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Domingo, Novembro 24, 2024

“A realidade acaba sempre por derrotar a ideologia”

Pedro Pereira Neto
Pedro Pereira Neto
Académico. Ensina comunicação e jornalismo.

Pedro Pereira NetoNão sendo frequente que as figuras políticas menores tenham o fim que a sua diminuta escala merece, não é menos verdade que uma delas, talvez a mais representativa da mediocridade e parcialidade dos nossos tempos, verá a sua carreira ter precisamente esse epílogo: Aníbal Cavaco Silva. Quantidade não é qualidade, e nesse plano o exercício de cargos de representação política por Aníbal Cavaco Silva é, em termos qualitativos, inversamente proporcional à duração da sua carreira. Excepto, talvez, em dois planos: no dano social e cívico que pode ser atribuído a esse exercício; e no péssimo exemplo que deve constituir para gerações futuras.

Sublinho, antes de tudo o mais, um ponto instrumental: não me move qualificar a pessoa nem permitir-lhe, por essa razão, qualquer estratégia de vitimização – um ardil tão previsível como ineficaz – pois são as atitudes do político a dever ser destinatárias de censura e, comicamente, do desfecho que as remeterá para o rodapé histórico que merecem.

Num período histórico onde, apesar de tudo, é possível colher para a diversidade dos agentes de representação política o benefício da universalização do acesso à Educação – e sabemos bem o quanto o têm combatido os sectores mais comprometidos com a imobilidade social, em prol da eternização do seu privilégio – não é menos verdade que a conduta política de Cavaco Silva traduz a exacta antítese do benefício antecipado dessa universalização. Onde se esperaria aumento na tolerância para com ideias politicamente divergentes, resultado da libertação do país de décadas de repressão ideológica, Aníbal recuperou o sectarismo democrático e a ideia de que alguns partidos são mais dignos da Democracia que corporizam do que outros. Onde se esperaria dignidade no exercício do mais alto cargo do regime político, num exercício de equidistância e ascetismo ideológico, Aníbal praticou um mandato de revanchismo partidário contra todas e todos as/os 75% que tiveram a “ousadia” de recusá-lo nas urnas. Onde se esperaria reconhecimento crescente de direitos baseados na personalidade e na identidade auto-definidas Cavaco Silvapelos indivíduos, Aníbal impôs, pela utilização cirúrgica de um instrumento democraticamente ilegítimo – o veto político – a natureza retrógrada do seu pensamento e da incapacidade que sempre demonstrou em acompanhar a evolução da própria sociedade que dizia querer representar.

Mas mais ainda que tudo isto, e de forma superlativamente grave, a afirmação de que “a realidade acaba sempre por derrotar a ideologia” constitui a epítome da arrogância desinformada e da desconsideração da própria realidade à qual pretendeu aplicar a parcialidade do seu diagnóstico. Aníbal Cavaco Silva não está apenas factualmente errado nesta afirmação, quando praticou muitas vezes o oposto do que agora afirma, e quando os mesmos indicadores a cuja objectividade sempre tentou colar-se desmentem a avaliação que a partir deles tenta fazer, desde o desaparecimento de sectores produtivos inteiros no nosso país à falência absoluta das soluções governativas que sempre defendeu. Não.

O que Aníbal Cavaco Silva tenta fazer com esta afirmação-chave é substituir a inconveniência da realidade real pela utilidade de uma realidade narrativamente fabricada, retirando-lhe o ónus desagradável do desmentido que ela assinala para todas as ideias que constituem o seu legado. Exactamente como fazem alguns media da nossa praça, substituindo a desagradabilidade dos factos pela ênfase útil das interpretações, e recordando que tudo aquilo com que sempre discordou lhe mereceu os piores adjectivos, é assinalável que a própria realidade seja a principal testemunha da falência do seu pensamento cegamente tecnocrático, que reduziu cidadãs e cidadãos a reféns anónimos da invalidade das suas fórmulas – elas mesmo impregnadas da mesma ideologia que demoniza nos outros. Ou seja, na prática, uma realidade que desmente aquele que “nunca se engana” tem, forçosamente, de ser movida por má-vontade, por ideologia: numa palavra, a realidade tem de ser… de Esquerda.

Que o pensamento político de Aníbal Cavaco Silva naturaliza como transparente e necessário o modo como intervém no mundo, tornando obrigação o que é opção ideológica ao mesmo tempo que tenta deslegitimar como “ideologia” o pensamento de outros, não é algo fundamentalmente novo: essa estratégia discursiva, para além de banal e de infantilidade confrangedora, é recorrente no seu paternalismo enunciatório. Que, após décadas de exercício político, tenha alcançado um estado de cristalização argumentativa auto-celebratória, já assume contornos patológicos – o que seria perfeitamente aceitável se o alheamento subjacente à sua acção não fosse consequente sobre a vida dos outros.

Por essa razão, o desaparecimento político de Aníbal Cavaco Silva tem de ser, no século XXI, motivo de regozijo: pelo crime cívico e social que constituiu muita da sua acção política; pelo péssimo exemplo que sempre deu de intolerância para com a diversidade de ideias e de identidades; pelo desconforto e inaptidão moral revelados durante o exercício dos cargos. O que fica depois de décadas do peso que essa conduta constituiu para a Democracia Portuguesa é, apesar de tudo, e de forma significativa uma indignidade tremenda: não apenas a da resiliência dos seus efeitos, mas a do facto de o resto dos seus dias ser, também ele, um fardo para os mesmos concidadãos a quem tão miseravelmente serviu.

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