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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

“Retrocesso de 30 anos”: como Bolsonaro vê os alunos com deficiência

Para a pedagoga Maria Teresa Mantoan, decreto do governo “é claramente ilegal”.

O STF (Supremo Tribunal Federal) realizou, na última semana, uma audiência pública para discutir o nefasto decreto do governo Jair Bolsonaro que institui a política nacional de educação para alunos com deficiência. Mas, para a pedagoga Maria Teresa Mantoan, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), esse tema sequer deveria estar sendo debatido pela Corte. “O decreto é claramente ilegal. Para que que todo esse circo?”, declarou a educadora à BBC News Brasil.

Depois que a medida bolsonarista entrou em vigor, em outubro do ano passado, o PSB entrou com ação no STF alegando que inconstitucionalidade. A política foi suspensa pelo Supremo em dezembro, em decisão individual do ministro Dias Toffoli, depois ratificada pelo plenário. Agora, o STF está ouvindo especialistas e organizações a favor e contra o decreto antes que os ministros se manifestem oficialmente sobre o assunto.

Segundo Maria Teresa, o Decreto 10.502/2020 – que incentiva a criação de escolas especializadas para atender pessoas com deficiência que “não se beneficiam” da educação regular – contraria a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996. Hoje, mais de 90% dos alunos com deficiência estão matriculados em escolas regulares.

“A LDB se baseou no preceito constitucional de que a educação é para todos segundo a capacidade de cada um e não admite escolas e turmas especiais”, diz a educadora. A seu ver, as escolas propostas por Bolsonaro “não oferecem o básico, como etapas e níveis de ensino, e não podem oferecer certificados”

“No Brasil, só existe um sistema de ensino, que é o ensino comum regular. Quem está em uma escola especial não está cumprindo o período de escolaridade obrigatória. Qualquer escola assim já deveria ter sido fechada desde 1996”, diz Maria Teresa, que coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença da Unicamp.

Numa demonstração da natureza preconceituosa e discriminatória da gestão Bolsonaro, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse que a convivência entre uma parcela dos alunos com deficiência mais grave e os alunos sem deficiência é impossível. Ele chegou a afirmar que a presença dos alunos com deficiência “atrapalha” os outros na sala.

Sua tese é refutada por Maria Teresa, que tem uma experiência de seis décadas como professora: “Ele (o ministro) não tem que dizer que o aluno com deficiência atrapalha. Ele tem que munir a escola de conhecimentos e inovações para que ela consiga dar conta de todos os estudantes”.

Ribeiro depois se desculpou, mas voltou a lançar críticas ao que chama de “inclusivismo” – termo que, segundo ativistas, foi criado pelo próprio ministro para dar uma conotação negativa à defesa da inclusão escolar de todos os estudantes. Porém, conforme Maria Tesesa, a nova política não representa um avanço – mas, sim, um retrocesso de quase 30 anos na educação brasileira.

Segundo a pedagoga, incentivar escolas especiais seria voltar às normas que vigoraram de 1994 a 2008, quando uma nova política passou a estabelecer como norma a integração de pessoas com deficiência no ambiente escolar normal. Maria Teresa foi uma das responsáveis por redigir a política de 2008, baseada na Constituição e na LDB, para tornar a educação especial uma modalidade complementar de ensino – e não um sistema à parte que substituísse o sistema regular.

A pesquisadora explica que a política de 1994 tratava a deficiência pelo viés médico, como um problema do indivíduo. Por sua vez, a política de 2008 entendia a questão pela ótica social, ou seja, que a deficiência resulta da interação da pessoa com o meio. O problema está nos obstáculos que o meio impõe a essa pessoa, e seria preciso acabar com essas barreiras.

“Isso mudou tudo”, diz a pesquisadora. “Quando o ministro da Educação fala em deficiência grave, ele mostra que não é uma pessoa bem informada sobre o assunto”, critica Maria Teresa. “Essa forma de enxergar a questão ficou no passado. O que tem que mudar é a escola, não é a pessoa.”

Um resultado da política de 2008 é refletido pelo censo escolar: em 2020, 93,3% dos 1,3 milhão de crianças e adolescentes com deficiência na educação básica estavam matriculados em escolas regulares. Em 2005, eram apenas 23%. Para Maria Teresa, este é um dos motivos da criação de uma nova política pelo governo Bolsonaro.

“Toda essa discussão em torno do decreto só serve para encobrir que o verdadeiro motivo da nova política: tentar recuperar os alunos que as escolas especiais perderam, fazer renascer essas escolas e confundir o pais dizendo que eles têm uma escolha entre a escola especial e a comum, quando na verdade a escola especial não deveria existir há tempos”, afirma Mantoan.

Segundo a educadora, com o decreto de Bolsonaro, recursos que antes eram destinados à inclusão escolar passarão a ser destinados para as escolas especializadas. “É tudo uma cortina de fumaça para dar dinheiro público para escolas privadas”, diz. “O que me deixa chateada é ver essa cortina sendo incentivada pelo Supremo. Em vez de simplesmente cumprir a lei, ficam fazendo esse mise-en-scène, convidam todo mundo, querem ouvir um lado e o outro.”


Texto em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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