As janelas fechadas. Escuro o quarto. A porta latia. Ausente. E o interruptor? Apalpei o soalho e buscava lentamente, alguma claridade que me ajudasse a despertar
23
Mais adiante já, esquinas dobradas, passagens várias como um surto perdido, o vento suando as bandeiras de cada poste, indo, eu, na mesma, numa passada impávida, normal, às vezes rápida, ou inconstante que importa, nada importa é óbvio, nada incomoda é claro, nada. Se o destino será descortinar absoluto nenhum? Parecem nascentes as luzes da ribalta baixa dos cantos da cidade, parecem rios invadindo todos os cantos, as águas díspares, vagas, rápidas e sobre as escadas, os passeios deslizam como brilhos, como as luzes, quando for noite, quando o escuro for dono de tudo. Abrir os olhos. Os olhos fechados. Esticar de novo os braços, sentir como se pode seguir, pedir ajuda a não sei quem, a qualquer um, gritar a todos, mesmo que a ninguém, respirar fundo a nauseabunda distância que fica entre mim e o meu esconderijo, seja meu quarto, ou que seja a um canto, onde moro, onde morei, onde morava enquanto longe, caminhava, seguia ate tirar de debaixo dos pés o alcatrão desta estrada, o areal deste mau estado, agora que seca após tanta água, agora sem água as ruas de novo sem nada, há gente ainda, haverá sempre, há quem passe ainda, como antes, que importou afinal, nada depois foi alterado, nada ficou modificado, nem o silêncio se apoderou calmamente dos cantos menos remotos desta vida antiga, nem a mercearia de velho Antunes, as vezes meu amigo, que nem sempre fecha as portas e os legumes ali, expostos a quem queira dali levar o que for alimento, ele venderá antes de partir, ate sua casa, ate ao seu lar, portas fechadas então, e sigo afinal.
Onde ficarei agora?
E tudo será como antes, de novo um princípio, sem que o anterior tivesse terminado. Como se tudo fosse à mesma hora, sempre na mesma, nada diferente, sei e sinto, nada se modifica que importa? Se tudo for rotina na mesma será, faça ou não por modificar os meus hábitos, os dos outros, sentir que em toda a gente nada ficou na mesma, sendo que na mesma se encontram os que antes eram assim, ainda assim, como eu, como tu, o regresso do velho Antunes, parece ser o mesmo dia, e é afinal a mesma hora, do dia seguinte, como o anterior, é o seguinte igual aos outros de todos os dias, sendo que sempre e a mesma hora, se abrem as portas da mercearia, que é como quem diz os cafés e demais rotinas deste e de outros lugares. Não sei de todos pois não é a todos que vejo, daqui não alcanço, mas sei que pelo que vejo não será diferente a vida de outros como este, lugares comuns da vida da gente que deambula sempre. Eu sim tu também, e quem se pode dar ao privilégio de não deambular também?
Parei por algures, onde entrar e beber, ingerir a essência ou a água da torneira, beber do vazio secando o copo, partir entre os dedos o frio que mata, a morte que estorva, empata, incomoda, as vezes vem cedo outras nunca, umas vezes leva erradamente quem não deve outras ninguém, quando deveria certamente e por obrigação, creio, alguém ter de partir, indo as suas costas, mal alojados, mal embalados, incomodados com a falta de qualidade com o transporte encomendado pela fatal dissidência dos donos do oculto, que nos levam as mãos e os pés não, que nos queiram incomodar e bem sequer ruídos fazem, Mas porquê então este silêncio? Bem, também não era suposto haver barulho só porque acabava de chegar o rastilho ou bagageira que leva daqui quem já não vive, sendo que esses já nada dizem, não se consegue ouvi-los, depois partem, nunca voltam, depois vão nunca mais os vemos, choramos os que amamos, criticamos os empecilhos que desta vida partem, Enfim, também não queria aqui ficar para semente… nem eu nem eles, mas deles existem mas memórias, eram chatos, vendiam contrabando, roubavam da igreja as hóstias do capelão, deixavam os bares com horrendos odores a bagaço barato, um bagaço vendido também com lucros de contrabando, dizem, dizem, apenas repito porque foi que ouvi, não inventei, não quero sequer que pensem que inventei, não foi, a verdade é, Estes bagaços não deviam ser vendidos, muito menos oferecidos, são de péssima qualidade e quantos já foram na ramona fúnebre, que ainda a pouco aqui esteve e levou alguns, às costas, mal embalados, sem roupa alguns, outros despidos, ficaram ainda por ai, os sapatos de outros, chinelos de ninguém, sim, agora já são de ninguém, pois quem os vira reclamar? Garantidamente ninguém, ninguém sabe de quem foram.
As janelas fechadas. Escuro o quarto. A porta latia. Ausente. E o interruptor? Apalpei o soalho e buscava lentamente, alguma claridade que me ajudasse a despertar, não sei se dormia, se acordado já, sentia mexer-me, sim, sinto que vivo, sim, mas não tenho mais certezas, não ouço ainda o carteiro, bater portas, entrar escadarias, não ouço da escola o sino, o chamamento às aulas, não vejo quem sou, onde estou. Procuro iluminar a minha alma, que me desperte de mim, me dê o que preciso, ao menos isso agora que penso, ter acordado, quero levantar-me, sair daqui para fora, ir à vida já que nada faço, imitar quem já fui ou quem nunca seria, a mulher de vestido abrasivo invade o meu quarto, não sei que vejo, se a ouço, de repente nada é, ou era ela, quem o sonho deixara em mim. E se desperto? Ainda, na mesma, nesta Lisboa de ruas onde passo, onde durmo, encosto o olhar desperto, se esta? Há ruído sim, sinto já, ouço, a calçada aberta a vida ávida, árida, de perfumes descalços amanhecidos a toa, sobre as árvores dum jardim, se da estrela ou Belém, que será? Onde será esta rua daqui? Se ao menos o velho Antunes, cada vez mais velho, mais velho coitado, a vida marcha, verdade, a vida não pára, é claro, por isso esta mais velho meu provável amigo e velho Antunes, na sua esplanada de couves e caixas, ocupa parte dos passeios e das pessoas que invadem a estrada, olhando num soslaio os automóveis bravos que giram velozes, mesmo não sendo permitido, incomodados também, mas que fazer enquanto o velho ainda ali possuir aquela bela mercearia?
Todas as manhãs. O mesmo cheiro. A mesma fantasia. E se caminho, claro, uma rotina, digamos, onde flutua em mim o pensamento que de mim, há nada mais a não ser qualquer fim, isso mesmo, que fim seja, desemboque nos palanques atónitos dos riachos estranhos, que não vejo, ou porque certamente não existem, se existirem, que importa ser mais uma coisa nesta série infinita de tantos nadas numa rua onde sinto ser o local onde me perco, mesmo que não seja só isso. Em recados, colocaria certamente diante dos meus dedos, os pedaços extravagantes e soltos da lua, os cinco cantos, ou cinco pontas, rastilhos, desbravando, apontando, furando, todos eles no mesmo sentido, entrando e rompendo, seguindo, as muralhas torpes do tempo, das orlas ou jangadas, os júpiteres escondidos e varridos e assolados, os radares do silêncio a água, que sob a janela escorre, em fileirinha numa arrufada segue, fielmente, uns atrás dos outros, num destino provável, improvável, consequente, impossível, onde se encharquem delinquentes os pés raçudos da vida, duros do caminho ainda ali e sempre, estrebuchando que seja, os lençóis amargurados os anzóis abandonados os olhares, ali, sempre, ali, onde se decompõe a heresia, os templários do vazio, a azia assaz, voraz silêncio… verbal desejo, de campinos ou estranhos, de pontes, onde dissiparei a onda dos meus olhos vedados de ignorância, verdades abafando-os, a tua mão que me cerca o regresso, impede o caminho, rompe das portas escondidas este nada eterno, sim… é onde certamente e quase paro, ao fim dos imensos quilómetros percorridos, que importa se mais ou menos, ralando-me para isso estou eu, apenas e só cansado… assado pela alma e pelas entranhas dos beijos varridos neste vendaval sub-reptício de regressos frequentes, a casa da minha mãe, quiçá, minha, ou jamais de quem quer que seja…
Mas recuando, voltando entretanto aquele momento em que me tentava levantar, as orlas secas… escuras as paredes, ainda me mexia, rebolava o frio do chão, marchava de costas contra as paredes que me feriam os dedos, trincavam as unhas, sem que conseguisse encher de gritos a refeição dos vizinhos, as portas deles se fechassem, abandonassem o lugar, abrissem os muros e saltassem, como atletas do Olimpo, do lindo e carnal vendaval de Janeiro em Atenas, onde estivesse, onde fosse, jamais me linchassem mais uma vez, como me fizeram sempre, como sempre me impediram de viajar, de ocupar os lugares secundários da nave que sobrevoava a longínqua loucura destas mortas e sedentas da merda que os mosquitos isentos ou ausentes, inexistentes ou impróprios do fantástico me devorassem com bicadas barifónicas, sentados como animais à mesa e suspirassem como gente na selva, os risos pardos de quem aspira um dia nada. Mais do que isto, será vulgar, todos aspiram melhor que o que em si houver, pouco ou mais, ninguém quer pouco ou menos, a não ser a pimenta, isso sim, que pica e aguça de raiva das sombras que invadem durante tanto sol, tanto som, tanto ruído… quem vem, quem vem? Ainda assim Ana, ontem nem sei já, quando em passos seguia a rua e via bem longe, nem sei, seria? Galgos de gritos em ti, serias? Hummm, nem sequer te deste ao trabalho de virar o pescoço, rodares os músculos quebrados dum pescoço que se ausentava, não olhaste, logo, não serias tu quem seguia a avenida da liberdade içando na voz a bandeira da liberdade…
De mãos dadas comigo.
Sem as mãos dadas e segui.
Fazia quase o frio da ausência dos meus mais belos sonhos…
A água dispersa ali era a do douro, seria, rio douro, enchendo… as lágrimas na lua, na rua, perdidas num inferno criado depois de nos amarmos… porque seria então só depois? Porque será que sempre que se amem os amantes não mais se sentem? Nem sempre, nem sempre, acredita!
Como aperitivo à deliciosa prosa de Vítor Burity da Silva, apresentamos novo capítulo do livro Ao Fundo Pitangas