Na Divina Comédia de Dante, os avarentos e esbanjadores, assim como os fraudadores, têm lugar garantido nos círculos do inferno. Na vida real, quem esconde dinheiro fora do país não é sequer importunado. Mas Thomas Piketty insiste que é chegada a hora de mudar o sistema fiscal global.
O escândalo dos Pandora Papers revelou ao mundo como a riqueza secreta e os negócios de 35 líderes mundiais, além de políticos e bilionários expostos em um dos maiores vazamentos de documentos financeiros já ocorridos na história mundial. Ainda há mais de 300 funcionários públicos de diversas nações que surgem nos empresas offshore. Os paraísos fiscais são aqueles países que não tributam renda ou que têm alíquotas demasiadamente baixas, oferecendo vantagens a cidadãos estrangeiros que buscam pagar menos impostos e ter seu anonimato protegido. O que todos têm em comum? Eles sonegam impostos. Tiram dinheiro que deveria ser direcionado para as melhoria da Nação e do povo.
Na Divina Comédia, de Dante Alighieri, avarentos e esbanjadores são alojados no quarto círculo do Inferno. Já os fraudadores estão comprometidos a serem açoitados pela eternidade no novo círculo das profundezas do Reino de Satanás. Dos líderes políticos do mundo e altos servidores públicos, poderia-se esperar que viessem a público para explicar como entraram no esquema de sonegar impostos. O advogado Alfred Lortat-Jacob resume bem o que acontece: “Estamos testemunhando uma espécie de globalização da fraude”.
Nos papéis de Pandora, estão, entre muitos líderes, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, os presidente do Chile, Sebastián Piñera, e do Equador, Guillermo Lasso, bem como da República Dominicana, Luis Abinader. A papelada soma 11,9 milhões de arquivos, distribuídos em 2,94 terabytes de dados. O líder chileno já está sendo investigado após revelações de negócios chegarem ao conhecimento do Ministério Público. A oposição exige a demissão do presidente, que está em fim de mandato. Como reação, Piñera aumentou a repressão e declarou estado de sítio contra a comunidade indígena mapuche. No Equador, Lasso será investigado pelo Congresso. Ele assumiu o cargo em maio.
Na Europa, o escândalo rendeu dores de cabeça ao líder tcheco Andrej Babis e ao ministro holandês Wopke Hoekstra. Ambos também fizeram investimentos em paraísos fiscais. O partido de Babis perdeu na semana passada a eleição por curta margem para uma coligação de conservadores e liberais. O resultado inesperado surge depois dos escândalo revelar as offshores de Babis. Na Holanda, o ministro das Finanças, que se opôs à resposta solidária à pandemia, foi flagrado pelos Pandora Papers. Ele investiu mais de 26 mil euros num paraíso fiscal. Uma bagatela perto de políticos e altos funcionários públicos da América Latina.
Do Brasil, claro, figuram duas autoridades responsáveis pela condução da política econômica e monetária: o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Não estão sozinhos. Segundo o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, que trouxe o escândalo à tona, o Brasil é o quinto país com o maior número de pessoas citadas no Pandora Papers.
A imprensa brasileira faz de conta que não tem conhecimento da bomba, escondendo-a em pequenas notas distribuídas nos jornais nas últimas semanas. A denúncia não rendeu sequer uma manchete. Mas Guedes e Campos Neto terão de prestar esclarecimentos no plenário da Câmara. O que todo mundo quer saber é por que ambos têm dinheiro fora do país?
Explicações
Flagrado no esquema, Guedes demorou seis dias para se pronunciar, mas ainda não deu explicações. Limitou-se a dizer que está tudo na legalidade. E que se afastou da empresa, em nome da mulher e da filha. Ele tem depoimento marcado para terça, 19, , na Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara. O procurador-geral da República, Augusto Aras, também decidiu-se pela abertura de uma investigação preliminar sobre os investimentos no exterior do ministro e do presidente do BC.
O mundo começa a discutir o que fazer para pôr fim à farra dos paraísos fiscais, que atraem investimentos, dinheiro sujo da corrupção, do tráfico de drogas e da venda de armas, entre outros negócios suspeitos — além, claro, dinheiro da corrupção. Chegou a hora de agir, defende o economista Thomas Piketty, em artigo publicado no jornal francês Le Monde. “Ao renunciar a qualquer ambição em termos de soberania fiscal e justiça social, não fazemos senão encorajar o separatismo dos mais ricos”, denuncia.
Ele diz que os líderes das Nações precisam começar a discutir uma modernização da legislação tributária de cada país. “O problema básico é que continuamos, no início do século 21, a registrar e a tributar os bens apenas com base nas propriedades imobiliárias, utilizando os métodos e cadastros estabelecidos no início do século 19”, lamenta. “Se não criarmos os meios para mudar este estado de coisas, os escândalos vão continuar, com o risco de uma lenta desintegração do nosso pacto social e fiscal e a inexorável ascensão do cada um por si”.
A tese pode parecer exagero, mas nos últimos seis anos, revelações de contas secretas em refúgios fiscais em outras nações ocorreram sem que houvesse qualquer mudança. Em 2014, foram os “LuxLeaks”. Dois anos depois, vieram à tona os “Panama Papers”. Depois, em 2017, os “Paradise Papers”. Agora, são os Pandora Papers. Todos esses vazamentos mostraram como os mais ricos em cada nação continuam a sonegar impostos.
“Ao contrário do que por vezes se afirma, não há indicador fiável que nos permita afirmar que a situação melhorou nos últimos dez anos”, diz Piketty. “Antes do verão, o site ProPublica havia revelado que os bilionários americanos quase não pagavam impostos em comparação com seu enriquecimento e com o que paga o resto da população”, aponta.
Ele diz que os “Pandora Papers” indicam que os super-ricos conseguem evitar os impostos sobre seus imóveis, transformando-os em títulos financeiros domiciliados offshore. Foi isso que fez Tony Blair e sua esposa, ao adquirirem uma casa de 7 milhões de euros em Londres — evitando pagar 400 mil euros. Foi também com essa estratégia que o primeiro-ministro tcheco conseguiu comprar vilas na Côte d’Azur, controladas por meio de empresas de fachada.
Tributar, já
E o que fazer? Piketty abre o debate: “A prioridade deveria ser o estabelecimento de um cadastro financeiro público e a tributação mínima de todos os patrimônios, nem que seja para produzir informações objetivas sobre eles”. Segundo o economista, cada país pode mover-se imediatamente nesta direção, exigindo que todas as empresas detentoras ou operando bens em seu território divulguem a identidade de seus titulares e os tributem de modo transparente e da mesma forma que os contribuintes comuns.
O economista francês é autor dos livros “O Capital no Século 21”, “Capital e Ideologia” e “Tempo para o socialismo: despachos de um mundo em chamas, 2016-2021” — a ser publicado no próximo dia 26. Este último traz ensaios que lidam com as grandes questões de nosso tempo, desde a ascensão do Trumpismo e do Brexit à desigualdade de gênero e tributação da riqueza”. A obra é precedida por um extenso ensaio introdutório, no qual Piketty argumenta que chegou a hora de apoiar uma concepção inclusiva e expansiva do socialismo como um contrapeso contra o hipercapitalismo que define nossa ideologia econômica atual.
Fergus Shiel, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), também se mostra assustado com a escala das transações financeiras realizadas pelas offshores. “Nunca houve nada nessa escala e isso mostra a realidade do que as empresas offshore podem oferecer para ajudar as pessoas a esconder dinheiro duvidoso ou evitar impostos”, aponta. Os milionários, explica, estão usando os fundos offshore para comprar centenas de milhões de dólares em propriedades em outros países e para enriquecer suas próprias famílias, às custas dos cidadãos.
O fato de autoridades como Paulo Guedes e Roberto Campos Neto terem mantido suas contas offshore em paraísos fiscais revela muito como a elite financeira e empresarial do Brasil lida com dinheiro. Todo mundo sonega. Ou faz “planejamento tributário”. Pela legislação brasileira, ter uma offshore não é crime, desde que o saldo seja declarado à Receita Federal.
Mas, no caso do ministro da Economia e do Banco Central, a situação é distinta. De acordo com o Código de Conduta da Alta Administração Federal, funcionários públicos do alto escalão não podem manter investimentos no Brasil ou no exterior que possam ser afetados por decisões que eles venham a tomar em seus cargos. A vedação é para evitar conflitos de interesse. A deputada Natália Bonavides (PT-RN) aponta o claro conflito estabelecido.
Guedes e Campos Neto fazem parte do Conselho Monetário Nacional (CMN), responsável por emitir resoluções sobre temas relacionados a ativos mantidos no exterior. Além disso, os dois têm acesso a informações sensíveis relacionadas a flutuações nas taxas de câmbio e variação nas taxas de juros. De acordo com o ICIJ, o ministro aparece como dono de uma offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, conhecido paraíso fiscal.
A empresa de Paulo Guedes tinha um saldo de US$ 8 milhões em 2014. Em janeiro de 2019, quando assumiu o cargo de ministro da Economia, a empresa tinha saldo de US$ 9,5 milhões. Neste período, a desvalorização do real levou Guedes a embolsar nada menos que R$ 14 milhões. Sem precisar sequer promover investimentos. Sua política de desvalorização do real é um dos responsáveis diretos pela atual crise econômica. Mas Guedes está mais rico. Assim como Campos Neto. No Inferno de Dante, ambos se revezariam entre o quarto e o oitavo círculos. Curtindo as labaredas e os castigos. Mas isso só quando morrerem.
por Thomas Piketty, Diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI | Texto em português do Brasil
Fonte: Brasil247