Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

Prisão para quem faz greve? Precisamos falar sobre isso

Valdete Souto Severo
Valdete Souto Severo
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS e escritora

Semana passada participei de uma aula, sobre a importância simbólica e concreta do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho, seus limites e potencialidades. E, especialmente, sobre a necessidade de compreendermos que não são elas as responsáveis pelo atual estado de coisas. As instituições não sonegam direitos, nem reforçam desigualdades. Não promovem adoecimento e miséria. Sequer existem como Sujeito. São as pessoas que proferem decisões suprimindo direitos, que reproduzem preconceitos, que violentam, que desmatam.

Compreender isso não nos exime de analisar criticamente a atuação realizada por meio dessas instituições e mesmo sua existência. Nem deve nos conduzir à “fulanização” do debate. Não se trata disso. Trata-se de pensar a questão desde outro prisma, compreendendo que atitudes individuais são bem mais produtos de uma cultura que historicamente produz opressão, do que resultado de uma personalidade perversa. E que alterá-las, desnaturalizando a reprodução de uma ordem opressora e rejeitando o discurso que as esconde atrás de instituições boas ou más, é essencial para que haja mudanças.

A consequência imediata é perceber que alterar legislações ou retirar pessoas de postos de poder importa, sem dúvida, mas não será suficiente. Podemos revogar a “reforma” e trocar de presidente ou mesmo de senadores e deputados. Nada disso irá garantir alteração na estrutura que recalca e aprofunda injustiças. A história recente do nosso país é prenhe de exemplos disso. A mudança precisa ser muito mais profunda. Daí porque Paulo Freire insistia na educação como a principal forma de transformação social; porque movimentos de resistência propõem a comunalidade dos bens, o repensar da sexualidade, da família, da forma como interagimos com a natureza e fazemos circular os afetos.

Pois bem, enquanto eu ainda refletia sobre esse debate, recebi a notícia de uma decisão judicial que, diante do anúncio de deflagração de greve das trabalhadoras e trabalhadores do transporte público de São Luís, acolheu pedido formulado pelo município, para determinar que se mantivesse pelo menos 80% do efetivo atuando durante a paralisação. A decisão foi publicada dia 15 de fevereiro. A greve estava marcada para iniciar dia 16. Nesse dia, outro pedido foi formulado, indicando que a greve estava ocorrendo e que deveria ser declarada abusiva.

Em decisão proferida na mesma data, foi concedida nova tutela de urgência, reforçando a necessidade de manter 80% da frota em circulação. No dia 18, foi realizada audiência, que não resultou conciliação. Então, nova decisão foi proferida, decretando a prisão dos membros diretores do Sindicato dos Trabalhadores em Transportes Rodoviários. A decisão fundamenta-se nos artigos 330 (crime de desobediência); 262 (atentado contra a segurança de outro meio de transporte) e 265 (atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública), todos do Código Penal.

A greve foi considerada, portanto, ato atentatório à segurança pública. No dia 19, há manifestação do Sindicato no processo, atualizando o juízo sobre a composição atual da direção, a fim de permitir a “correção” das ordens de prisão, o que foi feito. Em seguida, em nova manifestação, o Sindicato informa a suspensão da greve, no mesmo dia 19, e pede a revogação das referidas ordens, o que é feito em decisão proferida dia 20.

Temer a prisão e recuar não é algo que possa ser avaliado com superficialidade, especialmente sob uma lógica de exceção, em um país no qual ser preso pode significar concretamente a morte. Não se trata, portanto, de definir como certa ou errada a decisão judicial ou a atitude do Sindicato. Trata-se de perceber o que esse caso explicita. O quanto atos e omissões reforçam determinada ordem de coisas. E, ao reforçá-la, produzem uma realidade, na qual hoje no Brasil, por exemplo, o direito de greve concretamente não existe. Temos uma Constituição garantindo a greve como direito fundamental, ancorada em convenções internacionais ratificadas, mas nada disso é suficiente para que seja respeitada.

Se o discurso jurídico não consegue implicar uma alteração cultural na forma como os agentes do Estado, e mesmo os sindicalistas, agem diante de atos de violência contra a reivindicação coletiva, é porque a cultura da greve como “caso de polícia” ainda persiste. E existe porque a greve é a revelação do que não funciona. Explicita o metabolismo da sociedade capitalista, deixa suas entranhas à mostra e revela a violência do trabalho obrigatório. Apenas de forma coletiva é possível alterar as condições dessa troca e não é por outra razão que o Direito do Trabalho surge justamente impulsionado pela organização e pela reivindicação coletiva de melhores condições de vida e trabalho. Portanto, antes mesmo de ser regulada como direito, a greve é fato social. É a denúncia de que determinada situação está se tornando insuportável. Por isso, a reação contra a greve é, a um só tempo, a reação contra toda a forma de produção de racionalidade que conteste o modelo de organização social vigente.

No curioso caso da decretação da prisão de líderes sindicais ocorrida essa semana, há ainda um outro fator a ser considerado. Essa greve não estava apenas revelando o que não funciona em uma sociedade de trabalho obrigatório. Revelava também o que deve significar o discurso de que algumas atividades são prestadas através do Estado porque essenciais para que se viva com decência. Ora, a essencialidade do serviço público, longe de determinar restrições ao direito de resistir, deve constituir razão para redução de jornada, aumento de salário e garantia de condições adequadas de trabalho. Reconhecer a essencialidade de determinados serviços é assumir o compromisso de atuar para que eles não sejam prestados por pessoas em condição precarizada, em número insuficiente, com baixos salários. Serviço público de qualidade não é prestado por instituições, é realizado por pessoas.

Em São Luiz, como em Porto Alegre, a atividade de cobrador está sendo eliminada, o que implica acúmulo de função. E sequer reajuste de salário daria conta de compensar o desgaste e o risco que implica o fato de ter de dirigir e cobrar valores ao mesmo tempo. Um risco que não se limita a quem dirige. Em Porto Alegre, os ônibus que passaram a circular sem cobradores possuem um cartaz dizendo: “Atenção, pagamento de passagem em dinheiro diretamente com o motorista”. Não é preciso esforço para compreender o que isso implica, em relação ao risco de assalto e de acidentes no trânsito, em estresse e medo, para quem trabalha, para quem usa o transporte público e para toda a comunidade. Logo, a reivindicação por melhores condições de trabalho deve interessar à sociedade e aos agentes de Estado que reconhecem a importância do transporte público.

É sintomático que aqueles que defendem e até protagonizam a opressão arbitrária e violenta de quem luta pela efetividade de direitos e melhores condições de vida, não preconiza a mesma postura com relação a agentes públicos que, por exemplo, suprimem cargos, exigindo, pelo mesmo salário pago, o dobro de trabalho dos servidores que permanecem na ativa, muito embora se saiba o quanto esta situação atenta contra a segurança pública e a dignidade humana. É certo que um arbítrio não justifica o outro, pois qualquer tipo de arbítrio é condenável. O raciocínio serve, porém, para evidenciar que há uma razão estrutural para que apenas as arbitrariedades contra os mais pobres se naturalizem.

Fato é que afigura-se distópica uma ordem de prisão contra dirigentes sindicais, em uma realidade de superencarceramento como a nossa. Segregar, em prisões lotadas e condições desumanas, não tem servido para resolver problemas sociais graves. O Brasil é o terceiro país do mundo em número absoluto de pessoas presas. Nas cadeias superlotadas não estão empresários ou agentes públicos que sonegam direitos. A maioria é formada por pessoas pretas e pobres. De qualquer modo, o fato é que prender não resolve. Não é solução. Um tema que podemos aprofundar em outra oportunidade.

O que importa aqui ressaltar é que determinar a prisão de quem está reivindicando direitos sob a égide de uma Constituição que os garante como fundamento do Estado, em uma realidade na qual a prisão já se mostrou alternativa falha, é apostar no caos. E se a intenção for apenas a de ameaçar, para com isso aniquilar a greve, algo que no caso em exame efetivamente ocorreu, então é ainda pior, pois estamos lidando com a lógica do uso arbitrário da força violenta do Estado para impedir o exercício de direitos sociais.

Precisamos ressignificar nossa compreensão de serviço público, seja aquele prestado pelos agentes de Estado quando atuam na jurisdição, seja de quem o faz lutando por melhores condições de existência. Se o que é público nos implica, interessa e compromete, o primeiro passo consiste em desnaturalizar a opressão disfarçada sob o discurso da lei e da ordem e tão cuidadosamente direcionada contra determinados corpos e grupos sociais.

É urgente que esta violência seja explicitada e combatida. Só assim aprimoraremos concretamente nossas instituições.


Texto em português do Brasil

Fonte: Brasil de Fato

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -