Tal como no caso dos depósitos da Dona Branca, o âmago do sistema é de assegurar que quem entra mais cedo recolhe os fundos colocados por quem entra mais tarde, e por isso é essencial que o preço da bitcoin aumente. Por isso o peso, complexidade e custo do sistema têm forçosamente de aumentar permanentemente como condição sine qua non para o sucesso da operação.
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Os banqueiros e o povo
Entre as memórias mais antigas da minha infância, nos anos 1960, está a dos apertos financeiros da gestão doméstica da minha mãe (a dona da casa e a gestora do orçamento resultante do salário do meu pai) que a obrigaram a pedir empréstimos mais do que uma vez. Eram mil escudos emprestados de que eram amortizados mensalmente cem escudos, com um mês de pagamento adicional, o que fazia uma taxa de juro superior a dez pontos percentuais anuais. Quem realizava as operações era uma senhora de idade que provavelmente era apenas correio monetário de um agente usurário que nunca conheci.
Esta informalidade de relações financeiras – que é ainda corrente em grande parte do mundo – ajuda um pouco a explicar como em Portugal nos anos 1980 era ainda uma senhora nascida em 1902, conhecida como ‘Dona Branca’, e como a ‘banqueira do povo’, que foi a personagem financeira de referência.
Concedendo generosos juros sobre depósitos, conseguiu angariar somas colossais até que as autoridades vieram finalmente avisar os portugueses para os riscos que corriam gerando o pânico, a corrida aos depósitos, e o rebentar da bolha especulativa, com muita gente a perder tudo, tendo finalmente a banqueira do povo sido condenada e presa por fraude.
De lá para cá, e até à falência generalizada da banca a partir de 2008, tivemos uma vaga tecnocrática em que cavalheiros com ligações diversas ao poder económico, social e político geriram o dinheiro dos portugueses com uma lógica não muito diversa da da Dona Branca, sendo que, para além da inovação na indumentária, nos títulos e no estilo, contrariamente à Dona Branca, levaram à falência o país inteiro, chamado a pagar os seus desmandos.
Uma das consequências fundamentais dessa crise financeira foi a de questionar o sentido da existência da banca como chegou aos nossos dias. Por um lado, acelerou-se a substituição do empréstimo feito pela banca pelo título emitido por instituição financeira não bancária, movimento que é anterior a essa crise e que está mais avançado nos países mais desenvolvidos. Por outro lado, o mundo empresarial – fundamentalmente as empresas tecnológicas e muito em especial na China – começaram a agir como intermediários financeiros, enquanto os avanços tecnológicos vieram a questionar a razão de ser de grande parte da intermediação financeira tradicional.
Mais recentemente, e mais uma vez a reboque da China, começou a generalizar-se a ideia de que os bancos centrais podem dispensar a intermediação financeira, podendo relacionar-se directamente com o cidadão através da moeda digital.
Paralelamente a toda esta revolução em desenvolvimento vão surgir as cripto-moedas, que devem o seu nome ao facto de serem produzidas por pesados modelos matemáticos de criptografia a que denominam de ‘mineração’ numa suposta analogia com a pesquisa de metais preciosos. Embora existam milhares de criptomoedas a mais antiga e de longe mais importante é a chamada bitcoin.
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Entre o real e o transcendente
O dinheiro é uma realidade antiga e complexa, usada pelos mais diversos motivos e assumindo as mais diversas formas que é por vezes vista como essência material mas que na verdade tem sempre flutuado entre o real e o transcendente.
Que a moeda tem uma relação com a riqueza que nos rodeia é uma noção que está há muito presente na história, mas daí a ter uma noção precisa, e mais ainda científica, dessa relação, a diferença é grande.
Keynes nos seus escritos de Cassandra (que reproduzem textos de programas radiofónicos dos anos trinta) como eu o referia em 2000 quando parlamentar europeu, criticando o uso de paridades de poder de compra e citando o clássico Dr. Watson em visita à ilha de Skye: ‘se os ovos na vossa ilha miserável são baratos, não é porque eles existam em abundância, mas é porque o dinheiro é escasso’, evidenciando aqui uma das mais importantes características dos fenómenos monetários.
Contemporaneamente, as duas principais tentativas de criar uma aproximação objetiva à questão do valor da moeda foram a teoria do valor trabalho e a teoria do valor utilidade, tentativas a que dediquei o meu livro editado este ano, e como aí explico, nenhuma dessas tentativas teve sucesso até hoje, sendo mesmo a segunda sustentada em falsificações matemáticas.
Embora o dinheiro tenha assumido muitas outras formas, foi o ouro que chegou até a épocas contemporâneas como o seu maior símbolo, ao ponto de a crença no ouro como forma de assegurar a estabilidade monetária ter persistido até aos anos 1930 (Salazar foi um dos seus principais defensores).
A verdade é que mesmo nos últimos anos, perante a última crise financeira, não faltou quem defendesse a reintrodução de um sistema padrão-ouro apesar de não haver sombra de legitimidade científica ou de qualquer racionalidade numa proposta desse tipo.
A adoração do bezerro de ouro é talvez o episódio do Talmude que melhor reflecte o que há de transcendente no dinheiro (episódio retomado quer pela Bíblia quer pelo Corão), e é impressionante ver como em pleno século XXI essa adoração continua presente.
Foi certamente inspirado por essa obsessão com o ouro que o suposto criador da bitcoin resolveu conceber o absurdo paralelo entre produzir um metal precioso e resolver complexas e pesadas equações criptogáfricas – actividade que por força dessa analogia passou a ser descrita como ‘mineração’ – com a extravagante explicação de que ambas são dispendiosas.
É mais ao menos o mesmo do que dizer que assegurar o ensino para os jovens pode ser descrito como fazer a guerra porque ambas as actividades são caras, como se o gasto de dinheiro fosse o objectivo a ser atingido e não o inverso.
Todas as formas de dinheiro flutuam entre a intangível realidade, o seu valor intrínseco, e o virtual, a confiança que ele nos inspira. A falsificação da realidade para suprir a falta de confiança é a norma da má moeda.
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A barragem de censura e desinformação
Se olharmos para as torrentes de desinformação e propaganda das criptomoedas que varre com cada vez maior intensidade o nosso mundo – incluindo naturalmente Portugal – não podemos deixar de nos assombrar com o caminho percorrido em menos de quarenta anos da Dona Branca ao Jack Dorsey do twitter passando por Ricardo Espírito Santo e vários outros protagonistas.
Da imagem de simplicidade e honestidade passámos à híper-sofisticação tecnológica, em que o comum dos mortais é bombardeado com fórmulas, termos e conceitos esdrúxulos e isotéricos que ele certamente compreenderá se não for burro – e conta-se aqui claro com a vergonha do cidadão em confessar a sua incapacidade de entender a insondável criptomania – contando com a censura e desinformação promovida por empresas tecnológicas que já foi transformada em lei em países como Portugal.
É ridículo que se queira dar respeitabilidade e promover como moeda um sistema que tem custos astronómicos de funcionamento para registar transacções (na senda da linguagem esotérica a que estamos submetidos, não se diz que os custos são imensos, diz-se que o sistema tem ‘muito impacto no clima’).
As bitcoins obtêm-se pelo uso de enormes parques computacionais que gastam quantidades dificilmente imagináveis de energia, e a única maneira de fazer com que o sistema conduza a rentabilidades semelhantes às oferecidas pela Dona Branca é assegurar que a chamada ‘mineração’ se torne cada vez mais cara, para que as bitcoins assumam preços cada vez maiores.
Tal como no caso dos depósitos da Dona Branca, o âmago do sistema é de assegurar que quem entra mais cedo recolhe os fundos colocados por quem entra mais tarde, e por isso é essencial que o preço da bitcoin aumente. Por isso o peso, complexidade e custo do sistema têm forçosamente de aumentar permanentemente como condição sine qua non para o sucesso da operação.
E o sistema continuará, tal como aconteceu com o da Dona Branca, até que as autoridades políticas e financeiras tenham coragem de chamar os bois pelos nomes e sejam capazes de vencer a barragem de desinformação montada pelos monstros que condicionam a informação no nosso mundo.