Entre as coisas de que provavelmente vou ter saudades da leitura regular do Economist é a capacidade de desafio ao senso comum de que por vezes a revista dá sinal. Com uma capa representando uma águia de rastos, e sob o título ‘A trapalhada que Merkel nos lega’, o Economist desta semana contém um caderno especial que lhe é dedicado.
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Entre o ser e a sombra
E o artigo começa por reconhecer a popularidade da chanceler que ultrapassa mesmo as fronteiras do país (testemunhei eu também nas redes sociais inúmeros elogios portugueses genuínos), sendo-lhe atribuído um estatuto quase monárquico, surpreendente, tendo em conta a existência de um Presidente da República na Alemanha, sugerindo no entanto a irracionalidade dessa posição, dado que os mesmos eleitores que manifestam o seu apoio a Angela Merkel manifestam a necessidade de a Alemanha mudar de política.
Angela Merkel chamou-me a atenção ainda como líder da oposição num debate parlamentar com Schröder em que este, com uma excelente colocação de voz, indumentária de rigor e argumentação aparentemente sólida arrasava uma senhora com um vestido que não lhe caía bem, que falava sem chama, sem ritmo, sem colocação de voz, sem postura.
E, no entanto, um olhar mais atento revelava alguém genuíno; mulher que podia ser bem vista como mãe ou avó, em quem se podia acreditar, enquanto Schröder parecia um daqueles excelentes vendedores de automóveis que não inspira contudo qualquer confiança.
Conheci-a pessoalmente depois, no contexto de uma conferência contra o antissemitismo no Parlamento federal em Berlim, e confirmei a boa impressão pessoal que já tinha feito dela, a partir dos relatos em primeira mão de refugiados iraquianos, em particular dirigentes da comunidade Yazidi, que me confidenciaram como ela discreta e pessoalmente foi fazendo muito para ajudar algumas das vítimas do jihadismo.
Angela Merkel tem uma autenticidade e simplicidade conjugadas a uma sensibilidade para o juízo geral popular que explica este fenómeno. Apesar de ser líder partidária e de ter de gerir a ‘cozinha partidária’ como qualquer outro dirigente, ela conseguiu assumir uma postura distante dos interesses e posições em conflito, alguém que consegue fazer consensos gerais.
A única vez em que a sua popularidade foi claramente posta em causa, dando mesmo espaço à criação de uma força à sua direita que chegou a ganhar grande espeço político, foi com a abertura aos refugiados sírios, altura em que deixou que a sua sensibilidade e emoção se sobrepusessem ao seu instinto político de seguir o sentimento geral, numa atitude que acabou por modificar depois de constatar os custos políticos da sua escolha, aderindo ao consenso generalizado que fecha as portas aos refugiados.
Na presente crise afegã a Alemanha notabilizou-se como um dos países europeus que mais ostensivamente ignorou os apelos dos refugiados políticos afegãos, o que é para mim o símbolo de como o poder transforma o ser na sua sombra.
E é essa sombra que os candidatos com hipóteses a suceder-lhe perseguem, ao ponto de, mesmo os que se apresentam por outros partidos procurarem ser vistos como os mais fieis seguidores de Merkel.
Independentemente dos resultados – e este artigo é escrito ainda antes das eleições – as projecções apontam como inevitáveis coligações e como provável a primeira coligação a três na história da República Federal, coligações que levarão provavelmente bastante tempo a formar-se, tempo em que Angela Merkel continuará a assumir, mesmo se com poderes reduzidos, a chancelaria alemã.
Ou seja, não é ainda a altura de ver a chanceler pelas costas sendo que está longe de se poder excluir que uma situação de crise internacional lhe coloque de novo os holofotes em cima.
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A Alemanha na Europa
A verdade é que grande parte do que é o chamado legado de Angela Merkel pouco tem a ver com ela. Angela Merkel herdou um país que conseguiu sem guerra o que não conseguiu com ela: colocar-se como líder indiscutível do continente europeu.
Muito desse poder foi-lhe dado de bandeja. A queda do muro, a ideia peregrina de fazer da moeda única o preço a pagar pela Alemanha (quando o euro foi um dos seus maiores trunfos) e o BREXIT – só possível pela falta de inteligência estratégica dos dirigentes políticos dos EUA, do Reino Unido e da França – foram cruciais para a consolidação dessa posição.
A transposição do conservantismo macroeconómico alemão para o plano europeu quase acabou com a Europa, e aqui é verdade, que só o bom senso de Angela Merkel moderando as posições mais agressivas das suas hostes evitou o pior. E reconheça-se, esse conservantismo orçamental que fez tábua rasa da evolução do pensamento macroeconómico no século XX foi zelosamente aplicado pelos burocratas e pelos nossos eleitos num corpo legal monstruoso que continua a existir.
O que mesmo entre os economistas foi mal ou pouco entendido é que esse rigorismo orçamental é um dos aspectos da doutrina alemã bizarramente denominada de ‘ordoliberalismo’ e que é herdeira do ‘sistema da economia nacional’ que vigorou na Alemanha na época em que as doutrinas liberais europeias eram conhecidas como ‘Economia Política’ (por vezes ciência económica no caso francês).
E esse ‘sistema nacional de economia política tem como pedra angular um agressivo mercantilismo (que hoje é denominado de guerra económica) de que o rigorismo orçamental é um alicerce, mais do que um fim.
O mercantilismo alemão que prosperou sob o reinado de Angela Merkel – mas que é largamente mais vasto do que ele – é um sistema obsessivo de conquista de mercados, sem limites ou considerações, que não respeita aliados, não respeita princípios, e não respeita mesmo estratégias internacionais.
Este sistema mercantilista desenvolveu-se sob o guarda-chuva americano – recentemente renovado de forma acrítica e impensada como quase tudo o que tem sido feito pela administração Biden – e casou-se com um pretenso pacifismo, plenamente compatível com a venda de armas, com as consequências das guerras para os outros, mesmo quando estas são parcialmente provocadas por esse mercantilismo (caso da Ucrânia).
Um dos subprodutos deste mercantilismo é o pleno cinismo no plano de apregoados valores, sejam eles humanitários ou ambientais e a disponibilidade para pagar resgates, como o sejam os pagamentos feitos à Turquia ou à Líbia para eles reterem refugiados.
É esse mercantilismo que faz agora escola aquém e além Atlântico – com o lamentável negócio indo-pacífico de submarinos dando uma ideia do que está para vir – e que constitui um perigo à defesa de valores humanos.
A apregoada oportunidade para a Europa fazer o seu exército na sequência do desastre americano no Afeganistão, para quem tiver os olhos bem abertos, só pode ser vista como ridícula miopia ou como produto da desinformação dos que querem tomar conta da Europa.
Em todas estas matérias, a presença ou ausência de Angela Merkel pouca diferença fará, porque ela acima de tudo fez prova de grande capacidade de mimetismo com a realidade que a envolve, e é essa realidade que precisamos de ter em conta.
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Os debates necessários
A Alemanha depois de Angela Merkel vai provavelmente ser igual à que foi com ela, e o que é necessário é abrir os verdadeiros debates que se escondem na hipocrisia que é um dos aspectos essenciais do wokismo prevalecente.
Em vez de debater um exército europeu – e existe já uma considerável burocracia militar em Bruxelas de duvidosa utilidade – precisamos antes de saber se estamos dispostos a combater e se estamos prontos a mostrar que estamos dispostos a fazê-lo. Ainda em matéria de combate, é fundamental entender que a guerra das ideias, a guerra da informação, e a guerra da logística são condições primeiras a qualquer sucesso no terreno estritamente militar.
É necessário pôr cobro ao oligopólio de grandes grupos económicos, nomeadamente das empresas tecnológicas que promovem a censura e a desinformação, não se inibindo sequer de promover esquemas fraudulentos de cripto-moedas, como se passa com o chamado twitter. É necessário relançar as políticas anti monopólio, de salvaguarda da iniciativa, da liberdade, da ciência e do conhecimento.
Na defesa de valores humanos, não há alternativas a políticas globais que olhem para todos os cantos do mundo, porque não é possível ser pela igualdade de género na revolução do vocabulário e pela escravidão jihadista da mulher; não é possível ser pela universalidade de direitos dentro de fronteiras e ignorar os mais elementares valores fora delas, como o faz a doutrina wokista.
A defesa do ambiente tem de ser necessariamente harmónica e integrada com o desenvolvimento social e não pode ser vítima de interesses particulares escondidos atrás de visões afuniladas sobre os desafios que enfrentamos, abusando da histeria alimentada pelas redes oligopolistas informacionais.
É preciso ter a inteligência de promover o desenvolvimento e equilíbrio humano e não o mercantilismo das nações ou a obsessão pelo dinheiro dos indivíduos, e para isso é necessário aprender a olhar a realidade com os nossos olhos, retirando os antrolhos que nos distorcem a realidade.