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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

A longa guerra começou!

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

É tempo de pensar para além do umbigo, para além de cargos e remunerações e perceber o que está em jogo: a nossa sobrevivência como sociedades livres!

  1. Réquiem pelo apaziguamento

A feira da agricultura francesa foi o palco escolhido para a declaração de Macron: ‘esta guerra será longa! Precisamos de nos preparar para isso’. Apenas um mês antes, o mesmo Macron, perante o Parlamento Europeu, no mais importante discurso da Presidência francesa da União Europeia, tinha dado a entender o contrário: ‘continuaremos, juntamente com a Alemanha, no âmbito da configuração Normandia , a procurar uma solução política para o conflito na Ucrânia, que continua a ser a força motriz das tensões actuais.’ numa formulação que, como apontei aqui no Tornado, faz lembrar Daladier a ceder a Hitler em 1938.

O desastroso discurso de Macron de 19 de Janeiro tinha sido corrigido pela reunião dos ministros dos negócios estrangeiros europeus uns dias depois (e provavelmente por algum burocrata europeu que sabe o que faz, porque também os há), negando categoricamente a Putin o direito de tutela sobre quem quer que fosse, o que levou ao fracasso da tentativa russa de dividir a OTAN e a UE e de introduzir divisões na Ucrânia.

Para o ditador russo, não se tratava já de invasões parciais, mascaradas por pseudo elementos locais, como as que fez na Ossétia do Sul, Abkhazia ou no Dombas, ou ainda na invasão da Crimeia, mas de ultimatos claros exigindo a rendição. Os EUA, pela voz de Biden, repetiram à exaustão que a invasão era certa (ou seja, que eles nada iriam fazer que a pudesse impedir), enquanto foram minando a posição de Zelensky.

Nem a Ucrânia nem a Europa apresentaram a rendição. O chanceler alemão, numa decisão de vigésima quinta hora, trava a operação do gasoduto de cerco à Ucrânia; a opinião pública europeia dá-se finalmente conta de que está perante um maníaco não menos perigoso do que Hitler ou Estaline; Macron – verdadeiro campeão da acrobacia política – dá-se conta que não é o futuro da Ucrânia, mas antes o de toda a Europa que está em cima da mesa.

Putin, cujas forças em presença atingiriam em escasso tempo o limite da operacionalidade, resolve-se pelo assalto total, bombardeando todas as infraestruturas militares e atacando em todas as frentes (mesmo de Ocidente, a partir da Transnístria).

A resistência de um exército que não se preparou para um assalto que o bom senso dizia ser provável, sem o equipamento que maior parte dos países europeus bloqueou e que os EUA não forneceram em tempo útil (algo mais a agradecer também a Biden, comissionista e lobista na Ucrânia antes de ser Presidente), não dá grandes esperanças, mas a resistência heroica de civis ucranianos e o corajoso protesto das elites russas levam-nos a pensar que o exército de ocupação não terá a vida facilitada.

E aquilo que teremos de perguntar é como é possível que os nossos dirigentes nada tenham aprendido com a história e nunca tivessem compreendido ao longo dos últimos oito anos que a única forma de travar o imperialismo russo era através de eficazes dispositivos de dissuasão.

Fazendo da desinformação russa o perigo principal – e uma das principais conclusões que podemos tirar é que a desinformação russa foi um total fiasco e não convenceu ninguém – nunca recusando um bom negócio, ou um bom emprego para ex-primeiro ministros numa empresa petrolífera do regime, recusando a escassos dias do assalto russo a mais elementar solidariedade à defesa ucraniana, a Europa mostrou que o apaziguamento é o caminho mais certo para a guerra.

Em França, a guerra vai com toda a probabilidade contribuir para a entronização de Macron no Eliseu, não pelo seu brilhantismo, mas apenas porque o colaboracionismo dos seus rivais é agora impossível de digerir.

  1. O palco do Extremo-Oriente

O abandono do Afeganistão foi a causa próxima para a agressividade russa na Ucrânia, como entre outros, nos diz Jason Howk (director dos Amigos Globais do Afeganistão, organização sediada em Washington DC da qual faço parte) mas foi ainda de forma mais óbvia o sinal para Pequim acelerar os seus planos de expansão no Extremo Oriente, nomeadamente o ataque à Formosa.

Foi assim com enorme ansiedade que os observadores internacionais olharam para a forma como a China acolheu a invasão da Ucrânia, salientando uns que a China se ofereceu imediatamente para furar qualquer sanção económica e outros que esta se absteve na votação de condenação da Rússia.

Creio que nesta matéria a posição da China tem sido consistente. Por um lado, a China opõe-se totalmente a qualquer sanção económica unilateral por mecanismos que não domina, e isto pela óbvia razão de que não está minimamente interessada em normalizar instrumentos de que ela é o principal alvo potencial, como acontece já, mesmo que parcialmente, em consequência do genocídio no Turquestão Oriental. De resto, em tudo o que seja antiamericanismo, luta contra a democracia e contra direitos universais, o Presidente Xi estará sempre ao lado de Putin.

Posto isto, as diferenças não são menos importantes. A prazo, e continuando no caminho que temos seguido, o imperialismo chinês cruzará o caminho do imperialismo russo e o choque será inevitável. Contudo, não estamos lá, e a Ucrânia não é terreno disputado pela China onde esse problema se possa colocar.

Mais importante do que isso, e que me parece ser a razão decisiva que leva à frieza de Pequim perante a invasão da Ucrânia, é que esta é incompatível com a estratégia de infiltração e de tomada de controlo da ordem internacional prosseguida por Pequim.

Pequim tem comprado dirigentes políticos – mais do que a Rússia – mas tem sobretudo tomado posições em toda a arquitectura institucional mundial. Não se sabe já quantas instituições das Nações Unidas são controladas por Pequim (a OMS e a FAO, são duas das mais óbvias), enquanto em todos os continentes Pequim vai comprando posições, boas vontades e votos.

Contrariamente à Rússia, Pequim não é favorável ao derrube da ordem institucional mundial: é antes favorável à sua conquista metódica. Veja-se, por exemplo, que quando rasgou da forma mais óbvia o direito internacional (a Convenção dos Oceanos) invadindo as águas dos seus vizinhos e construindo aí uma rede de bases militares, conseguiu ultrapassar a condenação de que foi alvo comprando o Presidente do país que tinha ganho em Tribunal contra ela, Duterte, das Filipinas.

Mais importante ainda neste domínio é o dossier Coronavírus, que deixo por ora de lado dada quantidade de desinformação com que o tema está coberto.

O método Xi está por isso em clara contradição com o método Putin. Nada que não se tenha já visto no passado. Por exemplo, quando Mussolini invadiu a Abissínia (violação do direito internacional que muito contribuiu para a implosão da Sociedade das Nações) e as democracias assistiram impotentes, foi Hitler que tornou a vitória cara a Mussolini fornecendo armamento aos seus opositores, o que naturalmente teve a ver com circunstâncias geopolíticas e nada com qualquer desagrado pelo massacre das populações.

Mas, como sabemos, tal não impediu a constituição do eixo, como também não creio que a invasão da Ucrânia obste à continuação do eixo Moscovo-Pequim. Contudo, por estas e outras razões, não creio que a invasão da Ucrânia vá precipitar a invasão da Formosa, sem que esta saia naturalmente da agenda.

  1. Moscovo e a Jihad

Um dos temas em que a desinformação de Putin tem sido relativamente eficaz tem sido a de vender Putin como herói da cristandade que faria face à Jihad. Seria assim que teríamos de apreciar a guerra russa na Síria por exemplo, e seria também assim que teríamos de ver a Rússia na Europa.

A verdade é que Putin consagrou dentro das suas fronteiras o fanático Emirato da Chechénia que tem sido um dos seus elementos predilectos de guerra e que, neste momento tem como especial incumbência a caça aos dirigentes ucranianos em Kyiv. Mas já antes, foram também as forças do emirato da Chechénia as responsáveis pelo assassínio do líder da oposição russa, Boris Nemtsov, às portas do Kremlin.

Boris Nemtsov (Paulo Casaca)

O Qatar aparece hoje como o grande concorrente à Rússia, em aliança com Biden, no mercado do gás europeu. O lobby de Biden tem sido essencial para que as instâncias europeias tenham arquivado o processo contra o Qatar por manipulação do mercado de gás. Mais significativo do que isso foi a colaboração de Biden para afundar o projecto de gasoduto Israel-Chipre-Grécia ou como fez de conta que não viu a sabotagem do projecto de gás em Moçambique pelo Qatar.

Toda a actuação de Biden no contexto dos preparativos da invasão russa da Ucrânia levam a crer que a sua preocupação foi mais a de conquistar o mercado do gás europeu do que de impedir a invasão.

As relações do Qatar com a Rússia são algo enigmáticas, havendo fontes credíveis que apontam para uma concertação de ambos no mercado de gás. A verdade é que a divergência no mercado europeu parece-me clara, sendo que o Qatar, sede oficiosa da mais conhecida rede islamista, a ‘Irmandade Muçulmana’ tem estado em oposição à Rússia em vários cenários de guerra, alimentando também boa parte das redes americanas e europeias que pretensamente combatem a desinformação russa.

O Qatar tem como principal aliado na Irmandade Muçulmana, a Turquia de Erdogan, um dos poucos países que cedeu equipamento militar à Ucrânia. A Turquia condenou inequivocamente a invasão.

Depois do binómio Qatar-Turquia temos o Paquistão, cujo Primeiro-Ministro visitou oficialmente Putin em Moscovo no dia em que se desencadeou a invasão da Ucrânia. Protegido de Biden e ‘aliado’ dos EUA, o dirigente paquistanês deu desta forma um explícito apoio à invasão, ao mesmo tempo que discutiu com Putin negócios relativos ao gás, em clara oposição aos interesses americanos e Qataris na matéria. A esse propósito, a Al Jazeera afirma que o encontro não foi concluído por um acordo na matéria do gás.

O Paquistão tem sido o mais consistente país opositor ao Ocidente sem nunca por isso sofrer qualquer consequência significativa. No passado, o pretenso antissovietismo serviu de desculpa para a manutenção desse estatuto de inimputabilidade pelo Paquistão. Na esfera internacional é um país islamista que colaborou estreitamente com o Qatar e a Turquia na conquista do Afeganistão pelos Taliban, ou noutro quadro, na guerra entre o Azerbaijão e a Arménia.

O Paquistão está fortemente empenhado no apoio à Jihad na Ásia do Sul, tendo como principais alvos a Índia e o Bangladesh.

No panorama internacional, foi do Irão que a invasão da Ucrânia recebeu as palavras mais efusivas, quer do líder espiritual, quer do presidente quer do chefe da diplomacia, como foi oportunamente denunciado pela oposição iraniana mas escondido pela imprensa institucional ocidental.

A razão desse silêncio da imprensa institucional ficou clara quando as autoridades americanas fizeram saber que continuarão a colaborar com Moscovo no acordo nuclear iraniano.

Note-se que, dois dias depois da invasão da Ucrânia, Putin ameaçou a Europa com uma guerra nuclear.

O facto de a Administração Biden achar que a invasão da Ucrânia e a ameaça nuclear contra a Europa (significativamente contra a Europa, não contra os EUA) em nada obsta a boa colaboração de Putin e Biden no nuclear iraniano deveria servir para que, finalmente, se perceba onde nos levou a política de apaziguamento dos nossos dirigentes.

Há que acrescentar a isto que o Irão tem sido inimitável na sua ‘política de cuco’ na cena internacional. Conseguiu manobrar os EUA para que estes invadissem o Iraque e para deles herdarem o poder, e está em vias de conseguir o mesmo da Rússia em relação à Síria.

A guerra que a teocracia leva a cabo na sua esfera de influência – Iraque, Síria, Líbano e Iémen – vai seguramente alimentar a guerra prolongada que foi finalmente vislumbrada por Macron.

É tempo de pensar para além do umbigo, para além de cargos e remunerações e perceber o que está em jogo: a nossa sobrevivência como sociedades livres!

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