Professor Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República
Recordações
Há uns quarenta anos era-me habitual prestar atenção às mensagens de Ano Novo do Presidente da Republica, Almirante Américo Tomás, também conhecido por “Venerando Chefe de Estado”, o qual, tanto quanto me lembro, se articulava com o então Presidente do Conselho / Chefe do Governo para ser este a fazer as mensagens de Natal, evitando atropelarem-se no espaço mediático.
As mensagens de Tomás podiam ser divertidas (há quem hoje em dia ainda as evoque e aos seus textos), mas não eram politicamente inócuas: lembro-me de quando a propósito dos Censos de 1970 estralhaçou o Subsecretário de Estado do Planeamento Económico, João Salgueiro, que acabou por sair do Governo.
Não sei exactamente o que fazia nessa altura o agora presidente. Como recebia então o Boletim Ciências Administrativas do Instituto Português de Ciências Administrativas, lembro-me de algumas recensões que fez para este(i). E registo que, segundo Riccardo Marchi, o seu Movimento Académico Independente (MAI) financiado pelo Ministério da Educação Nacional, esteve para participar juntamente com membros do Centro Universitário e “militantes nacional revolucionários” num assalto a barricadas na Faculdade de Direito de Lisboa “no qual o MAI decide à última hora não participar”. Será que o único membro do MAI era o estudante Marcelo Rebelo de Sousa?(ii)
Posteriormente, como todos sabemos, fez carreira académica e política. Sei do que trata , por referência de outros autores, a sua tese de doutoramento em Ciência Política, mas apenas consultei a sua lição de Agregação, na altura em que estava a elaborar um relatório intitulado “O Conselho Nacional de Regulação do Ensino Superior – um caso de rejeição da Regulação ?” Quanto à carreira política, registo a sua oposição enérgica, talvez nem sempre direcionada ao essencial, ao Governo Guterres. A propósito, apercebeu-se que a convergência entre o PS e o CDS a propósito do acordo com o Grupo Grão – Pará teve a ver essencialmente com a circunstância de o Ministro, o Secretário de Estado e o empresário envolvidos serem membros da mesma Loja do Grande Oriente Lusitano ?
Em todo o caso sou leitor atento, não dos seus livros, mas dos seus prefácios, por exemplo ao Estudo e Ensino da Administração Pública em Portugal (coordenação de António F. Tavares) e ao Marcello Caetano – uma biografia política (autoria de J.M. Tavares Castilho)
O seu comentário televisivo semanal fui-o vendo como espectáculo que era, tomei nota quando perdeu com Ricardo Araújo Pereira, e posso dizer-lhe que foi dos últimos programas de televisão que eu deixei de seguir.
Comentador Geral da República
As presidenciais de 2016, que lhe deram o seu primeiro mandato como presidente não me despertaram especial atenção. Retive apenas um único debate televisivo, seguido num restaurante em que me encontrava para jantar durante uma deslocação, paragem do trânsito, entre Henrique Neto e Marisa Matias, pessoas que conservam a capacidade de acreditar em ideais. Uma ternura …
A sua vitória, para a qual não contribuí, não me surpreendeu. A minha grande dúvida era como é que o comentador inveterado se acomodaria à função presidencial.
Não se acomodou: subverteu-a. Ao longo dos últimos anos passou do comentário televisivo semanal para o comentário diário através de todos os canais. Falou de tudo. Interferiu obsessivamente. Na acção governativa criticou publicamente quando deveria fazê-lo com mais reserva. Deu respaldo quando não se justificava. Enfim, lá lhe foram dando um desconto.
Como sucede com os Presidentes protagonistas, no fim do mandato já o apoiavam na candidatura à recondução, num fenómeno de adesivagem com grandes tradições em Portugal, um coro de “socialistas presidenciais” como Adalberto Campos Fernandes e Eduardo Ferro Rodrigues.
Se não se tivesse recandidatado, a exemplo do que preconizou para a Procuradora – Geral da República e para o Conselheiro Presidente do Tribunal de Contas teria dado um grande exemplo. Mas seria o primeiro presidente da República pós-25 de Abril a fazê-lo.
Reconfigurador do sistema partidário
Olhando para o ano que passou, retenho dois acontecimentos em que esteve envolvido, para além de muitos outros que foi comentando, mas que provavelmente não ficaram na memória de ninguém: a sua reeleição em Janeiro, a dissolução da Assembleia da República no final do ano.
A reeleição decorreu num altura de agravamento da pandemia, em que seria legítimo mas não legal adiar o acto eleitoral, mas como o sucesso do recandidato (para o qual novamente não contribuí) já estava garantido, o não-adiamento não pôs de facto problemas de legitimidade política.
A dissolução era previsível, mesmo fatal, uma vez que não houve Presidente da República eleito no pós – 25 de Abril que, podendo exercer sem restrições o poder de dissolver a Assembleia, não a tivesse efectivamente dissolvido. O seu perfil, aliás, indicava ser extremamente provável que a dissolveria.
Concedo em declarações que foi fazendo sobre o fundo do seu pensamento sempre ligou a estabilidade da solução política conhecida por geringonça à sua capacidade para fazer aprovar orçamentos. Aí foi coerente com a orientação que deu para a abstenção do seu Partido na votação do Orçamento sob o primeiro Governo de António Guterres.
Só que, qualquer que fosse o seu pensamento enquanto deputado constituinte, a Constituição da República Portuguesa não liga a não aprovação dos Orçamentos sequer à subsistência do Governo, quanto mais à obrigatoriedade de dissolução.
Como tive ocasião de explicar a alguns interlocutores mais preocupados, tanto o Orçamento de 2020 poderia funcionar em 2021 por duodécimos sem grandes problemas, como o Orçamento de 2021, muito reforçado, poderia entrar em vigor por duodécimos, como estamos a ver.(iii)
Aliás a Lei de Enquadramento Orçamental para dar estabilidade ao processo orçamental e evitar que se caia numa instabilidade típica da I República, prevê formalmente a apresentação de uma segunda proposta do Orçamento.
Assim, temos de concluir que a sua intenção ao anunciar a dissolução em caso de rejeição da primeira proposta de Orçamento foi manifestamente criar instabilidade, para levar a uma reconfiguração do sistema partidário.
Não penso que lhe devamos estar gratos por isso.
Dentro do Partido Socialista verificaram-se reacções muito diversas, desde a de Ferro Rodrigues que funcionou como um moço de recados junto dos Grupos Parlamentares para preparar a dissolução, às das personalidades, designadamente académicos que exigiram a apresentação da segunda proposta de orçamento, a negociar à esquerda ou ao centro. António Costa, mais reservado, declarou-se aberto a vários cenários mas acabou por cooperar na dissolução, julgo que para evitar o ferrete da demissão do Governo cumulativa com a dissolução.
Também aqui não me parece que a sua acção tenha dignificado as instituições democráticas.
Hipocondríaco reformado?
As suas recentes declarações a Lusa mostram-no convicto de que as eleições se farão em piores condições sanitárias que as presidenciais de há um ano, mas que as câmaras terão maior capacidade de garantir a votação dos eleitores confinados.
Deixou de ser hipocondríaco?
Votar em eleições passou ser só uma questão de ver televisão e ser transportado até às urnas?
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Na verdade, vive-se uma situação complexa, tanto à esquerda como à direita (perdão, ao centro), que exigiria que os eleitores saíssem de suas casas, se entre visitassem e falassem entre si.
Longe de refrescar a legitimidade da Assembleia e do Governo que a partir dela se vier a formar, as presentes eleições não darão aos eleitores condições para formarem democraticamente a sua vontade.
Até porque parece insensato o anúncio de António Costa que se demitirá de Secretário – Geral do PS se não tiver maioria absoluta dos deputados. E se ficar muito perto e se demitir? Adalberto Campos Fernandes candidata-se a Secretário-Geral?
E o que farão a Rui Rio se perder?
Raramente terá havido tantas razões de peso para a abstenção.
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Por mim, votarei, e, já que não nos deixam trocar impressões e esclarecer dúvidas, manterei o meu voto das últimas legislativas.
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Apesar das dúvidas, com duas certezas:
Se os resultados eleitorais forem no sentido de reforçar o protagonismo do actual Presidente da República estaremos certamente mal.
Precisamos de um Presidente que fale menos e que interfira menos.
Feliz Ano Novo
Notas
(i) Tenho neste momento nas mãos o Boletim nº 7.
(ii) Império, Nação, Revolução – As Direitas Radicais Portuguesas no Fim do Estado Novo (1959-1974).
(iii) Não posso deixar de denunciar aqui a campanha que alguns socialistas militantes das redes sociais fizeram imediatamente após o anúncio da dissolução, proclamando que como resultado da rejeição do Orçamento não iria haver actualização do salário mínimo e das pensões, aumentos de função pública, investimentos do PRR., etc.