A continuar assim, os socialistas arriscam-se a que depois das bicicletas, vão os comboios e os aviões e que terminemos com um novo governo conservador.
-
Esquecer o povo
Deixei de considerar a presidência de Medina na Câmara Municipal de Lisboa como politicamente sustentável depois de ter visto entidades nomeadas pela CML selecionar para a direcção do Museu do Aljube alguém que afirmou que não sabia o que era o Gulag, e não ter visto a demissão de quem a contratou por flagrante ofensa aos princípios universais de direitos humanos.
Como salientei na altura, é compreensível que a Câmara Municipal de Lisboa tivesse nomeado uma personalidade comunista para o cargo, porque é verdade que foi entre os comunistas que recaiu a principal repressão política no Portugal do ‘antigo regime’, mas não ao preço de se apagarem da memória as maiores desumanidades do século XX na instituição vocacionada para recordar as que vivemos mais de perto. Há direitos humanos que não são transacionáveis, não têm preço no mercado político, há valores e há princípios sem os quais nada tem valor.
Posto isto, foi quando constatei pelas redes sociais que o líder da coligação com o partido ‘Livre’ confrontou como facto consumado o popular presidente socialista da junta de freguesia de Santa Maria Maior (onde se situa o Martim Moniz) com uma ciclovia que eliminou catorze lugares de estacionamento e revolucionou a ocupação do espaço da zona, percebi que Medina estava a conduzir o PS a uma derrota, porque tinha resolvido substituir quem o podia informar do sentir do povo por quem do povo pouco ou nenhum sentir tem.
Não sou contra as ciclovias, acho mesmo que elas são indispensáveis por uma razão essencial; mesmo quando a velocidade é limitada a trinta quilómetros, os riscos para os ciclistas no meio do trânsito são enormes.
Li, há cerca de um ano, no jornal do metro de Bruxelas, que a probabilidade de se sofrer ferimento ou morte numa bicicleta por quilómetro percorrido era qualquer coisa como quase cinquenta vezes maior do que a existente num automóvel.
Não consigo encontrar esses números publicados, e os números que vejo na blogosfera disponibilizados pelas autoridades belgas são datados de 2017. Sem apresentar este cálculo que é o que interessa que seja feito, os números confirmam inteiramente os riscos corridos pelos ciclistas: em 2016, 7.5% das mortes na estrada foram de ciclistas contra 10.1% de automobilistas (por quilómetro percorrido, deduzo que a probabilidade de morte em bicicleta será mesmo mais que 50 vezes superior à do automóvel).
Frequentemente, quando vou a pé para o escritório – e é verdade que o limite de 30 Km/H que tanto me exaspera como automobilista, me permite caminhar mais descontraidamente – cruzo-me com uma senhora à frente de uma bicicleta onde há mais três lugares ocupados por crianças, entre os 2 e os 6 anos. Sinto um calafrio na espinha! Penso no que acontecerá se um gato se atravessar à frente, se houver um descuido de um automobilista se, enfim, uma das crianças fizer… uma criancice!
Os dias europeus sem carros observado em Bruxelas mostram uma cidade irreconhecível, de crianças a idosos, famílias a grupos de jovens, de trotinete, patins, de bicicleta, cadeira de rodas ou a pé, que se apropriam do espaço de uma maneira totalmente diferente, convivem, riem, falam e sentem como nunca antes e quase fazem esquecer a inconveniência para quem tem de ir ao aeroporto ou viajar de carro para longe da cidade em dias desses.
Por tudo isto sou sensível a uma transformação do espaço humano que o torne menos prisioneiro do automóvel. No entanto, essa transformação deve ser feita sem espírito persecutório, pesando prós e contras, ouvindo e respeitando o sentir e os interesses do cidadão e, acima de tudo, sem nunca transigir no objectivo central de proteger a integridade física das pessoas e muitíssimo em especial a das crianças.
Posto isto, o candidato da oposição, desastrado nas citações de Churchill, teve o bom senso de entender que estava perante uma oportunidade de ouro de pôr em xeque a coligação em que o PS se deixou deslumbrar pela burguesia modernaça, e roubou assim a bicicleta ao PS.
-
O ministro dos comboios
Em Bruxelas, onde se multiplicam as bicicletas e as pistas clicáveis, e talvez também por isso os ladrões de bicicletas, li que a polícia anunciou com multas imediatas de 250 € quem fosse apanhado em flagrante a roubar bicicletas, o que me pareceu deveras sui generis.
Quando vi que o Ministro Pedro Nuno Santos declarou que estava muito preocupado com a vitória de Moedas porque tinha um filho que morava em Lisboa, lembrei-me da lógica policial belga para pôr cobro ao roubo de bicicletas.
O conteúdo da entrevista do Ministro é menos extraordinário que o título, mas como alguém que pretende vir a liderar o PS, o senhor Ministro deve ser mais avisado na escolha das suas palavras, porque a quase totalidade das pessoas vai apenas ler o título, e vai pensar que o senhor Ministro está a delirar.
Não conheço o senhor Ministro, mas associo o seu nome à melhor ideia que vi o Governo pôr em prática nos últimos anos: em vez de se perder em planos de milhares de milhões para alimentar a indústria europeia; retirar da sucata preciosidades do nosso património ferroviário, pôr as instalações ferroviárias nacionais a funcionar e reabrir linhas abandonadas.
Com jeito, ele poderia prolongar o tema com um plano de recuperação turística da ferrovia nacional e promoção de viagens escolares e promoção ambiental, aproveitando para abrir com as oligarquias instaladas em Bruxelas uma salutar guerra contra a hipocrisia pseudo-ambiental cujas juras climáticas são postas de lado quando se trata de promover o negócio da grande indústria europeia.
Para além desta imagem simpática de Ministro dos comboios, o senhor Ministro tem outras facetas menos simpáticas – como a que se prende com o anúncio de quase mais mil milhões de euros para a TAP no ano que vem – ou as declarações mais ou menos fracturantes de sentido, oportunidade e estratégia com que se tem posicionado para a sucessão do actual Primeiro-ministro.
-
Oposição democrática sem bloqueio institucional
Portugal tem na arquitectura constitucional do poder municipal algo que eu não conheço nos restantes países europeus, que é uma mistura de parlamentarismo e presidencialismo, carácter híbrido da vereação, assembleia municipal de poderes difusos. A realidade é que, ao fim de quarenta e cinco anos, constata-se que esta inovação portuguesa tem funcionado bem.
Os resultados obtidos em Lisboa, a principal cidade do país, colocam o sistema à prova. Carlos Moedas é legalmente o Presidente eleito, mas não só não tem maioria como tem o mesmo número de eleitos que o principal opositor, sendo que toda a restante vereação se encontra à esquerda da coligação opositora.
Desencadear uma crise constitucional nesta base não me parece aconselhável. Se se quiser bloquear o funcionamento do município lisboeta – e as declarações tonitruantes do senhor ministro dão a ideia de que é essa a intenção – corre-se o sério risco de ter como resultado uma crise municipal, e se isso acontecer, creio que a consequência será o de aumentar expressivamente a maioria agora alcançada pela direita, porque o eleitor dificilmente se reconhecerá na imagem de ver os seus filhos em perigo por a presidência da câmara municipal ter mudado de inquilino.
Ao colar-se à lógica suicida da coligação com o Livre em Lisboa, assumindo-se como inspirador da cruzada da bicicleta contra o automóvel, o senhor Ministro está a prolongar e a aprofundar os mesmos erros e alimentar uma polarização tóxica de resultados desastrosos para a esquerda democrática em Portugal.
Pelo que se constata, abriu o senhor Ministro guerra com o Ministro das Finanças a propósito da falta de solidariedade financeira para com o seu plano de comboios. A ideia com que ficamos é que o Primeiro-ministro não é capaz de dirimir esses conflitos e encontrar soluções, e que o senhor Ministro dos Comboios parece estar a perder uma batalha onde toda a razão o assiste, por não ter capacidade de entender todo o palco da guerra e se meter em batalhas absurdas, como esta das bicicletas.
A continuar assim, os socialistas arriscam-se a que depois das bicicletas, vão os comboios e os aviões e que terminemos com um novo governo conservador.
Ser popular é o critério decisivo para se ganhar as eleições, mas se se quer ir mais além, nomeadamente dar à governação sentido e coerência, convém saber o que se quer fazer.
Uma séria reflexão sobre a submissão da esquerda democrática à lógica modernaça e panfletária, a reconsideração de prioridades, uma reflexão sobre a deriva clientelar e a irresponsabilidade financeira, a necessidade de controlar conflitos de interesses, a instituição de uma cultura que não permita a infiltração dos inimigos dos direitos humanos no centro do poder e a consideração dos verdadeiros desafios ambientais encontram-se entre os temas que me parecem prioritários.