A proteção da privacidade evoluiu historicamente para garantir segurança. É a luta por ela que obrigará as novas tecnologias a engendrar meios para proteção de dados.
por Laura Brandimarte e Alessandro Acquisti, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier
Muitas pessoas pensam na privacidade como uma invenção moderna, uma anomalia possibilitada pela ascensão da urbanização. Se fosse esse o caso, então concordar com a atual erosão da privacidade pode não ser particularmente alarmante.
À medida que os pedidos do Congresso para proteger a privacidade aumentam, é importante entender sua natureza. Em um resumo de política na Science, nós e nosso colega Jeff Hancock sugerimos que entender a natureza da privacidade exige uma melhor compreensão de suas origens.
Evidências de pesquisa refutam a noção de que a privacidade é uma invenção recente. Embora os direitos ou valores de privacidade possam ser noções modernas, exemplos de normas de privacidade e comportamentos de busca de privacidade abundam em todas as culturas ao longo da história humana e em toda a geografia.
Como pesquisadores de privacidade que estudam sistemas de informação e pesquisas comportamentais e políticas públicas, acreditamos que levar em conta as potenciais raízes evolutivas das preocupações com a privacidade pode ajudar a explicar por que as pessoas lutam com a privacidade hoje. Também pode ajudar a informar o desenvolvimento de tecnologias e políticas que podem alinhar melhor o mundo digital com o senso humano de privacidade.
As origens nebulosas da privacidade
Os humanos têm procurado e tentado gerenciar a privacidade desde o início da civilização. As pessoas da Grécia antiga à China antiga estavam preocupadas com os limites da vida pública e privada. O chefe masculino da casa, ou pater familias, nas antigas famílias romanas, fazia seus escravos moverem seus berços para algum canto remoto da casa quando ele queria passar a noite sozinho.
A atenção à privacidade também é encontrada nas sociedades pré-industriais. Por exemplo, a tribo Mehinácu na América do Sul vivia em acomodações comunais, mas construía casas particulares a quilômetros de distância para que os membros alcançassem alguma reclusão.
Evidências de um impulso para a privacidade podem ser encontradas até mesmo nos textos sagrados das antigas religiões monoteístas: as instruções do Alcorão contra espionar uns aos outros, o conselho do Talmud de não colocar janelas sobre as janelas dos vizinhos e a história bíblica de Adão e Eva cobrindo suas nudez depois de comer o fruto proibido.
O impulso para a privacidade parece ser simultaneamente culturalmente específico e culturalmente universal. Normas e comportamentos mudam entre povos e épocas, mas todas as culturas parecem manifestar um impulso para isso. Estudiosos do século passado que estudaram a história da privacidade fornecem uma explicação para isso: As preocupações com a privacidade podem ter raízes evolutivas.
Por essa conta, a necessidade de privacidade evoluiu das necessidades físicas de proteção, segurança e interesse próprio. A capacidade de sentir a presença de outras pessoas e escolher exposição ou reclusão oferece uma vantagem evolutiva: um “senso” de privacidade.
O senso de privacidade dos humanos os ajuda a regular os limites do público e do privado com maestria eficiente e instintiva. Você percebe quando um estranho está andando muito perto de você. Você normalmente abandona o tópico da conversa quando um conhecido distante se aproxima enquanto você está envolvido em uma discussão íntima com um amigo.
Pontos cegos de privacidade
Uma teoria evolucionária da privacidade ajuda a explicar os obstáculos que as pessoas enfrentam para proteger informações pessoais online, mesmo quando afirmam se importar com a privacidade. Os sentidos humanos e a nova realidade digital são incompatíveis. Online, nossos sentidos nos falham. Você não vê o Facebook rastreando sua atividade para criar seu perfil e influenciá-lo. Você não ouve a aplicação da lei tirando sua foto para identificá-lo.
Os humanos podem ter evoluído para usar seus sentidos para alertá-los sobre os riscos de privacidade, mas esses mesmos sentidos colocam os humanos em desvantagem quando tentam identificar riscos de privacidade no mundo online. Faltam pistas sensoriais on-line e, pior, padrões sombrios – elementos de design de sites maliciosos – enganam esses sentidos para perceber uma situação de risco como segura.
Isso pode explicar por que os mecanismos de aviso de privacidade e consentimento – tão populares entre as empresas de tecnologia e por muito tempo entre os formuladores de políticas – não conseguem resolver o problema da privacidade. Eles colocam o ônus de entender os riscos de privacidade nos consumidores, com avisos e configurações que geralmente são ineficazes ou manipulados por plataformas e empresas de tecnologia.
Esses mecanismos falham porque as pessoas reagem visceralmente às invasões de privacidade, usando seus sentidos mais do que sua cognição.
Protegendo a privacidade na era digital
Um relato evolutivo da privacidade mostra que, se a sociedade está determinada a proteger a capacidade das pessoas de gerenciar os limites do público e do privado na era moderna, a proteção da privacidade precisa ser incorporada na própria estrutura dos sistemas digitais. Quando a evolução da tecnologia dos carros os tornou tão rápidos que os tempos de reação dos motoristas se tornaram ferramentas não confiáveis para evitar acidentes e colisões, os formuladores de políticas intervieram para impulsionar as respostas tecnológicas, como cintos de segurança e, mais tarde, airbags.
Garantir a privacidade online também requer uma combinação coordenada de tecnologia e intervenções políticas. As garantias básicas de proteção de dados, como as Diretrizes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico sobre a Proteção da Privacidade e Fluxos Transfronteiriços de Dados Pessoais, podem ser alcançadas com as tecnologias certas.
Os exemplos incluem técnicas de análise de dados que preservam o anonimato, como as habilitadas pela privacidade diferencial, tecnologias de aprimoramento de privacidade, como serviços de e-mail criptografados fáceis de usar e navegação anônima, e assistentes de privacidade inteligentes personalizados, que aprendem as preferências de privacidade dos usuários.
Essas tecnologias têm o potencial de preservar a privacidade sem prejudicar a dependência da sociedade moderna na coleta e análise de dados. E como é improvável que os incentivos dos players do setor para explorar a economia de dados desapareçam, acreditamos que serão necessárias intervenções regulatórias que apoiem o desenvolvimento e a implantação dessas tecnologias.
por Laura Brandimarte e Alessandro Acquisti, em The Conversation | Texto em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier
Exclusivo Editorial PV / Tornado
- Laura Brandimarte é professora assistente de Sistemas de Informação Gerencial, Universidade do Arizona
- Alessandro Acquisti é professor de Tecnologia da Informação e Políticas Públicas, Carnegie Mellon University