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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Talibã: Significado da vitória, programa e perspectivas de governo

Lejeune Mirhan
Lejeune Mirhan
Sociólogo, professor, escritor e arabista. É também comentarista Internacional, ensaísta e autor de 17 livros, como: Iraque: Relatos de uma ocupação (2003-2007), lançado em 2021; Marx, para principiantes, lançado em 2020 e Palestina: história, sionismo e suas perspectivas, lançado em 2019 (os três publicados pela Apparte Editora)

Ainda levará um tempo para aquilatarmos a dimensão da derrota dos Estados Unidos no Afeganistão. No entanto, a leitura de muitos novos artigos, a oitiva de muitos programas jornalísticos em várias línguas, é bastante claro que existe uma completa discordância sobre esse significado. Basicamente, podemos dizer que temos os que batem duro no imperialismo, comemoram a sua derrota fragorosa, ao mesmo tempo que comemoram a vitória da guerrilha afegã. Uma variação deste bloco são os que ainda aguardam o Talibã apresentar seu programa pleno e a composição de seu governo, bem como as primeiras medidas.

Há um segundo campo que não bate tanto no imperialismo estadunidense e muito menos comemora a sua fragorosa derrota. Há nuances nesse campo. Alguns batem mais, outros menos, no imperialismo. O outro campo, não bate quase nada no imperialismo, preferindo gastar todas as suas energias na guerrilha afegã chamada de Talibã. Esses são os “defensores das mulheres”, apresentadas como coitadinhas e precisando de salvação e resgate mundial.

Alguns agrupamentos que se proclamam de “esquerda”, dizem que são apenas solidários com o povo afegão, mas gritam bem alto: “Abaixo os Talibãs” (sic). Para gente que raciocina assim, e para esses agrupamentos, no limite, pode-se afirmar que o imperialismo é a civilização que luta contra a barbárie dos Talibãs.

Será que a “intransigente defesa” das mulheres e dos LGBTs não seria apenas um pretexto para apoiarem o imperialismo? Essa concepção não atinge uma parcela significativa da população, especialmente as classes médias, que se radicalizam contra os Talibãs? Não tenho dúvidas que sim. Tenho polemizado – com alguns até de forma tensa – sobre a concepção identitária desses movimentos.

Não tenho dúvidas dos equívocos profundos dessa visão identitária, que coloca acima da luta de classes, da luta anti-imperialista, as questões de gênero, orientação sexual e etnia. E se qualquer governo no mundo, mesmo por mais anti-imperialista que forem, se não assumir a plataforma desses agrupamentos de pessoas identitárias, jamais poderão contar com seu apoio.

As mulheres são oprimidas na maior parte dos países. Esses agrupamentos identitários tem uma indignação completamente seletiva. Para eles pouco importa o quão oprimidas as mulheres são na Arábia Saudita, por exemplo. E temos países na península arábica e no continente africano que são ainda muitos mais oprimidas do que foram – não se sabe se continuarão sendo, mas eles não têm a menor dúvida que sim – no Afeganistão no período que o Talibã governou no passado.

Ainda algumas impressões sobre os episódios do Afeganistão 

Eu nunca tive dúvidas de que o centro de nossos ataques, na verdade, exclusivamente, devem estar voltados ao imperialismo e mesmo o sistema capitalista, que é, em última instância, o criador de todos os males que geram o racismo, o patriarcalismo e a homofobia. Mas, o ataque que temos visto ao Talibã e o acobertamento das barbaridades do imperialismo, fica parecendo que os 20 anos da ocupação foram às mil maravilhas para o povo afegão – que deve ter sido morto em um número de mais de meio milhão – e particularmente as mulheres.

A revista que representa o pensamento da burguesia financeira internacional (e dos capitalistas em geral, claro), The Economist, nas suas edições de 21 e 28 de agosto, expressa grande preocupação que já vinha expressando desde a vitória do Talibã na ocupação de Cabul em 15 de agosto. O tema Afeganistão foi capa de ambas, cujos títulos das matérias principais, em uma tradução livre seria: “O desastre Biden: o que significa para o Afeganistão e a América” (ed. 21/8) e “De onde virá a próxima jihad global” (ed. 28/8).

Estas manchetes – e todo o corpo das reportagens de capa – expressa a imensa preocupação com a fragorosa derrota imperialista – que eles reconhecem. Mas mais do que isso, chamam a saída dos EUA do Afeganistão de “fuga”, o que está correto.

Eles estão apavorados de como e em que medida a revolução afegã poderá incentivar lutadores do mundo inteiro para que façam o mesmo em seus países. Eles usam o termo “jihadistas”, que podemos interpretar como comunistas ou lutadores pela independência, verdadeiro. E a preocupação maior vem como exemplo de que as revoluções possam ser armadas, como ocorreu no Afeganistão, que adotou a tática da “Guerra Popular Prolongada” (2).

Aqui trata-se de mais uma opinião ideológica que política. Admitem que estão em verdadeiro pânico com essa possibilidade de novas revoluções. Que o Talibã possa vir a servir como exemplo para as lutas de massas de todos os povos oprimidos. Eles alertam (ed. De 28/8) para o crescimento dos jihadistas afirmando o “perigo nos estados pobres e instáveis onde os insurgentes já controlam parte do território”.

Não por acaso que todas as potências imperialistas, além de reconhecerem a fragorosa derrota, procuraram rapidamente se compor e conversar com o grupo insurgente que passou a ser poder (eles anunciarão provavelmente no dia 1º de setembro) a composição do novo governo. Para isso, tem conversado com Abdul Ghani Baradar, que já está no Afeganistão e tem recebido emissários de diversas potências.

Temos que encarar, de fato, a revolução afegã, mesmo sem ainda sabermos os detalhes do programa do novo governo – que mais abaixo apresentarei resumidamente – é uma inspiração para revolucionários do mundo todo. Um grande sinal que os Talibãs enviam ao mundo.

Não por acaso, o líder do Hamas, organização islâmica da resistência palestina na faixa de Gaza – Ismail Haniyeh foi o primeiro grupo insurgente a parabenizar os guerrilheiros afegãos. Por certa essa vitória fortalece esse grupo que ainda defende a derrota de Israel pelo caminho armado. Por certo também que eles saem fortalecidos na sua luta contra Israel. Baradar respondeu-lhe prontamente com a saudação: “vitória e poder como resultado da vossa resistência”.

Não temos elementos ainda para avaliar se a Irmandade Muçulmana também sai fortalecida desse processo todo, ela que sofreu praticamente um golpe com a ascensão do marechal Abdul Fatah Khalil Sissi, que praticamente os colocou na ilegalidade (3).

Se por um lado, a vitória da revolução afegã inspira esperança e fé nas verdadeiras organizações revolucionárias – mesmo as que ainda não se encontram com armas em punho – por outro lado fico pensando o que deve estar ocorrendo nas cúpulas corrompidas de governos e partidos islâmicos, principalmente na península arábica e golfo Pérsico.

Por isso que temos que ser cada vez mais dialéticos. Uma vitória dessa magnitude, perpetrada por um agrupamento guerrilheiro pobre, sofrido, mas bem treinado, contra o maior e mais poderoso exército do mundo, que são os Estados Unidos, só pode contribuir para a emancipação das mulheres e não para oprimi-las.

Não vejo clima nenhum no mundo – muito ao contrário – para que os Talibãs façam novamente o que já fizeram no passado. Pensar assim é ser idealista e metafísico, pois não leva em conta os processos de mudanças e evolução a que tudo e todos estão sujeitos nas sociedades.

Uma vitória da magnitude que os Talibãs tiveram no Afeganistão, após 20 longos anos de luta guerrilheira, não foi apenas uma vitória dos Talibãs. Não teria sido possível alcançar essa vitória sem que tivessem apoio da esmagadora maioria da população. E eles os têm, não tenho a menor dúvida sobre isso. Eles possuem forte enraizamento nas massas.

Na quinta-feira, dia 26 de agosto, a cidade de Cabul, capital do Afeganistão, tomada pelos guerrilheiros no dia 15 de agosto, sofreu um grande abalo. Uma forte explosão ocorreu próxima do aeroporto da cidade, ainda guarnecida pelos soldados dos EUA, que tem única e exclusiva missão de garantir a evasão de seus aliados, que vitimou em torno de 200 pessoas, das quais pelo menos 13 são estadunidenses.

Em seguida o grupo terrorista Estado Islâmico Khorasan – que é uma região do Afeganistão –, que é um braço do Estado Islâmico do Iraque e Síria, mais conhecido como ISIS e DAESH, assumiu o atentado logo depois. O que podemos depreender desse atentado? Mas não se diz que os Talibãs é que são terroristas? A quem interessa um atentado como esses, em plena retirada pacífica e ordeira dos afegãos que não querem ficar em seu país? (4).

Na verdade, esse atentado não é contra os EUA, mas sim contra a guerrilha afegã, organizada pelos Talibãs. Querem indispor o grupo ao mundo para afirmarem que não há segurança no Afeganistão e que aquela terra vai voltar a ser um centro do “terrorismo internacional”.

Estado Islâmico e Al Qaeda é a mesma coisa, ou seja, gente que defende a volta do Califado Islâmico no mundo. Como se fosse uma espécie de salto atrás no tempo, voltando ao século VII. O que os Talibãs defendem é a volta do emirado Islâmico, que já governou o país no século XIX e, aliás, deu três grandes surras no Império Britânico. Surra essa que foi, inclusive, citada no livro de Stálin (5).

O programa do Talibã ou a sua Carta de Princípios

Hoje eu preparei um resumo do programa de governo – ou carta de princípios e de intenções – apresentado por esse grupo que tomou o poder político no Afeganistão, chamado Talibã. Há muitas confusões sobre o grupo, algumas por ingenuidade, outras propositais.

Eu tenho enfatizado que, o grupo que tomou o poder é de guerrilheiros, camponeses, com baixa compreensão política geral, mas de elevada noção da luta independentista, da soberania nacional e anti-imperialista.

O PCO, no Brasil, grupo trotskista, com o qual eu tenho divergências intestinas, por ser marxista-leninista, a linha nacional deles, com a qual sou totalmente contrário. No entanto, a linha internacional deste pequeno agrupamento, é muito parecida com a dos comunistas. Apoiam Maduro na Venezuela, Dr. Bashar Al-asar, na Síria. Mas, agora, estão batendo duro na parcela da esquerda, defendendo que a questão mais importante são as mulheres (6).

Eu acho que as mulheres são fundamentais. Não haverá transformação no mundo sem a emancipação das mulheres, isto é básico do marxismo-leninismo, mas não pode ser a luta central. Esta, é política. E, o Talibã fez muita política nesses 20 anos.

Os jovens que tinham 25 anos quando o Talibã foi fundado no Paquistão em 1994, hoje são cinquentenários, homens maduros, com acima de 52 anos, pelo menos. E outros que nasceram naquela época e hoje estão com 25 anos, e estão com armas nas mãos, eles já nasceram sob um ordenamento geopolítico mundial completamente distinto de 1994, quando o mundo vivia a unipolaridade.

O Talibã mandou o seu número 2, que é o Abdul Ghani Baradar, que pode vir a ser o novo presidente, se reunir com o ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi. Ele não é um ministro comum. Ele é membro do Politiburo que, no Partido Comunista da China é um núcleo composto por 25 pessoas, que comanda o país.

Provavelmente eles discutiram que, ao assumir o poder – que já estava sendo previsto –, o Talibã deveria cuidar da fronteira chinesa com o Afeganistão. Baradar estava já há um mês em Doha negociando a transição. Os Estados Unidos sabiam e erraram fragorosamente. O setor de inteligência acreditava que depois que os soldados estadunidenses deixassem o território, o governo local resistiria depois de mais uns 90 dias.

É provável que a China prometeu reconhecer o governo, ajudar na reconstrução. O Afeganistão vai voltar a ser passagem da Nova Rota da Seda, como foi na antiguidade. Só que essas novas rotas, segundo Xi Jinping em seu livro sobre governança na China, em um de seus discursos, em 2016, ele dá as características do significado das novas rotas.

Elas vêm sendo desenvolvidas há mais de 10 anos, mas não podem passar pelo Afeganistão, que estava ocupado pelo imperialismo (7). Por certo a China tem também preocupação com a agitação e a instabilidade com o vizinho Paquistão, pois por lá as rotas da seda já vêm passado há tempos.

É por isso que tenho dado o título dos meus programas sobre a revolução afegã de “a derrota do imperialismo na Ásia Central”. Os EUA não têm mais nenhuma perspectiva de voltar a pôr um pezinho em algum território da região, que são: Afeganistão, mais cinco países muçulmanos, de um lado Paquistão, Turcomenistão, Uzbequistão e Tajiquistão e, mais uma ponta que é a China.

O G7 reuniu-se terça-feira, dia 24/8, por convocação da Inglaterra e do seu primeiro Ministro Bóris Johnson. Uma reunião que não valeu absolutamente nada, porque a pauta era o Afeganistão. Convocar os sete grandes do mundo sem chamar a Rússia e a China, não tem nenhuma eficácia. A grande questão discutida na reunião foi o pedido para que Biden prorrogue a saída das tropas que está prevista para 31 de agosto. Eles sabem que o presidente está em contato com o comando revolucionário, através de seus emissários, um deles o chefe da CIA (8).

É preciso destacar que no Afeganistão ocorreu uma revolução. Há um comando revolucionário e, o governo que eles vão instalar, tem uma característica objetivamente revolucionária, porque é um movimento pela independência e soberania nacional.

O Talibã tem apoio de 70 a 80% da população, pois ninguém resiste 25 anos ao imperialismo sem apoio do povo, porque a tática da guerra popular prolongada é apoiar-se nas próprias forças, cercar as cidades e fazer guerra de aniquilamento. Mas é uma guerra de resistência.

Na China essa guerra durou 27 anos, no Vietnã, 12 anos e, no Afeganistão, foram 20. Os guerrilheiros perderam 60 mil combatentes. Guerrilheiros camponeses, é assim que devem ser tratados. Não é exclusividade dos esquerdistas, marxistas serem revolucionários. Não devemos ter preconceitos e achar que camponeses muçulmanos também não possam ser guerrilheiros. Claro que podem e são.

Quem não se lembra de Augusto Cesar Sandino, na Nicarágua, que deu origem ao nome da Frente Sandinista de Libertação Nacional-FSLN? Ele lutou contra a ditadura somozista, sem nunca ter sido comunista. Temos também o Farabundo Martí, em El Salvador.

Mesmo Fidel Castro, em 1959, quando liderou a revolução cubana, também não era ainda membro do Partido Comunista de Cuba. Ele veio a se tornar comunista depois. Até na Irlanda, que parte dela se desmembrou da Inglaterra através de uma luta renhida, parte dela armada, e foi vencido por um grupo cristão que jamais foi de esquerda. Quem não se lembra do IRA (Irish Republic Army ou Exército Republicano Irlandês) (9).
Estamos vendo um grupo guerrilheiro, integrado por camponeses pobres, que não estão bem armados, apenas com as Kalashnikov e o A47, fuzis de repetição mais básico dos que existem. É o melhor do mundo, inventado pelo cidadão que dá nome à arma. Era do PC Russo (10).

Essa situação que temos visto no Afeganistão víamos fazia muito tempo. A imagem das pessoas em cima da embaixada dos EUA em Saigon, Vietnã, lutando para entrar num helicóptero pequeno, não tem comparação com o que está acontecendo no Afeganistão. Filas imensas para entrar nos aviões cargueiros, cujos traslados encerram-se na terça, dia 31 após quase 80 mil transportados.

A retirada do pessoal estadunidense e dos aliados, bem como os corpos diplomáticos e os colaboracionistas (o que colabora com o inimigo do seu país, o ocupante). O termo correto não é colaborador, mas colaboracionistas, que tem um conteúdo ideológico forte e claro.

O cargueiro militar C-17 é o maior do mundo (11). Há três ou quatro estacionados no aeroporto, controlado pelos militares dos EUA. Eles ainda tem cinco mil militares acampados lá, sem poder sair, garantindo a expatriação. Na espionagem, o termo correto seria Exfiltração, que se usa quando se resgata um membro de um país pelos agentes secretos. As fotos que temos visto são impressionantes. A rampa aberta na parte de trás dos aviões cargueiros e uma imensa fila de pessoas entrando.

Isto não se compara com a pequena fila em Saigon em abril de 1975. Há outra foto melhor que é de uma ponte de embarque (finger) com uma escada apinhada de pessoas querendo embarcar. Mas não havia avião para recebê-los e quando havia eles ficavam tão lotados que não podiam decolar. Víamos estes finger completamente lotados, com gente dependurada e pessoas até na parte de cima da fuselagem dos aviões. Algo inédito, que jamais se viu antes.

E, a foto mais emblemática foi a dos três que caíram, porque estavam agarrados ao trem de pouso dos cargueiros que decolou. E, houve alguns esmagados, visto que estavam agarrados ao trem de pouso e seus restos mortais foram encontrados quando o avião aterrissou.

É uma cena de desespero que não se compara ao Vietnã. Lá, chegou a ter 500 mil soldados. No Afeganistão, foram 150 mil, no máximo. Mas, há um dado interessante que a imprensa só divulga o número máximo. Mas, um soldado estadunidense que fica em um país tem um tempo máximo de permanência. Logo eles são substituídos.

Os Estados Unidos são uma máquina de guerra. Um em cada quatro estadunidense tem alguma relação com o complexo industrial militar, com a máquina de guerra: um parente que é soldado, um namorado, um amigo etc. Isto demonstra o peso da indústria da guerra nos EUA.

Quando o G7 pede ao Biden para prorrogar a saída do país, seus membros tinham esperança de que o presidente solicitasse para o Comando Revolucionário, que está em negociação com os EUA, essa prorrogação.

Biden não só não concordou, como nem tampouco os Talibãs aceitariam. Eles tem sido intransigentes nesse sentido. E está correto. E o prazo de 31 de agosto está perfeitamente possível, pois a maior parte das pessoas – calcula-se uns cem mil – já foram retiradas.

Alerto novamente: o termo correto que devemos usar não é levante popular ou revolta. Aquilo que lá ocorre é uma revolução de caráter anti-imperialista, independentista que defende a soberania nacional. Essas concepções de soberania e independência vem de um tratado ao qual falo muito nos meus cursos de geopolítica, que é o Tratado de Paz de Westphalen, de 1648.

Todos os locais por onde os Estados Unidos passaram ou ocuparam, eles deixam um rastro de devastação, miséria, estupro de mulheres. Na Síria eles não conseguiram derrubar o governo, mas destruíram o país. Dos seus 20 milhões de habitantes, cinco milhões estão deslocados. Destruíram a Líbia e mataram o seu presidente. Dos países africanos era o país com maior índice de desenvolvimento.

Mas, alegavam que Khadafi era ditador, para justificar a ocupação. Destruíram o Iraque por duas vezes, em 1991 e 2003 e não saíram totalmente de lá até hoje. E mataram o seu presidente Saddam Hussein. Quando eles ocuparam o país, em 2003, o renomado escritor de esquerda e jornalista paquistanês, Tariq Ali, deu uma entrevista para a Folha de São Paulo. Ele afirmou que ocupação seria de no mínimo 10 anos, e acertou.

Quando completou nove anos em 2012, Obama retirou parte das tropas e, até hoje, ainda tem uns cinco mil soldados, que agora Biden diz estar retirando. Eles não falaram que vão retirar os soldados da Síria, mas a tendência é de que retirem, pois estão desocupando o Oriente Médio.

Esta semana publiquei um novo ensaio que enviei para 11 sites e portais que publicam os meus artigos. Um deles é o Portal 247. É um ensaio 12 páginas e 18 notas de referências, explicativas. Nas notas explicativas deste trabalho publico o link onde vocês poderão lê-lo (12).

O programa e a carta de princípios do Talibã

O seu programa original apresentado em coletivas de imprensa, tem ao todo 30 pontos. Em meu ensaio intitulado Falência da política externa do governo Biden, eu apresento em torno de 20. E, neste novo ensaio, publico alguns dos principais pontos (13).

  1. Todas as mulheres terão ensino até o nível universitário, sem restrição ao estudo e ao trabalho;

Se lermos este programa para uma pessoa de esquerda, sem falar que é do Talibã e ao final você perguntar se foi escrito por uma turma revolucionária de esquerda todos dirão que sim. Mas, se falar que é do Talibã a conversa muda.

  1. A Burca, é a cobertura total do corpo. Eles são muçulmanos e vão exigir apenas o Hijab, que não cobre todo o corpo, é um lenço ou veu e cobre apenas o rosto. Muitas mulheres usam e deixam aparecer uma parte dos cabelos. Há um outro tipo que é o Niqab, que não deixa aparecer nada, é como aquelas vestes de freiras, deixando apenas o rosto exposto.

No judaísmo ortodoxo as mulheres raspam a cabeça e usam peruca. Isto para mostrar desprendimento e submissão total perante Deus. Dentro das casas, quando elas estão sós, com seus maridos, podem tirar a peruca. Tem uma série da Netflix, chamada Shtsel que retrata os costumes dos judeus ortodoxos em Israel.

O Alcorão diz que as mulheres devem vestir-se com discrição. A interpretação dos sábios é que as mulheres não deveriam mostrar os cabelos. Na igreja católica também se usa o véu e ninguém fala nada.

  1. Asseguram que não alimentarão inimizades nem rancor com quer que seja. O que demonstra um desprendimento, mesmo tendo perdido 60 mil guerrilheiros.
  2. Haverá um perdão geral. Anistia geral, ampla e irrestrita, extensiva a todas as chamadas forças armadas afegãs, com 300 mil homens, e também aos servidores públicos que trabalharam para os “governos” de ocupação.

Aliás, no meu ensaio citado, eu falo do subsolo afegão, rico em cobre, lítio, cobalto, avaliados em três trilhões de dólares, ou mais ou menos 15 trilhões de reais, equivalente a cinco anos do PIB brasileiro. Será que os EUA não extraíram nada, como fizeram com o petróleo no Iraque? Isto agora vai para as mãos dos revolucionários. É como na Venezuela, antes de Chávez, quando o petróleo era usado apenas em benefício das elites. E, quando Chaves assume o poder em dezembro de 1998, o petróleo passa a melhorar a vida da sociedade.

  1. Eles deixam claro que se orgulham de serem a força libertadora do Afeganistão das forças de ocupação estrangeira.
  2. Garantem a segurança das embaixadas e de todos os organismos humanitários internacionais sediados em Cabul. Avisam a todo o pessoal estrangeiro, que não precisam deixar o país e que ninguém será perseguido. Todos serão protegidos.

Em Cabul eles estão fazendo até o policiamento. Nenhuma loja, nenhum supermercado, nenhum comércio foi saqueado na capital. Os guerrilheiros Talibãs são um grupo muito preparado. Como eles tomaram a capital sem dar um tiro? É porque eles já estavam em Cabul.

Havia militantes deles em Cabul que – na linguagem da espionagem – são chamadas de células adormecidas. É aquele militante que ninguém sabe que é Talibã, mas em sua casa ele tem um fuzil A-47, Kalashnikov. No dia em que o Comando revolucionário entrou na cidade, eles foram para a rua com sua arma.

Veremos ainda por um bom tempo, imagens de algumas redes internacionais de TV, mostrando mulheres oprimidas e às vezes até chicoteadas em alguma cidade do interior. Isto aparece na mídia e entra na cabeça de pessoas do nosso campo que não tem uma formação política sólida internacionalista. Isto também, porque já há uma pré-disposição – e não sem razão –, porque eles cometeram, de fato, barbaridades, como destruir uma estátua de Buda, o que não aconteceria hoje. Quando cenas assim batem nas cabeças das pessoas, reforçam os preconceitos.

Mas, tem coisa pior ainda sendo disparadas pelos aplicativos de mensagens instantâneas, principalmente o WhatsApp. Eu mesmo recebi de quatro pessoas. Apenas uma dela, estranhando, indagou se era verdade aquele conteúdo.

Trata-se da execução de uma mulher em uma praça central. Vê-se as pessoas falando árabe, que não é a língua afegã. Fui pesquisar, pedi ajuda a amigos que falam fluentemente o árabe. Esse episódio foi em uma cidade ocupada pelo Estado Islâmico na Síria, provavelmente em 2013 e a mulher era acusada de adultério.

Assim agem os membros do EI. Os Talibãs jamais fariam uma coisa dessas. Mas, isso faz parte da chamada guerra híbrida, para reforçar a posição do imperialismo e colocar as pessoas contra os guerrilheiros, que tomaram o poder e deram um surra nos estadunidenses.

  1. Um governo islâmico inclusivo será instalado. Tem que ser um governo forte. O Talibã quando governou por cinco anos (1996-2001), ano que os EUA chegaram. O Talibã à época proibiu o cultivo da papoula. De 2001 em diante o cultivo voltou. Alguém ganhou milhões de dólares com a continuação do cultivo.

Quem ganhou foi um grupo – que hoje está tentando derrubar o Talibã –, que é chamado Aliança do Norte e controla um pequeno distrito chamado Panjshir, cujo líder é o filho do seu fundador, que já morreu, e é considerado um herói nacional, colaborou com os EUA e combateu o Talibã, que é Ahmad Shah Massou (13).

As grandes redes de TVs internacionais já estão todos nesse distrito com suas equipes, fazendo imagens de guerrilheiros com suas metralhadoras e filmando esse pessoal gritando palavras de ordem contra o Talibã.

O líder dessa Aliança tem apenas 32 anos, que é o Ahmad Shah Massoud. Ele concede entrevistas para o mundo inteiro dizendo que vai derrubar o governo (que ainda sequer se formou). Acho isso uma grande bravata. Eu também acho que, em mais algum tempo, até eles irão reconhecer o governo dos Talibãs e fazer uma composição, sob pena de serem esmagados.

  1. Haverá ampla liberdade de imprensa. Todos os dias eles têm dado coletivas de imprensa. Vejam o caso da jornalista da CNN Internacional chamada Clarissa Ward. Ela sempre fez matérias com roupas ocidentais. Quando os guerrilheiros tomaram a capital no dia 15, ela, em sinal de respeito colocou um veu, cobrindo apenas a sua cabeça.
  2. Não vai haver perseguição aos tradutores, que eram mais ou menos 20 mil, que falam vários idiomas, atendendo às várias tropas de ocupação, que vieram de diferentes países. Eles estão com medo e querem sair do país, enquanto o Talibã pede para que fiquem.
  3. Comprometem-se a garantir que seu território não será utilizado para ataques a outros países e que nenhum grupo terrorista será tolerado em território afegão.

Acho que os Estados Unidos, que estão apoiando a Aliança do Norte, chegarão a um momento em que vão reconhecer os Talibãs e seu governo, porque se não o fizerem, ficarão isolados do mundo inteiro. É preferível reconhecer e depois impor sanções e tentar controlar – que é típico de sua política –, do que não reconhecer.

  1. O Talibã busca reconhecimento internacional. Eles amadureceram muito na política e na diplomacia. Eles fazem política internacional e estão em movimento pelo seu reconhecimento. Eles não querem ir para um gueto.

Quando eles governaram entre 1996 e 2001, apenas três países os reconheceram: Paquistão, que ajudou na criação do Talibã, Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que hoje classificam o Talibã como grupo terrorista.

Há vários casos no mundo, o IRA na Irlanda, o CNA na África do Sul, cujo mais importante é o Partido Comunista Sul Africano, que tinha um braço armado na época do Apartheid, chamado Umkhonto we Sizwe (14), que em linguagem Zulu significa A lança da nação. O ETA (Euskadi Ta Askatasuna) (15), na Espanha. Hoje eles se desarmaram, transformando-se em partido político. Da mesma forma as FARC colombianas, que se desarmaram também. Há vários exemplos no mundo, partidos com braços armados e grupos que viraram partidos e se desarmaram.

  1. Os Talibãs não foram movidos pelo espírito da vingança, mas não tiveram escolha. Naquela circunstância de guerra e agora são outros tempos e a abordagem será diferente. O que demonstra maturidade.
  2. Prometem que o Afeganistão será transformado visando a melhora de vida do povo, a partir do desenvolvimento nacional.
  3. Receberá com maior satisfação, a ajuda de países amigos. Eles mantém boa relação com o Paquistão, com a Rússia e a China. Eles ainda não mencionam diretamente o Irã. Mas o país já os recebeu três vezes em Teerã, alguns meses atrás.
  4. Garantem fazer um governo amplo, aberto ao povo e que incluirá representantes de diversos setores.
  5. Do ponto de vista do Talibã, a guerra acabou. Querem que os dias de guerra fiquem no passado. O Afeganistão não é mais um campo de batalha entre afegãos e potências estrangeiras.

Algumas observações gerais

Nesta conclusão, quero reforçar o que venho dizendo desde a minha primeira participação em um programa de TV por streaming quando comentei sobre a tomada de Cabul em 15 de agosto passado: temos que encarar o Talibã como um grupo guerrilheiro que luta pela independência do seu país. Eles jamais podem ser comparados com grupos terroristas como parte da esquerda vem falando. Tampouco que foram criados pela CIA.
A vitória militar e política que eles tiveram contra o maior exército e império que a Terra já teve, deve ser amplamente comemorada por todos os que lutam e defendem a soberania nacional de seus países. Tal qual disse a revista The Economist – o exemplo que eles deram no Afeganistão pode inspirar – e o fará claramente – todos os lutadores em todos os países, que vivem sob opressão.

De nossa parte, não nos cabe apoiar ou fazer oposição a esse grupo. Cabe ao povo do Afeganistão essa decisão. No entanto, como estudiosos da política internacional, devemos sim ter uma opinião sobre o grupo. E o faremos em breve. O momento agora, de nossa parte, é de cautela e de observação de suas primeiras medidas.

Temos que acompanhar para ver as primeiras medidas que eles tomarão e ver se aplicarão o programa e a carta de princípios que esboçamos um resumo acima. Em especial, temos que monitorar as suas decisões para com as mulheres, que é, digamos, o seu calcanhar de Aquiles, pois cometeram muitos erros no passado, ainda muito presente na mente das pessoas.

O que não temos que ter dúvidas é quanto à comemoração que temos que fazer, em função da maior derrota sofrida pelo imperialismo estadunidense desde a sua fuga de Saigon, em abril de 1975, retratada pela emblemática foto tirada no teto da embaixada dos EUA.

 

Notas

1) O link onde diversos artigos da revista mencionada pode ser acessado aqui: <The fiasco in Afghanistan is a grave blow to America’s standing>;

2) O significado histórico e teórico sobre a GPP pode ser lido neste link: <Guerra popular prolongada>;

3) A história mais completa da Irmandade Muçulmana pode ser lida neste link: <Irmandade Muçulmana>;

4) O significado esse Estado Islâmico no Afeganistão pode ser lido neste link: <Terror no Afeganistão: o que é o “Estado Islâmico Khorasan”?>;

5) Veja em Joseph Stálin: Sobre os Fundamentos do Leninismo. VI – A Questão Nacional, Editora Parceria A. M. Pereira, Portugal, 1974, Lisboa, 154 páginas;

6) Em que pese nossas divergências com o PCO no plano nacional, em questões internacionais temos muita identidade. O trecho do programa mencionado – a partir do minuto 32 – pode ser assistido neste endereço: <Abaixo a ditadura de João Doria – Análise Política da Semana, com Rui Costa Pimenta – 28/08/21>;

7) O livro de Xi Jinping citado foi publicado no Brasil em dois volumes pela editora Contraponto, e tem o titulo A governança da China, com 566 páginas o volume I e 696 páginas o volume II. A citação mencionada pelo presidente da China sobre o programa Belt and Road (Cinturão e Estrada) está resumido nas páginas 618 até a página 621, no artigo intitulado A iniciativa Cinturão e Rota beneficia o ovo.

8) Veja no link a seguir os detalhes da reunião do chefe da CIA com os Talibãs: <Chefe da CIA teve reunião secreta com líder do Talibã em Cabul>;

9) Veja neste link <Exército Republicano Irlandês> toda a história do Exército Republicano Irlandês;

10) A história do famoso rifle (ou fuzil) de assalto, que vendeu mais de cem milhões de unidades desde 1966 pode ser lida aqui neste link: <AK-47>;

11) A história mais completa sobre esse que é o maior cargueiro militar do mundo pode ser lida neste link: <Boeing C-17 Globemaster III>;

12) O meu ensaio anterior citado neste trabalho pode ser lido no endereço: <Significado histórico da derrota dos EUA na Ásia Central>;

13) A história completa do grupo denominado de Aliança do Norte no Afeganistão pode ser lido neste link: <Aliança do Norte>;

14) Veja neste link <Umkhonto we Sizwe> a história do grupo que foi o braço armado do CNA na África do Sul, comandado por Mandela;

15) Para conhecer mais sobre a trajetória da guerrilha do País Basco, acesse este link: <Euskadi Ta Askatasuna>.


Texto em português do Brasil

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