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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Portugal. Mitos e realidades

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Acabar com a mitologia da sagacidade do regime que manteve Portugal afastado da segunda guerra mundial parece-me um passo essencial para podermos olhar o futuro de forma diferente.

  1. ‘Portugal não tem direito a existir!’

De acordo com o ‘SAPO 24’: ‘O presidente da Sociedade Histórica da Independência de Portugal considerou (…) que o partido espanhol Vox deve um pedido de desculpa a Portugal pela “ofensa gratuita” através de uma publicação que ilustrava o território português anexado por Espanha’.

A anexação, que abrange também o Brasil, grande parte do território dos EUA e umas enigmáticas pinceladas na costa africana onde se situam países lusófonos, foi realizada, pelo segundo ano consecutivo, no contexto das celebrações ‘do dia da Hispanidade’, feriado nacional, instituído por Franco em 1939, na sequência da sua vitória na guerra civil, que pretende assinalar a chegada de Cristóvão Colombo à América a 12 de Outubro de 1492.

Paul Preston, num artigo intitulado ‘Franco e Hitler, o mito de Hendaia de 1940’ datado de 1992 dedicado a desmistificar essa invenção propagandística de uma suposta resistência de Franco a fazer parte do eixo na segunda guerra (invenção para a qual a ‘real-politk’ aliada foi decisiva) cita uma carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Franco a Ribbentrop, preparatória do encontro de 23 de Outubro em Hendaia, em que este afirma que ‘Portugal não tem direito a existir’.

Como o autor explica, foi a insistência de Franco no reconhecimento alemão da ocupação espanhola de possessões francesas em Marrocos e na Argélia (bem como a anexação de uma parte do Languedoc em França) que tornou o acordo impossível. Se acaso Hitler anuísse às exigências, as forças francesas nos territórios coloniais virar-se-iam para de Gaulle, abandonando Pétain.

Portugal não é sequer objecto de discussão, porque a sua invasão por Espanha não colocaria problemas essenciais a Hitler. Todo o mito criado pelo Estado Novo de que a colaboração com Franco teria assegurado a independência de Portugal é isso mesmo, um mito.

Foi a intransigência de Franco contra Pétain primeiro, o alastrar do conflito para os Balcãs por iniciativa italiana, e sobretudo a decisão de invadir a União Soviética que afastaram a ocupação de Portugal na segunda guerra, quer pela Espanha, quer pelo eixo.

  1. A operação Alacridade

Paralelo a esse mito é o de que a perspicácia e sagacidade do regime teria igualmente obstado a que Portugal entrasse na guerra pelo lado aliado. Na verdade, o único interesse estratégico dos Aliados em Portugal foi o da utilização dos Açores, e os Açores foram ocupados e utilizados na segunda guerra porque os Aliados assim o entenderam e independentemente da vontade do regime.

A operação Alacridade

O ‘Naval Institute Press’ norte-americano (tal como a Academia Naval, sediada em Annapolis, Maryland) publicou em 2004 um minucioso estudo de Norman Herz ‘Operação Alacridade’, pela qual as forças norte-americanas começaram a operar a partir dos Açores.

Como se descreve com pormenor no livro, as forças norte-americanas, depois de repetidas evasivas da diplomacia portuguesa, desembarcaram unilateralmente na ilha Terceira, onde foram recebidos com aplausos pela população e com as forças militares portuguesas a recusar-se a oferecer qualquer resistência contrariando as ordens expressas recebidas.

Só depois disso, a fim de salvar a face do regime, e por iniciativa britânica, se procedeu a uma retirada provisória das forças americanas, a sua substituição temporária por forças britânicas que depois cederam então de forma aceite pelo regime a sua posição às forças americanas onde como sabemos continuaram até aos nossos dias.

  1. Repensar Portugal

O mito da preservação da independência nacional por uma sagaz diplomacia nacional sobreviveu até aos nossos dias, não sendo seriamente questionada pelas nossas elites, e o problema maior no perdurar destes mitos é a ideia projectada para o presente de que a defesa do interesse nacional depende essencialmente da manha dos nossos dirigentes na sua capacidade para ‘levar os outros na cantiga’ que se projecta em temas como o da suposta mina dos fundos europeus.

Não é que a diplomacia não seja importante, que o é, como o é igualmente a capacidade de defesa, e mais ainda a vontade de defesa. A esse propósito, convém também olhar para outro dos mitos da segunda guerra mundial que seria o do respeito de Hitler pela neutralidade suíça, ou o seu interesse pelos serviços ocultos prestados ao abrigo dessa neutralidade.

A Alemanha tirou naturalmente partido da neutralidade suíça, como o fez igualmente da portuguesa ou sueca, ou mesmo da pseudo-neutralidade espanhola, mas a razão decisiva para não invadir a Suíça teve apenas a ver com o custo elevado que teria a invasão de um país montanhoso em que toda a população faz parte das forças armadas, com grande capacidade e vontade de resistir.

A operação Nazi ‘Tannenbaum’ para a invasão da Suíça a partir da Alemanha, Áustria, França e Itália para acabar com o que Hitler considerava o regime político mais desprezível da Europa (o mais genuinamente democrático) não foi levada para frente apenas por razões operacionais, e nada teve a ver com qualquer respeito pela neutralidade suíça.

O que é realidade e não mito, é que passados trinta anos do fim da segunda guerra mundial, dos três países que permaneceram neutrais nessa guerra, dois deles tinham ascendido à posição dos mais ricos da Europa, enquanto o terceiro permanecia no fundo da tabela económica da Europa ocidental.

Salazar distinguiu-se dos ditadores que lhe foram contemporâneos pelo seu nível intelectual – independentemente de se concordar ou não com ele, as suas obras sobre política agrícola e sobre a moeda foram notáveis na sua época – e mais ainda por o seu regime não ter atingido o nível de barbaridade dos seus contemporâneos. Não é possível colocar no mesmo patamar de selvajaria o Tarrafal ou o assassínio de Humberto Delgado com as valas comuns abertas em Badajoz para milhares de cidadãos, valas comuns que continuam a ser descobertas nos nossos dias um pouco por toda a Espanha.

Em matéria de direitos humanos, acho mesmo que os maiores crimes do regime na época foram o bloqueio da fuga dos refugiados judeus ou o repatriamento dos refugiados espanhóis para os pelotões de fuzilamento do outro lado da fronteira.

Posto isto, para além de outros traços comuns às ditaduras, Salazar partilha com Franco o culto da esperteza saloia, que se faz plenamente sentir na sua diplomacia anterior aos anos 1960. É extraordinário que seja exactamente sobre essa característica pouco notável e pouco recomendável do ditador que se baseiam os mitos que persistem entre nós.

E quem olhar para os dramas deste nosso pequeno canto que, apesar de Franco, Hitler e muitos outros, existe, o que mais chama a atenção é este culto do chico-espertismo mascarado de arte diplomática que se manifesta com a Dona Branca, com os banqueiros do regime ou agora com a cripto-vigarice, culto esse que tanto se alimenta dos mitos do passado.

Acabar com a mitologia da sagacidade do regime que manteve Portugal afastado da segunda guerra mundial parece-me um passo essencial para podermos olhar o futuro de forma diferente.

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