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Terça-feira, Novembro 5, 2024

As Pedras de Sérgio Ninguém

Yvette Centeno
Yvette Centeno
Licenciou-se em Filologia Germânica, e e doutorou-se com uma tese sobre A alquimia no Fausto de Goethe. É desde 1983 Professora Catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou o Gabinete de Estudos de Simbologia, actualmente integrado no Centro de Estudos do Imaginário Literário.

ed. Eufeme, 2021

Guillevic, o poeta das rochas imensas da Bretanha, batidas pelo mar, que David Mourão-Ferreira nos trouxe outrora a Lisboa, foi talvez a minha mais antiga memória do trabalho das pedras no imaginário de um grande poeta, com quem tive o privilégio de conviver, por uns dias. Tinha a força de um rochedo, o das suas convicções, naquele tempo tão estranhadas em Portugal. Vivia-se sob um manto, o do medo: e ele mostrava que não havia razão para ter medos, havia que ser forte, e lutar. Entretanto já eu andava à voltas com a secreta alquimia, a sua Pedra filosofal, cuja abundância de nomes como nota Dom Pernety no seu Dictionnaire MYTHO-HERMETIQUE, nos guia” pela floresta das alegorias fabulosas dos poetas, das metáforas, dos enigmas, e dos termos bárbaros dos filósofos herméticos explicados” (ed. 1787, reed. Denoel 1972).

A pedra é dura, é rocha de terra, a pedra é agua, é agua de vida, é variegada de cores, ou apenas negra, ou branca, voa entre nuvens do céu (e penso em Magritte, noutro post que já aqui publiquei), a pedra é fogo e ar – vemos agora como é verdade, com a terrível explosão que se dá no vulcão das Canárias, a pedra é morte e salvação. Seca e depois renasce.

O célebre Rhasis afirma: ” esta matéria dissolvesse a si mesma, casa-se (leia-se funde-se) branqueia-se, avermelha-se, enegrece, fica  côr de enxofre, e trabalha sobre si mesma até à perfeição da obra.

Passo por cima das entradas, que são muitas, para as definições da Pedra e apenas sublinho que é, nas várias definições, sempre um trabalho que o adepto deve fazer sobre si mesmo, para sua própria sublimação. Ele será, se conseguir, a verdadeira Pedra desejada.

Falemos então da primeira das Pedras de Sérgio, na sua interrogação afoita: procura, ainda não sabe. Mas deixa na capa, como sempre em tudo o que faz uma indicação, uma imagem preciosa: o desenho de um cérebro, duas metades que um fino corte divide ao meio, o lado esquerdo e o lado direito, cada qual com os seus atributos emocionais our racionais a ser explorados. Na contracapa indica: vamos ser pedra, pedra mole e quente. 

O arranque para este exercício poético está no primeiro poema:

….

as árvores invertidas são raízes

vamos ser pedra,

 derreter a dureza, e ficar mole,

os rios são frios

os mares são espuma

 e as montanhas onduladas são camelos 

em linhas convergente distantes

e no deserto o frio nocturno

não aquece, recolhe.

Eis o desejo expresso, sem esquecer o fogo no chão que se vê da janela: “um rochedo infinito – uma pedra só!”

Algo no decurso do poema deixa uma ou outra imagem de marca surrealista, como a do galo a cantar para baixo, o prazer ficando de lado a observar a intensidade de ser pedra. O imaginário livre começa a tomar conta da metade racional de um cérebro dividido, e cujo destino último, como hoje até a ciência admite, terá de ser o da fusão dessas duas metades, razão e emoção, num corpo (a Pedra) único, que a experiência e a maturação da vida irão com a passagem paciente e aceite do tempo, permitir. O eterno lege et relege…et invenies.

De que modo chega o poeta ao fim do seu livro, tendo já atravessado tantas experiências? Firme na convicção de que as pedras são, como diziam alguns, “os ossos da terra”. Dela nascemos e a ela regressaremos ainda que desfeitos em pó. A Pedra é o primeiro e o último princípio de um todo que celebramos sem o conhecer bem.

Num belo e desafiante poema (aqui entra o imaginário insubmisso do poeta) Sérgio fala das batatas cosidas pela mão de uma Penélope expectante: colar feito de amor, de paciência, quantas vezes se terá partido o fio? E esse colar? será usado? será por fim comido, pois a batata é ainda assim alimento?

E chegamos quase sem querer ao fim:

….

um demónio e um deus,

vergonha do nosso conhecimento.

….

rebentar com todo o nosso entendimento, 

e ser livre. E no final?

– o fim…

Acabamos tendo provocado “feridas nas pedras”, mas a ferida não é ainda o fogo que se acende e se deseja e espera, o fogo no coração da pedra, que poderemos ler em PEDRAS II, deste ano de 2021.

Mas não sem antes dar atenção ao mais esclarecedor de um dos poemas, em que se resume a novidade e a originalidade com que o poeta nos quer brindar É um brinde, nós pressentíamos, mas ele confirma:

(o meu poema)

explodi com a métrica

 e com a normas rítmicas

construí tudo através de ruínas

sonoras e infernais.

Pedra II é um livro que temos de ler com cuidado, pegando nele com pinças, para que nenhum verso fique magoado.

O livro está dividido em três andamentos. Sugere que há uma estrutura harmónica, musical, a que se deve dar atenção. E como tem uma dedicatória de in memoriam, exigindo talvez  maior recolhimento, como se algo de um Requiem se pudesse ouvir por ali, no intervalo dos versos. os poemas tornaram-se, por vontade do poeta, “mais paradoxais” pelas imagens em que se vê “o obscuro e o brilhante, juntos”, na fusão das metades do cérebro que no livro anterior estavam ainda tão finamente divididos. A busca é a mesma, da “pedra!”.

Mas há uma modificação, importante de notar: versões alternativas ao verso que podia, mas nem sempre é, o verso definitivo:

(outra versão)

Vamos acender o fogo 

ao fundo da pedra

e a mim que o leio, neste momento crucial, quase me apetecia acrescentar “o fogo no coração da pedra”. Porque a pedra foi terra e foi mãe parideira, outras pedras foram dadas à luz pela sua intensidade, esse fogo secreto, que a faz expelir verso após verso, o sentido que se procura. O Emblema II da Atalanta Fugiens, de Michael Maier representa isso mesmo: Nutrix ejus terra est. A terra é o seu corpo, e o seu alimento.

A pedra é o sentido que se procura. E agora com outra idade, é na infância das casas, dos lugares comuns da terra  que se pode encontrar. A noção do comum, da platitude de uma serra por onde se passeou em busca de segredos que já seriam de uma vida (uma procura futura) que se vai precisamente descobrir “o texto interior”, esse mesmo que pode dizer a pedra.

Pela mão do poeta visitamos a casa, o espaço das infâncias:

A casa era alta:

 duas bocas de madeira; 

cinco olhos de vidro;

o cabelo de um fulvo exuberante.

As divisórias, grandes e plenas;

o chão de madeira, apenas.

A cozinha num cimento vermelho escuro;

o fogo

sentava-se num pedaço de chão 

mais elevado, ao canto;

três pernas, nos potes, que ferviam a sopa nas labaredas

do lume sentado

na melancolia 

daquela cozinha em pedra.

A casa era alta e nós ínfimos.

Aqui está todo um percurso de crescimento e de amadurecimento que só na idade adulta, vivida e sofrida, se pode enunciar e reviver, em versos de grande simplicidade em que a mera descrição do que se vê já nos diz tudo.

Poderia ir pelos caminhos das versões alternativas em vários outros poemas, e isso teria aberto os portões de um outro imaginário: o do eterno possível. Mas as casas da infância ali continuam e pedem a nossa atenção: pois são de pedra, são a pedra  e a perda,  “uma ruína cheia de agonia”.

Sofre quem cresce e adoece como se a vida fosse uma doença, que nos cura da veleidade de ser, para crescer. Nunca saberemos o que somos, nem o que viremos a ser. As sílabas do que escrevemos podem ser “os sílexes afiados que cortam / as sílabas / ao poema / e os pulsos / ao poeta”.

Quando hesita, noutra versão que surge em rodapé, Sérgio escreve: “Apagamos os nossos vestígios”.

Também aqui devemos ponderar o que é o caminho da pedra: não é brilho refulgente, como se julga, e sim apagamento. É o que faz, ao fim e ao cabo, em fim de vida

o medo da infância

atada a um cordel.

Nos poemas é mais a água que dissolve, do que o fogo que endurece, que se constitui a essência deste novo ciclo poético. Mas também a água é elemento primordial, e desta dissolução se faz a pedra. Basta ver as gravuras alquímicas, ou as ilustrações dos códices medievais mais antigos, para se entender a lição que é dada. Dissolver é, a seu modo, regressar a uma pureza natural, desfeita, despida dos corpos que nela se unem. Deles nascerá um corpo novo e esse será o coroado. Terá o nome de pedra.

A luxúria das palavras, o seu excesso abundante, redundante, não terão aqui lugar, embora se possa descobrir, algures numa outra versão de rodapé, um resquício das mil e uma noites sonhadas e perdidas:

lótus perfumado 

nos húmidos

 lábios dela.

A água, o momento do êxtase em que a conjunção se pode dar. Mas também o fogo está presente, e no fogo, em fusão com a água, a união se dará. Jung escolhe uma bela ilustração desse momento numa gravura indiana que escolhe para o seu belo livro da Psicologia e Alquimia, que já tem tradução portuguesa.

Sérgio refere a “alquimia do nada” e o gosto insaciável pelo vazio. É o caminho  do budismo tibetano, e dos perigos que contém, para uma cultura ocidental como a nossa, que vive do fazer, e não do “não fazer”, mas o caminho cada um saberá, a seu momento, escolher. Não há imposições.  “Metáforas cortadas ao meio” – é isso que afinal somos – diz o poeta, que na busca da pedra se despe e simplifica, é a terra que devemos escolher. A terra, sempre, pois nela as sementes crescem, ” e a pedra é apenas um verbo”. Tem variante: ” a metamorfose de uma semente apertada”. E é nessa imagem da semente-pedra que o processo se amplia. Na escrita como na vida.

No Segundo Andamento, A Prosa (Moderato) não sei explicar porquê, ocorreu-me Comte Lautréamont, os Cantos de Maldoror. O autor não abandonou a pedra, tão procurada, mas escolhe agora a prosa, em vez do poema, mais livre, uma prosa intensa, concentrada, e alude ao medo que grita “a verdade definitiva: queremos ser pedra e nunca o somos”. E surgem as imagens dos corvos ( o negro na alquimia), que “conhecem o caminho mas não o sabem. O preto das penas reluz: desconforto e nojo”. Estaremos numa fase de regressão, que exige o esforço tão penoso do recomeço, assim descrito:

Na vida percorrem-se caminhos de pedra, o tempo todo, com corvos negros que nos interrogam constantemente.

Versos das páginas anteriores, como por exemplo pedra agora para mim!, ou

A pedra abra o mistério às palavras, só os pregos falam aos buracos 

fundos

 e vorazes

perderam aqui a sua magia. Nesta prosa que só os alquimistas teriam entendido, volta o negro, volta a vergonha de ter falhado a ocasião. Percorrem-se as imagens e os desvios das mesmas, “com o olhar do espanto”. A esperança absoluta é impossível, avisa. E conclui:

Com o peito oprimido e negro  tenta-se caminhar por cima da respiração… uma entropia sem regresso.

A imagem do negro surge várias vezes como uma moldura que se tornasse infinita no quadro que é a alma: “Omissos, absorvemos contornos negros da matéria viva”. E segue:

Queremos mas não podemos, afastar, a cegueira do nosso olhar, dos estilhaços da esperança. Ninguém vê nada e nada vê ninguém.

Ver é ser desigual.

Afirmação que muito nos faria pensar, se fossemos como Baudelaire, ou Rimbaud, ou Whitman, os desiguais do seu tempo, que Sérgio cita. Mas não, nós somos os do século XXI, sonolentos…autênticos calhaus normalizados pela existência asfixiada.

Cruel conclusão a que se chega, na travessia brutal do século que é o nosso, em que temos de viver, e assistir à descida aos infernos que é a vida na maior parte do mundo, embora pelo caminho se possa relembrar a simplicidade das antigas civilizações, dos povos primitivos já em busca da beleza que deixavam gravada nas pedras das sua grutas.

Mas não haverá regresso.

Ou haverá sim, um único possível, que o poeta agora para fechar o último andamento do seu livro, Allegro, nos descreve:

Era uma vez eu, naquela terra da infância, um lugar com nome de ave. Eu, na terra por dentro da criança.

Deixo ao prazer da descoberta do leitor este último conjunto, que fecha, com mão de guia verdadeiro, uma análise que um psicólogo não faria melhor, da casa, do quarto, dos objectos, das pedras, ou melhor da pedra.

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