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Sábado, Novembro 2, 2024

A Europa e as suas identidades

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A identidade europeia que nos fala é feita de diversidade; não pode esquecer os seus horrores nem as suas glórias; tem de ser capaz de se libertar do mandarinato institucional que pretende falar em seu nome, tem que ter lucidez, conseguir distinguir amigos de inimigos e perceber, aqui e agora o que deve servir para definir a Europa dos cidadãos europeus.

  1. A parábola do elefante

Na ‘parábola do elefante’, que conhecemos da mitologia indiana (eventualmente budista), quatro cegos encontram um elefante na floresta e definem-no de formas diversas, segundo as circunstâncias, e a parte do elefante que sentem. Foi essa parábola que me veio à cabeça a propósito do debate da ‘identidade europeia’ que entrou em peso na campanha eleitoral francesa pela mão de um articulista, presidenciável via écrans televisivos: Éric Zemmour!

Competindo no espaço da chamada extrema-direita que a moderação de Marine Le Pen deixou em aberto, Zemmour criou o seu partido – ‘Reconquista’ que quer fazer esse mesmo paralelo com a história que aprendemos na escola – atingindo o terceiro lugar nas sondagens.

As difíceis condições impostas aos candidatos presidenciais – precisam de ser propostos por 500 eleitos locais ou regionais – tornam difícil a Zemmour a repetição da estratégia de Macron, que contou com uma larga dissidência à esquerda e à direita nos partidos tradicionais que lhe trouxe os apoios institucionais necessários. Independentemente da ultrapassagem destes obstáculos, o tema da ‘identidade europeia’ ficará necessariamente no centro da campanha presidencial.

A ideia de que o jihadismo – ou mesmo o Islão – está a conquistar a Europa na repetição do que aconteceu a partir do século VIII, agora por via da migração de população de países muçulmanos, especialmente do Norte de África e da Ásia do Sul, tem sido alimentada por várias máquinas expansionistas, sendo entre elas, as mais importantes, a do clero iraniano e a da ‘Irmandade Muçulmana’.

Se é verdade que o financiamento de centros de doutrinação fanática pelos quatro cantos da Europa (o mesmo se passa na América, Ásia ou África) virados para a arregimentação dos migrantes de origem muçulmana é colossal (uma pequena amostra pode ser consultada nos ‘Qatar Papers’) e tem um claro objectivo imperial, reduzir o problema a isto, mais do que redutor, é contraproducente.

Não há qualquer razão objectiva para pensar que a generalidade dos muçulmanos que emigram para o resto do mundo o fazem para impor os interesses das classes dominantes dos seus países de origem. Alguns certamente que sim, e são recebidos de braços abertos por terem dinheiro e ou pela ideologia da pseudo islamofobia, que nos diz que devemos tomar como liberdade religiosa as manifestações de agressividade ou mesmo de terrorismo; mas pensar que isso acontece com a maioria dos imigrantes muçulmanos é não entender o que se passa no mundo muçulmano. A maioria desses cidadãos abandona os seus países para fugir à ditadura imposta pelas classes dirigentes, normalmente feita em nome do Islão.

O que é seguro, é que a ideia de que qualquer ser humano, por ser muçulmano, é necessariamente um agressor imperialista que quer conquistar o mundo, cortar o pescoço aos infiéis e escravizar as suas mulheres, casa em perfeição com a propaganda jihadista.

Longe de ser um antídoto, a lógica da guerra de civilizações – que dessa forma eleva ao nível de civilização a escroqueria organizada pelo fanatismo islâmico – é o complemento do discurso politicamente correcto que quer proibir o Natal para não ofender os muçulmanos e que desbarata dezenas de milhões de euros de financiamentos europeus a organizações jihadistas, que por golpe de mágica, passaram a encarnar os valores europeus, com o argumento de combate à Islamofobia.

Provavelmente, a razão principal pela qual a dupla franco-germânica resolveu suprimir da história a ‘identidade judaico-cristã’, que tinha surgido da primeira convenção sobre o futuro da Europa, foi o medo que teve de ter de enfrentar este falso debate sobre o Islão, Islão que obviamente contribuiu e contribui também para a identidade europeia, sem que por reconhecer essa evidência tenhamos que necessariamente nos vergar à vontade da teocracia iraniana ou à dos imãs propagandeados na versão em árabe da ‘Al Jazeera’.

A arma essencial utilizada entre nós pelo expansionismo jihadista não é por ora o terrorismo (embora dela não prescinda) mas é a do dinheiro, com a qual compra tudo, de políticos, a amantes do futebol, passando por jornalistas e mandarins das instituições europeias, sendo que se trata, de uma forma geral, de investimentos rentáveis, mesmo no plano meramente financeiro.

Sem entender isto, nada se percebe, e corremos o risco de contribuirmos para o sucesso do jihadismo ao ostracizarmos o anónimo cidadão muçulmano que se encontra entre nós, e ao conferirmos dignidade aos autóctones financiados pelo Jihadismo.

  1. A perseguição da Memorial

Mas não é só na Europa organizada nas instituições europeias que a identidade europeia se torna na grande questão política do momento. A proibição da mais famosa e importante organização russa de defesa dos direitos humanos, a ‘Memorial’, mostra até que ponto a ditadura de Putin tem uma necessidade absoluta de distorcer a identidade do seu povo e resolveu agora varrer o último vestígio de pensamento divergente na Rússia.

A Memorial foi responsável, literalmente, pelo desenterrar de inúmeros cadáveres das vítimas da ditadura soviética, nomeadamente o ‘Holodomor’, o genocídio da população rural ucraniana, e não é por isso de surpreender que, na altura em que Putin ameaça invadir o que ainda não invadiu da Ucrânia, a sua justiça considere intolerável que se recorde a verdade.

Putin, como todos os ditadores que o antecederam, sabe que o seu poder depende directamente da sua capacidade de conquista. E por isso denunciou Lenine pela divisão do Império russo em repúblicas, e por isso venera o clero ortodoxo fiel a Moscovo, e por isso suprime as críticas a Estaline.

Putin dedica-se ao cultivo – ou se quisermos, à invenção – de uma identidade, na qual pretende aprisionar o seu povo, suprimindo da história tudo o que possa dificultar essa tarefa.

A forma como o Ocidente entregou o Afeganistão aos talibã – para não falar da candura com que considera benzer o programa nuclear iraniano – levou Putin a entender que está perante a sua oportunidade de ouro para conquistar a Europa, ou seja, desfazer a NATO, impor a suserania à Europa Ocidental e ocupar por meios bélicos o que considera ser seu.

A China, que justamente considerou que o abandono do Afeganistão, país com o qual faz fronteira, foi o convite do Ocidente à invasão de Taiwan, tem-se mostrado mais calma, a meu ver, porque o expansionismo militar é incompatível neste momento com a sua doutrina fanática covidista, mas a situação pode evoluir a qualquer momento.

O que mais me impressionou em São Petersburgo – cuja construção é contemporânea da reconstrução pós-terramoto de Lisboa – foi o de constatar que as mesmas linhas arquitectónicas da baixa pombalina se desenhavam em artérias talvez umas dez vezes mais largas. Berlim, ou Madrid, igualmente capitais imperiais criadas do zero, é certo, em épocas anteriores, não se lhe comparam. Para Putin, é essa a identidade russa, uma Rússia que queria ver em São Petersburgo a capital de uma ‘Europa’ de Lisboa a Vladivostoque.

A Mãe Rússia – vendida muitas vezes entre nós e no Próximo Oriente – como a garantia da protecção da cristandade contra o Islão, tem com este uma relação instrumental; não hesita em realizar alianças táticas ou estratégicas com potências islamistas, mesmo dentro de fronteiras, onde alimenta o Emirato da Chechénia.

A dissolução ocidental no caldo da cultura do dinheiro torna-nos imensamente vulneráveis a todos os imperialismos, sendo que o de Putin, que se tornou mais agressivo nos últimos tempos, é apenas um entre outros.

  1. Identidades europeias

A Europa comunitária – que foi apadrinhada pelos EUA, e que neles se inspirou – surgiu da necessidade de fazer frente ao expansionismo soviético, sendo um instrumento paralelo e complementar ao da NATO.

Apesar disso, não deixou de apadrinhar uma série de ideias e de motivações pouco recomendáveis, como seja a da reinvenção do Império de Carlos Magno, quando o que há de mais relevante na história europeia pós-romana foi exactamente a sua capacidade para fazer vencer nações, ou seja, a diversidade, contra impérios (veja-se aqui Immanuel Wallerstein).

As Europas imperiais, da de Roma à de Hitler passando pela de Carlos Magno, dos Habsburgo, de Napoleão ou dos Czares, cultivaram a identidade europeia que lhes conveio, num continente inspirado pela mitologia grega, que no plano geológico não é um Continente, cujos ‘valores europeus’ mudaram constantemente (e de que os islamistas agora se reclamam!) e cuja definição física ou humana, variou também sem cessar.

Nestas circunstâncias, convém recordar que quando a primeira Comunidade Europeia foi criada, nos anos 1950, a Argélia fazia dela parte de corpo inteiro, englobando três departamentos em igualdade de circunstâncias com os do resto do território francês.

Como me acontece frequentemente, em caminhada pelos campos no Norte de França, desta vez, em Pargnan, na zona conhecida como ‘Caminho das Senhoras’, zona onde se desenrolaram sangrentas batalhas da primeira guerra mundial e que dá hoje nome também à aglomeração local de municípios, fixei a minha atenção nas tumbas, as inglesas junto da Igreja, de alguns soldados desconhecidos e outros que não tiveram tempo de ser conhecidos – um morto aos dezassete anos – e as francesas em enorme cemitério nacional, em que se destacavam os nomes árabes e as pedras tumulares muçulmanas, cemitério perto de ‘Chaouïa’ uma antiga pedreira transformada em quartel que tomou o nome a uma região marroquina de onde eram originários muitos desses soldados.

Da mesma forma tinha já retido a minha atenção o cemitério indiano, vizinho do português, na parte francesa da frente de batalha de Ypres, ou os cemitérios americanos do desembarque na Normandia, ou os alemães que igualmente se encontram um pouco por todo lado, ou mesmo o cemitério chinês, não longe do estuário do rio Somme onde os aliados desembarcavam mantimentos para a frente de batalha, recorrendo ao trabalho mal pago, recrutado frequentemente com falsas promessas entre jovens chineses.

É a Europa da guerra, do massacre de milhões de jovens de todas as origens e proveniências, cujo horror seria ultrapassado no entanto em apenas duas décadas pelos campos de extermínio de judeus e outros ‘indesejáveis’, levado a cabo pelos Nazis.

Mas a Europa foi felizmente também algo de diferente, como o recordei recentemente ao descobrir em Saint Guidon (antiga aldeia hoje parte de Anderlecht e portanto também de Bruxelas) a Casa de Erasmo que, vergonha a minha, nunca antes tinha visto, e onde sobressaíam as referências das suas viagens por Londres, Paris ou Basileia, numa Europa em que não se tinham ainda inventado os passaportes (e menos ainda os tenebrosos passes sanitários) e que se definia por uma língua franca, o latim, alguns princípios de um Estado de Direito e a aurora das luzes.

A guerra ideológica e militar que o Jihadismo desenvolve a Sul da Europa, com a teocracia iraniana a reivindicar a conquista de Beirute, Damasco, Bagdade e Sanaa e a aliança imperial Qatari-otomana a reivindicar Trípoli, não tem, obviamente, qualquer vocação de terminar na porta de Hércules.

Para as abencerragens que geram os nossos destinos e que acham que o programa nuclear iraniano se destina apenas a riscar Israel do mapa – mostrando que nada aprenderam com o holocausto da segunda guerra mundial – deveria ser óbvio que os massacres começam normalmente pelos judeus mas que nunca ficam apenas por aí.

O facto de Putin recorrer às suas supostas credenciais anti-jihadistas para nos convencer das suas boas intenções, de forma exactamente simétrica à utilizada pela propaganda jihadista para nos afiançar ser ela a garantia de resistência à invasão russa, não nos deveria impedir de pensar pela nossa cabeça, e de entender que a fraqueza e mesmo o delírio europeus são um convite a todos os maus da fita para que nos invadam.

A entrega do Afeganistão aos piores inimigos do Ocidente pela Administração Biden mostra que contar apenas com a protecção além-Atlântico para continuar o ‘business as usual’ pode ser a receita para o desastre.

A identidade europeia que nos fala é feita de diversidade; não pode esquecer os seus horrores nem as suas glórias; tem de ser capaz de se libertar do mandarinato institucional que pretende falar em seu nome, tem que ter lucidez, conseguir distinguir amigos de inimigos e perceber, aqui e agora o que deve servir para definir a Europa dos cidadãos europeus.

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