No prazo de uma semana a Academia Brasileira de Letras (ABL) elegeu para ocupar as cadeiras dos “imortais” das letras e da cultura do país, a atriz Fernanda Montenegro, de 92 anos, e o multiartista Gilberto Gil, de 79 anos. A escolha de ambos significa uma mudança de postura dos acadêmicos para se tornar uma trincheira em defesa da democracia?
A escolha deles está sendo muito festejada pelos setores progressistas da sociedade porque “a eleição desses dois importantes artistas sinaliza a disposição de um vasto setor cultural de resistir ao fascismo”, argumenta o jornalista e escritor, Antonio Carlos Queiroz (ACQ).
Para ele, “agora a ABL é mais uma trincheira dessa luta, assim como o Prêmio Camões concedido ao Chico Buarque, assim como a valorização da música da Marília Mendonça (1995-2021) em confronto com o pessoal do sertanejo bolsonarista”.
Fernanda Montenegro analisa a crise na Cultura no desgoverno Bolsonaro
Marília Mendonça, que morreu em um acidente de avião no dia 5 de novembro, foi muito reverenciada pelo movimento feminista por representar uma das poucas vozes pela emancipação feminina e pela democracia nesse gênero musical bastante popular.
Javier Alfaya, secretário nacional de Cultura do PCdoB, afirma que a ABL “tem uma função de reconhecimento e formalização de alguns nomes da nossa cultura”, mas, “vem mantendo uma postura de conservação e pouca transformação da realidade” por se conduzir por “valores distantes da cultura brasileira”.
Lembrando que a escritora Conceição Evaristo, com uma grande campanha popular por seu nome, perdeu a eleição para o cineasta Cacá Diegues, em 2018. Ambos representantes de setores progressistas. “A ABL já mostrava sinais de aproximação com algo mais popular quando elegeu o escritor best-seller Paulo Coelho, em 2002”, analisa Francisca Rocha (Professora Francisca), secretária de Assuntos Educacionais e Culturais da Apeoesp e dirigente nacional da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). “talvez por marketing, talvez por intenção real de mudança”.
A Professora Francisca acredita ser “muito salutar para a democracia e para a cultura nacional a ABL participar mais ativamente da vida do país com integrantes democráticos e progressistas como Gilberto Gil e Fernanda Montenegro”. Gil que foi o melhor ministro da Cultura do país, de 2003 a 2008, no governo Lula.
ACQ diz nunca ter levado “a sério a ABL, por não ser uma entidade realmente dedicada ao cuidado com a língua brasileira” por ser “mais uma casa de convescotes políticos, abrigando muitos membros que não têm nada a ver com a literatura. Por isso me divertia muito com as gozações do Pasquim (jornal de oposição à ditadura, que durou de 1969 a 1991) contra o chá das cinco (ironia ao encontro semanal dos “imortais” para tomar chá)”.
Mas “A ABL é uma instituição que mobiliza setores da intelectualidade”, emenda ACQ. E “nos últimos tempos muita gente boa e progressista tem achado por bem disputar esse espaço”. Para Javier essa disputa pode ajudar a acabar com essa história de “imortais”, como “se os integrantes da ABL estivessem acima da realidade e sem dar importância a ela”.
Punk da Periferia (1983), de Gilberto Gil
A repórter Ana Clara Costa escreve na revista Piauí que “entre os membros atuais da ABL há apenas um negro, Domício Proença filho, e os antecessores são raros: além de Machado de Assis, que fundou a instituição, houve José do Patrocínio, Silvério Pimenta, Evaristo de Moraes Filho e Octavio Mangabeira, muitos dos quais não se classificavam como negros, como o próprio Machado. Em 2018, quando a escritora Conceição Evaristo pleiteou a vaga deixada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos por meio de um abaixo-assinado virtual, refutando o beija-mão tradicional regado a chá entre imortais, seu nome foi descartado. A atitude, considerada belicosa, fez com que a escritora recebesse apenas um voto, dado de forma simbólica para mostrar que sua candidatura havia sido apreciada – e não ignorada. Quem ganhou foi o cineasta Cacá Diegues, com 22 votos”.
Com muita justiça, Fernanda Montenegro e Gilberto Gil foram escolhidos por sua relevância cultural. O que pode significar uma tentativa da ABL de se aproximar da vida real do país. A Professora Francisca lembra que o extraordinário escritor Lima Barreto (1881-1992) morreu triste por ter sido preterido pela academia, muito por seu estilo inovador como por seu sarcasmo à hipocrisia. Então, “que os novos ventos transformem realmente a ABL numa trincheira pela cultura e pela liberdade”, conclui.
Texto em português do Brasil