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Sexta-feira, Novembro 15, 2024

DES (dívidas e soluções)

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O anúncio, em finais de Agosto, que o FMI iria disponibilizar aos países-membros cerca 650 mil milhões de dólares para responder a necessidades urgentes de tesouraria, apresentado pela sua directora-executiva, Kristalina Georgieva, como uma oportunidade única no combate à pandemia, carece de explicações que enquadrem a medida e clarifiquem o seu verdadeiro alcance, algo que nem a imprensa especializada teve o cuidado de fazer.

Fazerem-se grandes parangonas com os 2,37 mil milhões de euros que o país vai receber do FMI e esquecer de referir que aquele montante, expresso em DES (os DES, ou Direitos Especiais de Saque, são a moeda escritural do FMI com valor baseado num cabaz de moedas nacionais como o dólar americano, o euro, o yuan chinês, o iene japonês e a libra inglesa) só pode ser convertido em divisas (moedas usadas nos pagamento internacionais) mediante empréstimos dos bancos emitentes dessas divisas, é, no mínimo, disfarçar o efeito final que tal “oferta” acarreta, que é, nem mais nem menos que uma outra forma de endividamento.

Apresentar esta iniciativa, como tem sido feito, não só esconde a sua natureza, como é gerador de falsas expectativas; a distribuição dos DES respeita o critério da proporção das quotas de cada país no FMI, ou seja, os países mais ricos recebem mais que os mais pobres, precisamente os que terão maiores necessidades. Entre os 190 países membros, os 55 países mais ricos receberão cerca de 375 mil milhões de dólares enquanto os 135 países em desenvolvimento vão partilhar 275 mil milhões de dólares, ou seja, cerca de 42% do total e um valor que representa menos de 8% da dívida pública externa e 25% do serviço da dívida pública externa a suportar pelos países em desenvolvimento entre 2020 e 2022; e estes são precisamente os países onde se registam maiores desigualdades de rendimento, o que reforça a injustiça na distribuição da “benesse”. Entre os mais pobres dos mais pobres – cerca de 30 países com 700 milhões de habitantes, para os quais o próprio FMI estima necessidades da ordem dos 450 mil milhões de dólares – serão distribuídos cerca de 20 mil milhões de dólares, montante que não chega a 4,5% daquela estimativa.

Mas esta aparente benesse terá ainda outro tipo de consequências, como por exemplo a do reforço da influência de uma instituição (o FMI) que, seja em consequência do seu funcionamento antidemocrático, seja pela imposição de soluções de marcado pendor neoliberal, reconhecidamente responsáveis pelo agravamento global das desigualdades sociais e económicas, tem falhado persistentemente desde a sua fundação ou por já se estar a preparar a redistribuição pelos países menos desenvolvidos de parte do bolo oferecido aos países mais ricos, num processo que mais não fará que agravar a situação de dependência dos primeiros – através de inevitáveis acordos estratégicos e comerciais firmados por baixo da mesa com os governos que estão manietados pela corrupção e pela sua situação crítica – e aumentar os ganhos dos mais ricos por via dos juros cobrados sobre os DES que o FMI lhes atribuiu gratuitamente.

Outra questão, não menos importante, é a do destino que cada país dará aos referidos DES, quando é sabido o enorme peso que tem o serviço da dívida nos países em vias de desenvolvimento e praticamente nada foi feito para aliviar esse fardo. Assim, quando a lógica dominante é a de preservar a confiabilidade nos mercados financeiros, é mais que provável que aqueles DES sejam prioritariamente usados para reembolsar directa ou indirectamente os credores, em claro prejuízo do objectivo da medida (contribuir para atenuar o impacto da covid-19) e das populações, sujeitas a uma conjuntura de crise que prejudica principalmente as mais vulneráveis.

Isto mesmo já foi revelado num estudo de dois especialistas do FMI (A COVID-19 aumentará a desigualdade nas economias de mercados emergentes e em desenvolvimento) que estimaram os efeitos da pandemia na expectativa de evolução das economias, confirmando o que já era empiricamente conhecido, com os agregados familiares de menores recursos a serem mais afectados e a registarem probabilidades de óbito bem mais elevadas, ou não estejam eles localizados em zonas de maior densidade populacional, sujeitos a trabalhos em sectores de actividade que não foram interrompidas durantes os confinamentos ou até impossibilitados de o fazerem por total dependência desses rendimentos.

Parte II

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