“Se começasse este perfil falando de Carlos Alberto Geraldo Maia de Souza, pouca gente saberia quem é, mas se disser Carlito Maia, fica mais fácil, não exige explicação, pois este é um dos maiores nomes da comunicação brasileira, conhecido e querido por todos, não só pelo trabalho que realiza desde o início de sua carreira como pela dimensão de ser humano de inegável valor.”
Foi assim que dei início ao texto publicado em 1994 no DIPO na publicidade, concorrido caderno do extinto Diário Popular. Naquela ocasião, tive o prazer de entrevistar o já famoso publicitário Carlito Maia, que passou de paciente a amigo de meu pai, e que para mim, mais que amigo, tornou-se uma bússola na minha formação como cidadã, em busca de um norte de dignidade.
Neste fevereiro, no dia 19, Carlito faria 98 anos de vida, e este ano completará 20 anos de seu falecimento. Mas Carlito está sempre presente entre aqueles com quem conviveu, quando lembramos de suas “Carlitolices”, como ele chamava suas frases: “Brasil? Fraude explica”, ou “Uma vida não é nada. Com coragem pode ser muito”, ou ainda “Quando me fecham as saídas, escapulo pelas entradas”. Nada escapava ao intelectual de vigorosa criatividade e firmeza que conquistou o Brasil com sua sagacidade.
Carlito nasceu em Santana das Lavras do Funil, em Minas Gerais, filho de um tropeiro de burros, de Tietê, São Paulo. Seu bisavô se revelou um subversivo, pois na época do Império batizou a filha com o nome de América do Brasil Republicano Moura Maia.
O mais velho de seis filhos, com 12 anos Carlito saiu de casa para ver a vida de perto. “Na infância, nunca fui à escola. Os únicos cursos que frequentei foram na Escola Técnica de Aviação, de onde saí sargento, em Natal (RN), e a Escola de Propaganda do Museu de Arte, em SP, na Rua 7 de Abril ”, dizia Carlito.
Tornou-se publicitário com 30 anos e foi sua primeira “ocupação qualificada”, pois antes já tinha sido de tudo um pouco: corretor de imóveis, de seguros, tradutor público juramentado, entre as várias funções que exerceu. Era 1954, e ele começou na McCann como atendimento da conta da Goodyear. Dois anos depois foi para Norton, onde começou na criação, e daí pra frente trabalhou nas principais grandes agências da época, com sucesso.
Muito antes de se questionar a diversidade de gêneros e o papel da minoria, fosse negra, indígena, homossexual, mulheres ou menores, Carlito estava sempre à postos em suas defesas. Como escreveu Frei Betto num texto póstumo (in “Típicos Tipos”, A Girafa, 2004) “Carlito era a cidadania em carne e osso”.
E Frei Betto vai além: “O último pré-socrático. Com suas frases curtas e certeiras, proverbiais e irônicas, construiu uma obra literária e contestatória de inestimável valor, inclusive filosófico, com o mérito de proferir axiomas que todos entendem”.
Carlito foi criador da Jovem Guarda, descobriu Roberto Carlos e criou desde o programa de TV até o merchandising. “Eu não me orgulho muito, mas eu fiz”, lamentava. “Marcar época é um acidente, e eu não gostei do resultado final da coisa. É muito perigosa a atividade do publicitário, é como apertar o botão”. Nesse período, ele trabalhava em sua própria agência, a Magaldi-Maia, com seu irmão de fé João Carlos Magaldi, que posteriormente assumiu a direção geral da Central Globo de Comunicação.
Trabalhou por mais de 18 anos na Rede Globo e se dizia por ela emprestado à cidade de São Paulo. “Na Globo achei um lugar onde pudesse conviver com a pessoa física e com a pessoa jurídica, pois ela me dá total liberdade para eu ser o Carlito Maia que a maioria conhece”.
Entre as campanhas memoráveis que criou para a emissora teve a “Guie sem ódio” – derivada de sua preocupação com o trânsito na cidade e a morte de sua mãe por atropelamento. “Uma campanha inútil”, disse seu pai, “é bobagem, agora é tarde, o ódio já venceu”.
Outro trabalho que despertou atenção na época foi com o time do Corinthians, em 1977, que tinha o apelido de “saco – participa mas não entra”, pois desde 1954 o timão não conseguia o título de campeão. Carlito lançou a campanha: “O Corinthians vai ser campeão, a Globo garante”, baseada num torneio de clubes amadores, no qual todos se chamavam Corinthians, disputado simultaneamente com o Campeonato Paulista de 1977.
Evidentemente, no torneio só deu Corinthians e, de quebra, o time – que até então entristecia a torcida – também foi Campeão Paulista, depois de 22 anos de abstinência. Vitória geral!
“Fundador do PT, você cunhou as expressões “Lula-lá” e “Sem medo de ser feliz” e preferia “perder com as bases a vencer sem elas”, registrou Frei Betto, “falando” direto ao amigo, no artigo escrito em sua homenagem. “Desconfiado, você sabia que quando a esquerda começa a contar dinheiro, converte-se em direita”.
Com a amizade de Carlito, passei a ser mais uma cidadã a receber textos maravilhosos em xerox, que traziam ideias e reflexões de Bertrand Russel a Érico Veríssimo, de Henfil a Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende e outros tantos autores, sempre acompanhados por flores lindas e um bilhete em papel com timbre da Rede Globo e sua assinatura envolvida por um carimbo “Confio em Você”.
Foi cronista colaborador da Folha de São Paulo, Revista Imprensa, Gazeta de Pinheiros, Diário Popular entre outros veículos. Publicou o livro “Vale o Escrito”, que reúne parte desde precioso material. Ele dizia “Comunicação não se pode apenas dar, você recebe. Nessa troca, a gente descobre que algumas coisas não são exatamente como querem que acreditemos que ela seja. O fato de metade do povo brasileiro estar na miséria, me deixa com raiva, então a gente se envolve em política.”
Eduardo Suplicy, o político petista que também foi grande amigo de Carlito, dedicou-lhe um capítulo de seu livro “Um jeito de fazer política”, escrito com Mônica Dallari (Editora ContraCorrente, 2021). “Carlito foi um amigo, um irmão, extraordinário companheiro das batalhas da democracia, pela luta pela liberdade de pensamento e igualdade de direitos humanos”, afirma Suplicy. Ele conta que ficou mais próximo do publicitário a partir de 1985, quando lançou sua candidatura a prefeito de São Paulo. Carlito, o jornalista Chico Malfitani, o cartunista Henfil, o publicitário Erazê Martinho e o psiquiatra João Baptista Breda foram estimuladores e criadores de sua campanha. “Até hoje, muitas pessoas lembram dos slogans “Um candidato necessário”, “Mais que prefeito” e também da canção da campanha com o refrão: “Experimente Suplicy, é diferente de tudo que está aí”. Em 1990, Carlito lançou: “É do ar do Suplicy que o Senado precisa”.
Como destaca Pedro Dallari, Professor de Direito da USP, ex-Coordenador da Comissão Nacional da Verdade, graças inclusive às propostas de Carlito na comunicação das campanhas do PT, desde seu início, o partido ganhou uma forma leve e inovadora ao falar de política, contra aquela esquerda sisuda, carrancuda, que imperava até então. “Ele ajudou a viabilizar uma esquerda mais criativa”, diz ele. “Hoje meus alunos não se envolvem na política partidária, eles vão lutar por causas em defesa dos direitos humanos, de questões de gênero, ambiental. Há uma lacuna na política partidária e eleitoral, pois ela se transformou para os jovens numa política velha de ideias”, comenta o professor, concluindo: “Aqui, hoje, faz falta Carlito para renovação com leveza e bom humor; sem isso, a política partidária é território hostil.”
Concordo com a avaliação de Dallari e consigo imaginar a indignação de Carlito nos dias de hoje com o presidente insano que temos, querendo fazer do país um sanatório geral. Imagino sua repulsa ao ódio espalhado nas redes sociais e também seu encantamento com tantos jovens talentosos que surgiram nos últimos tempos nas áreas literária, musical e também no ativismo. Na certa, estaria vibrando com Monique Malcher, prêmio Jabuti com o livro de contos “Flor de Gume”, escritora e artista visual originária da periferia de Santarém; elogiando o belo trabalho do jovem Guilherme Tauil, que reuniu todas as crônicas de Antônio Maria no livro “Vento Vadio”, e repercurtindo novas vozes indígenas, como a de Txai Suruí, fundadora do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, que teve papel relevante no discurso de abertura da Cop26. Seguramente, ele estaria enviando flores para o jornalista e escritor Ronaldo Bressane pelo lançamento de sua nova revista, a “Morel”, sem deixar de colocar frases de apoio pela iniciativa corajosa no cartão, encerrado com a saudação “baita abracito” do Carlito. E posso apostar que estaria lendo os livros de Chinua Achebe, autor nigeriano, que Nadine Gordimer chamou de “pai da literatura africana moderna”. Faço estas suposições porque personagens anônimos e famosos mereciam sua atenção e reverência, e seus feitos eram replicados para centenas em textos deliciosos.
“Suas frases muito curtas, mas contundentes, seriam perfeitas para as redes sociais e teriam grande penetração”, observa Frei Betto, completando: “Ele faz enorme falta, não tem discípulo, não tem carbono. Era de uma delicadeza ímpar, um gentleman que com a língua sábia e ferina chegava onde queria. Sem dúvida estaria apoiando a campanha de Lula, com o boné do MST, por quem sempre lutou, na cabeça.”
Quando faleceu, Carlito tinha quatro netos queridos, hoje teria mais dois bisnetos: Benjamin e Giovana. Sua filha mais velha, a psicanalista Malú Maia, lembra que ele falava: “De herança eu deixei a esperança de que as coisas estão sempre em movimento, e que resistir é não desistir e acreditar no homem e sua capacidade de transformar.”
Tereza Rodrigues, com quem foi casado durante 20 anos, até seu fim, diz sem hesitação: “Foi o melhor marido do mundo. Era um homem amável, inteligente, requintado mas simples, além de inteligente. Tinha posicionamento político inabalável, sempre em defesa dos vulneráveis. Um mago das palavras, um sedutor de altíssimo nível que sempre surpreendia. Amava o Lula e tinha um respeito enorme por ele e pelo MST, era onde tinha esperança”. E ressalta: “Para ele, seria insuportável viver com Bolsonaro no poder, com todo o retrocesso do que foi conquistado pós-ditadura. Sem dúvida, estaria lutando pela volta de Lula e pela desmoralização de Moro.”
Na biografia de Carlito Maia, escrita por Erazê Martinho (Boitempo Editorial,2003) há um texto póstumo de Lula que diz: “Carlito pode ter sido tudo na vida, além do publicitário criativo, do polemista brilhante, do frasista inconfundível, do pai amoroso, do companheiro de todas as horas. Mas, nos últimos anos foi, acima de tudo, o abnegado marido de Tereza – e vice-versa…Porque é impossível falar do Carlito sem falar de Tereza. Era como se fossem uma pessoa só, um casal de Dom Quixotes dispostos a encarar todas as injustiças, todos os desafios, todas as armadilhas da vida que encontrassem no caminho do bem.”
Para concluir, tomo o Prólogo da Autobiografia de Bertrand Russel, que o próprio Carlito me enviou, para sintetizar a vida dele: “Três paixões, simples mas avassaladoras, me dominaram a vida: o desejo de amor, a busca do saber e a insuportável piedade pelo sofrimento humano. Três paixões, como vendavais, me lançaram aqui e ali, em rumo desordenado, sobre as profundezas de um mar de angústia beirando o desespero… busquei o amor, primeiro um esboçar da visão do paraíso imaginada por santos e poetas…busquei o saber…amor e saber, no que foi possível, elevaram-me aos céus. Mas, sempre, tristeza e pena traziam-me de volta à terra. Ecos dos gritos de dor reverberam em meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas pelo opressor, velhos indefesos – cargas odiadas pelos filhos – e todo um mundo de solidão, pobreza e dor, caricatura do que deveria ser a vida humana. Desejo aliviar o mal mas não consigo, e também eu sofro. Foi essa minha vida. Valeu a pena vivê-la e a viveria novamente se me fosse dada a oportunidade.”
Termino minha singela homenagem ao querido amigo com duas de suas frases emblemáticas plena de amor e consciência de cidadania deste democrata que foi: “Vivo livre e solitário como uma árvore, porém solidário como uma floresta” e “Nós não precisamos de muita coisa. Só precisamos uns dos outros”. É Carlito Maia, pulsando entre nós!
Texto em português do Brasil