O Ministério da Justiça divulgou recentemente a próxima criação de um balcão único com vista a garantir que todos os credores públicos com intervenção nos processos judiciais de recuperação de empresas tomem atempadamente e articuladamente posição.
O Ministério da Justiça é institucionalmente respeitável e esta ideia do balcão único, acolhida por sucessivos governos, aguarda há muito concretização. Mas percebe-se, embora o Ministério da Justiça não o diga, que a medida visa o Ministério das Finanças e os créditos fiscais, e, nesse sentido, podemos estar de volta a um cenário que obriga a recordar a criação do GACRE – Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas em 1996(i), já no ciclo de Guterres, e os anos que o precederam.
O Ministério das Finanças esteve de facto muito tempo adstrito a regras que lhe proibiam a livre disposição dos créditos da Fazenda Nacional, e sobretudo mostrou-se incapaz de em processos judiciais de recuperação de empresas, dialogar com os gestores judiciais e com os outros credores, incluindo os outros credores públicos, o que levou o CPEREF de 1993(ii) a consignar que em caso de não tomada de posição, os seus votos contariam como votos a favor, um pouco na linha da regra aplicada no plebiscito que aprovou a Constituição de 1933. Os Serviços de Justiça Tributária passaram a enviar aos representantes do Ministério Público nos tribunais um despacho-chapa, não recorrendo em caso de homologação pelo juiz de medidas de redução de valor ou de diferimento de pagamento de créditos fiscais, mas retomando os processos executivos nos tribunais tributários logo que aqueles deixassem de estar avocados pelos tribunais por onde corriam os processos de recuperação de empresas(iii).
Em todo o caso o Ministério das Finanças(iv) aproveitou o clima político para construir uma política proactiva no domínio da gestão de créditos, orientada pela ideia de facilitar a regularização das obrigações tributárias dentro da lei e simultaneamente flexibilizar a sua aplicação em situações ordinárias, por exemplo na aceitação de regimes prestacionais de pagamento e de dações em pagamento. Passou igualmente a recorrer de decisões judiciais de homologação de reduções do valor dos créditos decididos por uma maioria de credores que nem sequer eram os originários, como nos casos da Cerâmica Estaco, de Coimbra, e das Caves D. Teodósio, de Rio Maior. E tornou claro que os gestores judiciais que assumissem a administração de empresas durante os processos de recuperação estavam vinculados ao cumprimento de obrigações correntes, como no caso da Oliva, de S. João da Madeira.
O GACRE como balcão único?
Esta linha de orientação foi sendo estruturada no Ministério das Finanças em ligação com os serviços de Justiça Tributária e do Tesouro, e consolidada numa cooperação bilateral com o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social em reuniões informais nas 4 ªs feiras de manhã das equipas técnicas dos dois ministérios e aproveitando, deve dizer-se, o pessoal das finanças o trabalho dos técnicos da segurança social, a sua disponibilidade para atendimento dos gestores judiciais, a sua capacidade de diagnóstico da situação das empresas em processo de recuperação e a sua expertise na verificação do preenchimento da condição legalmente estabelecida de equiparação de renúncias entre credores públicos e privados.
No GACRE, que em termos de trabalho de linha apenas assegurou, para além do atendimento de empresas em dificuldades, a análise de candidaturas ao SGEEB – Sistema de Garantia do Estado a Empréstimos Bancários, cuidou-se sobretudo de explicar aos interessados a possibilidade de regularização de situações dentro da lei(v) e que não se negociavam dívidas. O Gabinete teve um papel importante na estabilização das perspectivas de actuação em matéria de recuperação de empresas e na defesa de criação de um processo “administrativo” e não jurisdicional de recuperação de empresas, defendido com muito mérito por António Curto (Economia), Beirão Amador (Segurança Social) e Ferreira Leite (Justiça) que teve o seu primeiro passo em 1998 com a criação dos Procedimentos Extrajudiciais de Conciliação e inspirou posteriormente outros mecanismos , e pela identificação da necessidade de financiamentos às empresas a recuperar que levou à criação de dois Fundos no universo do IAPMEI então gerido por Castro Guerra.
Então e as interferências políticas no tratamento das empresas em dificuldades ? Entre várias histórias pouco edificantes deixo aqui:
O caso de um grupo empresarial que estando numa negociação “global” com o Estado colocou a sua empresa mais endividada em processo judicial com a empresa mãe, também credora, como requerente, a qual com outros dois credores bancários ficou controlando a comissão de credores e destacou um quadro seu para gestor judicial apresentando em assembleia de credores um plano de regularização com condições que minavam a posição do Estado no processo global. Surpreendentemente o secretário de estado do núcleo político do Governo que assegurava a negociação com o grupo telefonou a um colega seu nas Finanças sugerindo-lhe que não fosse transmitida qualquer posição ao Ministério Publico, o que, no quadro legal ainda vigente equivaleria a um voto a favor.
Na altura ainda não existia GACRE mas já existia coordenação entre credores públicos e a diligência do secretário de estado do núcleo político – chamemos-lhe assim para não abrir a Caixa de Pandora – falhou inteiramente pois que Fazenda Nacional, Tesouro, Segurança Social e Turismo já tinham concertado entre si que se oporiam à proposta mas que não se oporiam a uma desistência de instância por parte da empresa mãe do grupo. E foi esta desistência de instância que acabou por acontecer.
Dias depois, por uma outra via totalmente diferente, chega-nos um pedido de informação sobre se estaríamos dispostos a não levantar dificuldades ao grupo se fossem pagas as dívidas à Fazenda Nacional? Em 7 ou 8 casos, nos 4 anos seguintes, nos fizeram a mesma pergunta e para o fim já pagavam essas dívidas sem perguntar, para irem tentar vender os seus esquemas a outros credores públicos. No entanto posso assegurar que nunca foram aceites propostas de pagamento de créditos fiscais que não envolvessem as dívidas ao Tesouro.
Com um balcão único institucionalizado talvez uma tentativa de pressão como a que descrevi tivesse tido mais hipóteses.
Dependeria como estivesse organizado. Mas o GACRE, que alguns desejariam desempenhasse esse papel, não era tal balcão único. E, no seu tempo, a coordenação espontânea entre credores públicos revelou-se superior a um qualquer balcão único de facto hegemonizado por um Ministério da Economia.
O pós-GACRE
Os seus limites de tal coordenação revelaram-se no entanto simultaneamente claros e inultrapassáveis. Se é certo que a adopção, durante alguns anos, de uma atitude proactiva por parte das Finanças em matéria de recuperação de créditos, revelou alguns bons quadros interessados nesta perspectiva, o essencial da actividade continuou centrado no processo executivo e em particular na constituição de penhoras, inúteis em caso de falência. Foi com algum espanto que aí por 2008/2009, tendo regressado por pouco mais de um ano a um dos Gabinetes, verifiquei que o regime de juros de mora desenhado em 1999, que incentivava a constituição voluntária de garantias ou o recurso à realização de hipotecas legais, “bonificando” o seu valor, não era aplicado(vi).
Do ponto de vista da coordenação formal Pina Moura, que transitoriamente reunira as pastas da Economia e das Finanças, aceitou atribuir funções de concertação de posições a uma estrutura de projecto interministerial – a Unidade de Auditoria para a Reestruturação Empresarial (AUDITRE) que seria extinta pelo seu sucessor nas Finanças, Guilherme Oliveira Martins entre muitas outras estruturas que trabalhavam e tinham pouca despesa ou nenhuma. Como por exemplo a Comissão de Reestruturação do Ensino Náutico. Mais um show-off de “economias”.
É certo que as Finanças colaboravam com a Segurança Social por exemplo nos procedimentos extrajudiciais de conciliação, mas não assinavam as actas. Era-lhes, parece, preferível, executar uma ordem com aparência de vir do exterior, do que assumir uma cooperação.
Balcão único, enfim?
Nos últimos anos em iniciativas realizadas antes e já depois da criação da APDIR – Associação Portuguesa de Direito da Insolvência e Recuperação .tem-se ouvido falar muito do Balcão Único.
Percebo a necessidade prática, mas teria preferido que se actuasse junto dos serviços do Ministério das Finanças para que tentassem definir ou redefinir uma estratégia de relacionamento com as empresas devedoras por forma a que a coordenação com outros credores públicos surgisse como naturalmente decorrente dos seus objetivos.
Quanto a possíveis fenómenos desviantes, é bom estar atento.
Notas
(i) Presidido por um representante do Ministério da Economia, e integrando também representantes dos Ministérios das Finanças, Solidariedade e da Segurança Social, Justiça, Agricultura e Qualificação e Emprego.
(ii) Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril.
(iii) O que mesmo dentro do Ministério das Finanças era, e bem, considerado questionável, e conduzia a impasses.
(iv) Estive na altura sucessivamente como adjunto do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais e como conselheiro técnico do Ministro das Finanças tendo representado o Ministério no GACRE mas assegurando simultaneamente a ligação aos serviços da DGCI e da DGT que integravam uma Comissão de Recuperação de Créditos criada no âmbito do Ministério.
(v) Um serviço de Finanças do Ribatejo enviava devedores ao GACRE dando a entender que este poderia construir soluções ilegais!
(vi) Decreto-Lei nº 73/99, de 16 de Março.