estavas, nem te apercebias também, com as capas coladas à minha pele, pensarias num eu longe ou procuravas, ou ficavas como agora na sala do teu castelo, de portões cerrados de vento e sem campainha, onde toquei e não vieste tu abrir, se não conseguiste ouvir ou não te apeteceu atender-me. Mas não agi. Nem me vesti. Continuei nos escombros dos meus restos despidos de pele perdida, e ali permaneci até que enfim, continuei, mas nunca deixei de me pensar, talvez como uma solução do momento, satisfazer a circunstância, ser relativo e breve e sacudir o momento, ou morresse rapidamente uma morte aparente, rara e vaga, e confidenciasse a circunstância de lágrimas cravadas na pele perdida de quem antes fui e me despiste de ti, Agiste simplesmente e claro aceitarei Lúcia, ali, outro e qualquer canto, outro e todos os lugares vencidos pela realidade que justificadamente nunca acontecerão. Logo, e sorrio. Se puder ou deixarem a minha marcha ser fecunda. Infecunda, absorvente ou absorta, periclitante será e isso sei, a tua recepção daquele apelo urgente que viera como vento, até incomodar não sei o quê. Ao menos se viva. Sobreviva. Ao menos se explane a minoria do que acontecer para que cresça de vendaval ate uma realidade, escritos de tanto nada na tela do meu peito. Antes de mim, perdi-me. Mas continuo entre as duas viagens e duma sei, neste rio da tua cidade, defronte à janela as tuas lágrimas secas, ou falas, a verdade que jamais esquecerás, e agora eu, nota, eu, se for eu amigo, dele não esqueces nunca porque ninguém pode esquecer tanto mal, e mal de verdade, entranhando-se na essência dos sonhos e dos constrangimentos de cada um, ele amou e eu jamais amarei. Ele tem pele eu perdi já tudo, Mas linda ainda estás, nunca mais te vi. Se pretender e colar aqui, algo díspar ou falso, que invento enquanto, solenemente me dirija, como conseguir ser, como pretender e tiver mesmo de ser, sobre estas maculas da vida árdua, de duros e rijos presságios, se poder recolocar nas areias desta estrada de tua casa, perto desse imenso longe de tudo, obscuro e escondido silêncio, a tua voz perdida do essencial por que querias, escondes não faz mal, invento como evitar-te, porque me impossibilitas de encontrar-te, Abre a janela então, de sorriso mercante de navio do longe, do bravio sussurro, a tua mão estendida no escuro das portas de Marte, Lúcia… ou que sejas, sobre a pele que a vida marcou perante as ausência essenciais terei ainda assim, esconder do absoluto a exposição da frágil figura dos meus olhos, depenados de inconstâncias e dores psicológicas, mas de momento, tranquilizo-te, durmo ainda.


Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas

 

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