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Sexta-feira, Novembro 22, 2024

1928: O primeiro orçamento de Salazar

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Os anos a seguir à I Guerra Mundial foram, em Portugal como em outros países, anos difíceis do ponto de vista político, económico e social. Passaram em grande parte para a nossa memória colectiva como anos de ingovernabilidade política e de indisciplina financeira de que, diz a lenda, fomos resgatados por António de Oliveira Salazar que nos salvou vindo fazer no Governo aquilo que ensinava em Coimbra(i).

Que verdade existirá nisso?

A crise dos anos 1920 e as propostas de solução. O Governo Álvaro de Castro e os governos subsequentes.

Os anos pós-Guerra e pós – Sidónio Pais caracterizaram-se no plano político por uma tentativa de criação de um grande partido da direita republicana que pudesse ser uma alternativa ao eleitoralmente hegemónico Partido Democrático e mais tarde por um grande activismo político das “forças vivas” mas tanto à direita como na área democrática se registaram fenómenos de fragmentação que facilitaram a formação, mas também a queda de governos de curta duração, para não falar da irupção de movimentos apoiados em sectores específicos da oficialidade das forças armadas, cujos efectivos haviam crescido durante a Guerra, ou da Guarda Nacional Republicana, reforçada a partir da contenção das revoltas monárquicas do pós-sidonismo.

No plano económico, o pós I Guerra Mundial assistiu a uma forte desvalorização do escudo em relação à libra esterlina, e a uma forte inflação, que degradaram a situação das Finanças Públicas quer pela não actualização do valor das receitas, quer pelo empolamento do valor da despesa.

No plano social registaram-se movimentos reivindicativos de alguma amplitude, potenciados pelo aumento dos preços das subsistências e pela degradação do poder de compra dos salários da função pública, começando os falsamente timoratos a falar de “bolchevismo” a propósito de propostas parlamentares todavia minimalistas.

Entretanto considerava-se preocupante, quer à esquerda quer à direita, a “inflação orgânica” e o crescimento de efectivos que vinham afectando a generalidade dos Ministérios.

Em Dezembro de 1923 um Congresso das Associações Comerciais e Industriais de Portugal pronuncia-se sobre a necessidade de redução das despesas públicas (e contra o agravamento da fiscalidade directa, decorrente da Lei nº 1 368 sobre o regime tributário, que o Congresso aprovara no ano anterior sendo Ministro das Finanças o  democrático Vitorino Guimarães). Haviam apresentado comunicações António de Oliveira Salazar (muito sóbria), Armindo Monteiro (muito extensa e com inúmeras propostas de concretização, um “verdadeiro programa de governo” diria um dos participantes) e mais tarde, perante a Associação Comercial Portuguesa e em Janeiro de 1924, Fernando Emygdio da Silva, na linha da apresentada no mês anterior  por Armindo Monteiro, mas insistindo na “revisão” das despesas mais do que em propostas concretas de redução.

Estão aí esboçadas algumas linhas de força de um programa financeiro de direita, e o Congresso é inaugurado com a presença do presidente do Ministério Ginestal Machado, líder do Partido Republicano Nacionalista, mas a redução do défice – com aumento da receita pública e redução de despesa / redimensionamento da Administração fez também parte da agenda do Governo Álvaro de Castro(ii), formado em Dezembro de 1923 a partir de uma dissidência dos Nacionalistas, que obtém o apoio de parlamentares do Partido Democrático e de gente ligada à Seara Nova, e subsiste até Julho de 1924.

Álvaro de Castro, que assegurou simultaneamente a pasta das Finanças, arrancou com um conjunto de medidas de redução e extinção de diversos órgãos e serviços e perspectivou a elaboração de um orçamento para 1924/25 com uma redução de 20 % do défice em relação ao do ano anterior, criando-se para o efeito Comissões de Economias em todos os Ministérios e uma Comissão Central de Economias na Presidência do Ministério. Criou igualmente mecanismos de controlo de câmbios que limitaram a exportação ilícita de capitais e a desvalorização da moeda.(iii) (iv)

O Orçamento de Álvaro de Castro chegou a ser apresentado mas não foi votado, no entanto os Governos que se seguiram(v), revertendo algumas medidas, mantiveram no essencial a mesma orientação em matéria financeira, permitindo a Phillippe Schmitter afirmar:

As reformas fiscais de 1924 foram bastante “progressistas” e bem sucedidas e na altura em que a República foi derrubada o equilíbrio orçamental melhorara consideravelmente.(vi)

Salazar à procura da sua oportunidade

Como já tive ocasião de referir a partir de edições das suas obras organizadas por Nuno Valério e por Manuel Braga da Cruz, António de Oliveira Salazar é nesta altura basicamente um economista que começa a fazer-se notar em Coimbra pelos seus escritos sobre fiscalidade. As suas Lições de Finanças apresentadas em 1922 a partir de apontamentos colhidos por João Pereira Neto reflectem, como dá conta Valério as doutrinas clássicas da minimização e do equilíbrio do orçamento. No entanto, num ou outro traço Salazar contudo sobressai:

  • na sua comunicação ao Congresso de Dezembro de 1923 dá prioridade ao combate à desvalorização do escudo, mas afirma que esse objectivo exige não só a redução das despesas públicas mas também a das despesas privadas;
  • considerado após o 28 de Maio de 1926 como uma das competências que a ditadura chamou ao Governo, mas afastando-se do Ministério das Finanças logo que a crise Mendes Cabeçadas – Gomes da Costa, mostrou que ainda não havia estabilidade, António de Oliveira Salazar é chamado posteriormente para presidir enquanto antigo Ministro a uma Comissão de Estudo do Sistema Tributário que juntou quadros da administração fiscal e dirigentes das forças vivas, ou seja uma missão que fazia apelo às suas competências enquanto fiscalista, não enquanto especialista em orçamentos;
  • na presidência dessa Comissão, Salazar contra a opinião talvez da maioria dos seus membros bateu-se pela continuidade do imposto pessoal sobre o rendimento, criado por Vitorino Guimarães e considerado por ele característico dos povos civilizados, que deveria ser substituído durante três anos por um imposto complementar, reagiu publicamente contra a sua extinção pura e simples por decisão do Governo da ditadura, mas não promoveu a sua recriação quando foi em Abril de 1928 chamado ao Governo;
  • foi-lhe confiada a reestruturação da Caixa Geral de Depósitos que foi publicada em Diário do Governo pouco tempo antes do seu regresso a Ministro;
  • aproveitando a deterioração da situação orçamental sob os dois primeiros governos da ditadura recusa ao que parece a hipótese de vir a ser presidente da Junta de Crédito Público e critica o cenário de contracção de um grande empréstimo externo patrocinado pela Sociedade das Nações antes que a gestão orçamental do Orçamento garanta o equilíbrio;
  • a recusa das condições da Sociedade das Nações para apoio ao empréstimo e a tomada de posse de Carmona como presidente da República eleito pelo voto popular levam à predisposição para a adopção de medidas financeiras drásticas do lado das receitas e do lado das despesas(vii) e à chamada ao Governo como Ministro das Finanças deste António de Oliveira Salazar cuja experiência de gestão de Orçamentos não tinha até essa data sido experimentada.

E como procede Salazar depois de ter assegurado por parte do Conselho de Ministros a concessão de uma ditadura financeira de três anos?

Promovendo a criação de Comissões de Reforma Orçamental em todos os Ministérios e de uma Junta de Reforma Orçamental, formada pelos presidentes das Comissões, no Ministério das Finanças com vista a preparar o Orçamento das Despesas de 1928/29(viii) e a desenvolver outros projectos.

Ou seja, a solução seguida há cerca de quatro anos por Álvaro de Castro, só que este era simultaneamente Ministro das Finanças e Presidente do Ministério mas dependia de uma maioria parlamentar que lhe fugiu, e Salazar era ministro de José Vicente de Freitas numa ditadura que prescindira do parlamento.

O primeiro Orçamento e as primeiras Contas

A fortuna sorri aos audazes, poder-se-á ter dito de Salazar que, tendo apresentado um Orçamento superavitário em 1 000 contos, acabou por apresentar uma conta superavitária em 285 mil contos.

Uma parte da diferença é explicado por um aumento da receita gerada pelo incremento da actividade económica, apenas 60 mil contos se devendo à criação de um novo imposto indirecto denominado “taxa de salvação nacional”. Só este último acréscimo, explica Salazar, deve ser considerado um sacrifício adicional para o contribuinte, hoje em dia discutir-se-ia se houve ou não aumento de carga fiscal.

O total da receita orçamentada era de 1 919 388 contos.

Do lado da despesa verificou-se uma execução abaixo do orçamentado em cerca de 30 mil contos, mas houve necessidade de reforçar o orçamento em 40 mil contos através da abertura de um crédito especial.

A quanto montaram os cortes sugeridos pelas Comissões de Reforma Orçamental e pela Junta que reunia os seus Presidentes? Escreveu Salazar que as reduções de despesa introduzidas por proposta das comissões andariam por 140 mil contos, cuja repartição por Ministérios indica. O total das despesas após a introdução dessas reduções andaria por 1 917 811 contos, ou seja, em termos médios as reduções andariam pelos 6,8%. No entanto o Relatório da Junta da Reforma Orçamental, aliás publicado no Diário do Governo, inclui uma série de sugestões relativas a supressões de serviços, redução de remunerações e modificação do regime contratual insusceptíveis de produzirem efeitos no horizonte de um ano.

No Decreto com força de lei nº 15 465 de 14 de Maio de 1928 publicado como Reforma Orçamental, e reforçado por orientações aprovadas em Conselho de Ministros, o qual criava as Comissões e a Junta, as sugestões quanto à forma de assegurar o equilíbrio de receitas e despesas ordinárias

Art. 38º Serão feitas nos Ministérios e suas dependências , no prazo máximo de quarenta e cinco dias, reduções e eliminações de despesa com pessoal, automóveis, telefones e outros, de modo a ficar equilibrado o orçamento de receitas e despesas ordinárias.

denotavam alguma ligeireza, e os prazos do Artigo 43º afiguram-se francamente irrealistas:

Art. 43º As comissões de reforma orçamental terão por atribuições, cada uma no seu Ministério:

1º Preparar as reduções a que se refere o artigo 38º;

2º Indicar as instituições, repartições e serviços que devem ser extintos, por se poderem dispensar definitiva ou transitoriamente;

3º Formular as reduções que se possam fazer nos quadros restantes;

4º Propor quaisquer outras reduções de despesas;

5º Elaborar quaisquer projectos de que sejam encarregadas pelo Governo, com o objectivo de reorganização dos serviços e equilíbrio do orçamento.

único. Os trabalhos a que se referem os nºs 1º, 2º, 3º e 4 º devem ser apresentados até trinta dias depois de instaladas as comissões.

Em todo o caso Salazar terá trabalhado com cada uma das Comissões e acertado as propostas de corte orçamental que nalguns casos revestiram a forma de adiamento das intenções de despesa.

Terá havido eliminação de empregos e dispensa liminar de trabalhadores(ix) – as instruções do Conselho de Ministros permitiam-no em certas situações – e eliminação de subsídios a entidades privadas, como previam as orientações estratégicas anunciadas aos jornais:

 A política anunciada no decreto que os senhores hoje publicaram traduz uma política fundamentalmente financeira que visa nitidamente três objectivos

  1. o equilíbrio do orçamento a todo o custo;
  2. a concentração da potência financeira nas mãos do Estado;

e finalmente o aproveitamento dessa potência financeira para fins predominantemente de serviços públicos

Não é fácil reconstituir como foram aplicadas, na medida em que os investigadores que tentam consultar os Relatórios das Comissões de Reforma Orçamental não os encontram nos arquivos do Ministério das Finanças.

Louvando a acção das Comissões de Reforma Orçamental, o Ministro acabou por reconhecer que tinham tido pouco tempo para trabalhar e avançou em 1929 com a criação de uma estrutura de índole totalmente diferente – A Intendência-Geral do Orçamento.

 

Notas

(i) Este é o primeiro de três artigos que publicaremos sobre a criação, em 1929, da Intendência Geral do Orçamento que nunca seria instalada mas também nunca foi extinta, subsistindo na lei até 1996, isto é 22 anos após o fim do regime que assistira ao seu nascimento.

(ii) Álvaro de Castro encabeçara um grupo de “Reconstituintes” que o acompanhou do Partido Democrático para o PRN e sairá deste em 1923 formando o Grupo Parlamentar da Acção Republicana. Viria a falecer em 1928.

(iii) Sobre este período, é útil consultar Guilherme de Oliveira Martins, O Ministério das Finanças. Subsídios para a sua História no Bicentenário de Criação da Secretaria de Estado de Negócios da Fazenda, 1988, e Luís Farinha, Cunha Leal, Deputado e Ministro da República – Um Notável Rebelde, 2009.

(iv) A exportação de capitais por via das transações com o exterior explicava que uma grande parte dos detentores dos títulos de dívida pública externa fossem portugueses.

(v) De Alfredo Rodrigues Gaspar, de José Domingues dos Santos, de Vitorino Guimarães e até o de António Maria da Silva que, à frente do Partido Democrático, teve Armando Marques Guedes como Ministro das Finanças.

(vi) Portugal: do Autoritarismo à Democracia. Entenda-se “fiscais” no sentido de “orçamentais”.

(vii) Incluindo a extinção de estabelecimentos de ensino superior, como a Faculdade de Direito de Lisboa, que terá de ser revertida já com Salazar no Governo, como aqui já tive ocasião de explicar.

(viii) Na altura o ano financeiro, recorde-se, tinha início em 1 de Julho e conclusão em 30 de Junho.

(ix) Num texto posterior Salazar, sem quantificar, afirma que nesta fase muitos efectivos foram colocados a aguardar aposentação.

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