A ideia do avolumar dos sinais de uma mudança no paradigma monetário internacional não é recente (já em meados de 2019 o abordei aqui no TORNADO), nem deve constituir novidade para quem procure manter-se informado sobre o Mundo que nos rodeia.
Desde a queda do Muro de Berlim, que em 1989 marcou o início do fim da União Soviética e da euforia norte-americana do «fim da história» e do epítome do sistema capitalista, que não deixaram de surgir fissuras, algumas dramaticamente grandes e profundas como a originada pela Crise Sistémica de 2008. Por debilidade própria ou por acção de terceiros (principalmente chineses, russos e a heterogénea corrente islamita) a hegemonia político-militar norte-americana, que começou a ser quebrada em 1975 com a retirada de Saigão e o fim da Guerra do Vietname, terá atingido no ano passado, com a retirada do Afeganistão (uma invasão concretizada para a eliminação da Al-Qaeda, para a qual nunca foi cativado o vizinho Paquistão entretanto atraído para a esfera de influência chinesa), o seu ponto mais baixo, quiçá irreversível; também no plano económico a ultrapassagem pela economia chinesa está para breve (se é que não se verificou já, como pretende o Our World in Data e o The World Factbook, que para dados previsionais de 2020 estima um PIB em paridade de poder de compra chinês superior ao norte-americano), restando o refúgio da hegemonia financeira.
Sempre previsível, mas sempre adiado, o fim da hegemonia do dólar norte-americano será uma questão de tempo. Poderá não assumir o mesmo aspecto bombástico da retirada de Cabul nem encher o prime time dos canais de televisão, mas o equilíbrio de forças e especialmente a resposta à necessidade de sair da espiral gerada pela flexibilização quantitativa, agora que a inflação parece estar de facto de volta, aponta claramente para uma diminuição da influência do dólar norte-americano na economia mundial e no cenário geopolítico internacional.
E não é só a resolução do quantitative easing, que preocupará o banco central norte-americano (Fed) pois a par daquele problema junta-se a necessidade de gerir equilibradamente a questão dos petrodólares – e aqui, além do problema puramente económico-financeiro e o da importância geoestratégica da região do Médio Oriente, apesar de uma progressiva substituição dos hidrocarbonetos como principal fonte energética, entronca mais uma vez a questão islamita – e a expansão das criptomoedas no cenário financeiro internacional, apesar das recentes notícias menos agradáveis.
Sabido que o poder norte-americano se apoia desde meados do século passado na superioridade de seu poderio militar e na incontestada influência internacional da sua moeda, factores consolidados ao longo da Guerra Fria que depois desta entraram em claro declínio com o crescimento da contestação da sua hegemonia e até com a degradação do seu tecido social interno. O processo histórico evoluiu e outros poderes surgiram e surgirão.
De momento o principal concorrente dos EUA é a China, mesmo subsistindo a grande dúvida sobre as hipóteses de globalização do modelo chinês (ou o que quer que isso signifique…), seja pelas suas características intrínsecas – a conjugação de um modelo de economia capitalista com o que restará de um modelo de planificação económica – seja pelo que está a resultar dos ensaios dos modelos de economias iliberais e populistas. Isto sem esquecer que a organização das sociedades (com especial destaque para as de modelo ocidental) está a ser influenciada pela actuação das grandes empresas transnacionais do digital (os gigantes da web, Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, também conhecido como GAFAM e que dominam o mercado digital), com resultados e consequências que carecem ainda de esclarecimento cabal.
Com mais dúvidas que certezas, salvo a de que tarde ou cedo assistiremos ao fim do reino do dólar norte-americano, é bem provável que este não aconteça num grande e espectacular evento – se a retirada de Cabul foi perfeitamente caótica que poderemos esperar num sistema financeiro mundial completamente dependente de uma única e cada vez mais frágil moeda – que até lá se registem múltiplos episódios de resistência, entre os quais novos ataques à moeda europeia (como os registados há uma década) que sirvam para desviar as atenções e tentar adiar o inevitável.